O Relicário - Capítulo 13
Algumas horas mais cedo, o sol ainda brilhava quando Sakurai e Cecília terminaram suas missões e partiram coletar sua recompensa e depositar parte da mesma no banco. A tarefa dos dois naquele dia foi bem tranquila: colher batatas numa grande plantação.
Os dois chegaram a fazer um desafio de quem colheria mais do vegetal até o final do dia. O problema disso tudo é a dificuldade em ganhar de alguém numa competição de colheita quando que sabe magia de planta. Não é complicado adivinhar quem ganhou.
Na instituição financeira, um homem obeso os cumprimentou na entrada. Usava um terno verde de veludo e um chapéu adornado por uma pena amarela elegante. Seus sapatos pretos brilhavam contra o sol, pois tinham sido engraxados há menos de um dia. Ele era uma boa pessoa, possuía voz carismática e expressões acolhedoras. Vez ou outra, ele perguntava como a família deles estava e sorria sem parar. O nome do homem era Francis e ele era o dono do banco.
Ele possuía a pele negra e uma voz aguda, não condizendo com seu avantajado tamanho. Além do mais, Francis tinha um sotaque diferente, pois era de outras terras, entre o Norte e o Oeste.
Seu jeito simpático tinha uma boa razão. Seu lema era: “se você quer ganhar bem, deve tratar os clientes bem”. Claramente, esse raciocínio funcionava bem. Não paravam de entrar e sair muita gente o tempo todo se sua instituição.
Embora tudo estivesse indo na positividade, ainda era notável a gordura incomodar o rico homem, pois o tempo todo Francis olhava a sua barriga e a cutucava. O que lhe deixava mais incomodado era um botão do paletó, forçando o quanto podia para não arrebentar. Cecília motivava o gordo a não desanimar, contudo, nada lhe tirava da cabeça sua gelatinosa e protuberante pança.
Por um momento, o senhor decidiu esquecer um pouco seu motivo de inquietação e relaxou o corpo, porém, foi só o fazer e o botão, já não aguentando mais, se soltou e voou feito uma bala na testa de Sakurai. A fronte do rapaz ficou vermelha rapidamente e Cecília quase explodiu de tanto conter o riso, mas não queria envergonhar Francis, já triste com o acontecido.
— Já chega! — Exclamou o banqueiro — Minha esposa me avisou e não dei ouvidos. Agora, meu terno favorito já precisou ser comprado em tamanhos maiores quatro vezes e já preciso de outro. Vou emagrecer, custe o que custar!
Após pedir desculpas, saiu Francis em busca de quem pudesse ajudá-lo a perder peso, jogando sutilmente o corpo para frente a cada passo. Depois disso, a dupla de aventureiros seguiu com o que queria fazer desde o começo.
O interior do banco era bastante chique. Assentos de couro novinhos próximos às paredes brancas e sem nenhuma mancha ou trinco. No balcão de madeira de lei entalhada, duas mulheres e dois homens atendiam os mais variados clientes. Cada um dos funcionários usava um uniforme azul de fina qualidade. Na verdade, o modelo da roupa lembrava o terno de Francis.
Os dois puderam resolver seus assuntos bem cedo por conta da agilidade da equipe muito bem treinada do banco, portanto, tiveram bastante tempo livre após realizarem o depósito. Com efeito, faltavam horas até o início do show circense e eles seguiram ao Estrela da Aurora.
A garçonete centauro trabalhava no restaurante ainda quando chegaram e ficou animada ao perceber Cecília, visto serem bastante amigas.
Ela os levou à melhor mesa e lhes passou o cardápio. Sakurai pediu um ensopado especial da casa: o banho de espinafre, já a lobinha, amante de proteína, pediu a espada de carne. A atendente então anotou as informações e se dirigiu à cozinha.
Enquanto esperavam, a dupla jogava conversa fora. A pequena loba gostava de contar vantagem por ter ganhado a brincadeira, já seu amigo apenas ouvia sorrindo. Essa conversa fluiu tranquila até Cecília decidir tirar uma casquinha de seu colega e perguntar:
— Quando você salvou Yumina, aproveitou pra dar um baita beijo nela?
— Claro que não! —respondeu ele de rosto vermelho
— Ora, você não a acha bonita?
— Acho sim, além disso, a personalidade dela é muito boa. Ela é o tipo de garota qual eu gos… O QUE EU ESTOU FALANDO?!? — disse Sakurai se derretendo de vergonha e coçando a cabeça
O berro do jovem inquietou todos ao redor e atraiu olhos tortos na direção dele. Certamente isso não ajudou o moço de cabelos brancos, o qual se encolheu nervoso. Rindo e sabendo ser a autora do vexame do amigo, a híbrida continuou:
— Pare de gritar. Tá parecendo um bode. Vão nos expulsar sem nem comermos desse jeito. Mas enfim, pode ficar tranquilo. Não vou contar nadinha.
— Contar o quê?
— Que você gosta da Yumina, dã. Seu cérebro virou picolé? Além de apaixonado tá lerdo?
— Eu não gosto dela! Não desse jeito! Apenas acho ela o tipo ideal de garota à maioria dos garotos…
— Inclusive você! — espetou Cecília novamente, sorrindo na maior cara de pau
Antes disso virar uma briga, os pratos chegaram e Sakurai conseguiu mudar o curso da discussão. Os pedidos eram bastante atraentes. O banho de espinafre era bem-feito e delicioso, mesmo usando apenas ingredientes básicos, como cenouras e batatas. O curioso era a maneira cuja verdura que dava nome ao prato se encontrava no mesmo, realmente parecia banhar-se na refeição preparada.
A espada de carne, obviamente se parecia com a peça de aço. A base da “arma” era de carne bovina, a guarda de suína e a “lâmina” de proteína de frango. Umas rodelas de limão, outras de laranja, pedaços de abacaxi e um molho barbecue separado acompanhavam o pedido. Cecília era uma amante de carne, como se podia perceber, por isso o prato foi além de perfeito.
Sakurai pensou em advertir sua amiga a comer também vegetais, mas viu a alegria em sua bela e inocente face e deixou passar. E assim, prosseguiram a devorar seu almoço, olhando as pessoas do lado de fora do restaurante.
Dentre todos aqueles humanos e seres mitológicos presentes na rua, uma mulher ganhava destaque. Era uma meio-loba, cujas orelhas e cauda lembravam Cecília, mas de cor preta na base e branca na ponta. Ela olhava para dentro do restaurante, escorada em um poste, sem desviar seu foco.
Antes de repararem mais na desconhecida, a garçonete ruiva chegou trazendo a conta, pedida por Sakurai. Quando terminaram de pagar e saíram do estabelecimento, a híbrida de pelagem negra já não podia mais ser vista. Sem muito o que pudessem fazer, a dupla ignorou o visto e seguiu até onde o circo se encontrava instalado.
Conforme caminhavam rumo ao local, eles se deparavam com mais gente. Iam famílias, grupos de amigos, pessoas sozinhas, casais e etc. Todos bastante empolgados. A garota-lobo também estava ansiosa, ora, de que forma alguém do calibre dela não estaria?
Enfim, ao chegar, estava de tardinha e um segurança conferia os ingressos. Querendo não passar vergonha na hora, Sakurai já enfiou suas mãos nos bolsos a procura de tais, preocupado. Ao achá-los ficou mais calmo e passou a segurá-los. O segurança conferiu os bilhetes e os deixou entrar sem nenhum problema.
O circo havia se alojado em uma encruzilhada muito espaçosa, dividida em quatro ruas, sendo a atração principal no centro e as barracas e jogos mais próximas das esquinas. A garota de cabelo roxo se perdia em tanta coisa divertida a se fazer. Eram tantas maneiras divertidas de brincar, rir, comer…
Sakurai observava os cintilantes olhos de sua amiga e sorria, pensando em como ela estava feliz. O rapaz da magia de gelo se importava demais com a alegria dos outros, por isso ficou tentando alegrar cada criança vista chorando no circo, chegando a atrapalhar a própria diversão.
Primeiro, enquanto andavam, uma criança berrava, pois seu sorvete havia caído. Sakurai foi até uma barraca e comprou outro pro garoto, utilizando o próprio dinheiro.
Em seguida, viu um bebezinho no colo dos pais incomodado por algo. Outra vez o jovem de cabelos brancos veio intervir. Ele usou de sua magia e fez uma estrela de gelo presa a um palito de churrasco. Os pais agradeceram e prosseguiram com a diversão.
E foi assim quase durante todo o evento. Sakurai chegou a liberar Cecília para dar uma volta até a hora do show, porque ele não parava de ajudar todo mundo. A lobinha não queria fazer aquilo, mas não teve outra opção, pois senão os dois não aproveitariam nada.
Enquanto o rapaz andava freneticamente, a menina híbrida participou das atrações. Ela era boa nos jogos. No início, se fazia de tonta e falhava, agradando os donos, no entanto, com a guarda baixa deles, ela vencia o desafio e os de antes ficavam com cara de tacho.
A partir daquele instante, não tinha mais o que fazer, pois a primeira tentativa servia para Cecília descobrir qual era a artimanha do dono da barraca para tirar o dinheiro de participantes. A partir da segunda, não tinha mais jeito de se defender.
Em pouquíssimo tempo os donos das barracas passaram a temer a mocinha. Caso ela decidisse ir em uma tenda, certamente todos os prêmios seriam reivindicados por ela e não tinha como a impedir, pois poderia causar um transtorno ainda pior.
Passadas duas horas, o show se preparava para começar e todos entravam na grande lona listrada de azul e verde. Sakurai quase não aproveitou o evento de tanto ser bonzinho.
Na entrada, Cecília não segurava nada nas mãos e o jovem da magia de gelo desconfiou de imediato. Não fazia sentido aquela garota não ter ganhado coisa alguma.
— Vou pegar mais tarde. — Afirmou a mocinha de baixa estatura
Sakurai até começou a imaginar a montanha de coisas. “Já tô vendo quem vai carregar…” pensava ele. Mas sem perderem tempo, a dupla entrou, na intenção de encontrarem um bom assento.
O show começou e os dois acharam um lugar bem na frente. Primeiro, o apresentador, de rosto pintado e roupas largas, veio gerando ânimo na plateia, conforme realizava algumas piadas. Ele não enrolou e deu, sem demora, espaço aos dois primeiros artistas.
Era um casal de palhaços: Escorrega e Trombadinha. O primeiro fazia diversas acrobacias, as quais elevavam o público. Mas, de vez em quando, ele escorregava em alguma coisa que trombadinha jogava, causando gargalhadas na plateia. Quando Escorrega tentava se vingar, tudo saía pela culatra e quem se dava mal era novamente ele.
O povo se divertiu bastante com eles até a dupla de palhaços virem a se despedir, vindo o apresentador a chamar pelo próximo.
Quem veio em seguida foi o mágico assistido por Yumina e Lily noutro dia. Ele fez os mesmos truques apresentados na rua, mas agora mais enfeitados e reluzentes, usando magias ainda mais extravagantes. Além disso, ele apresentou uma variedade de novos. A diversão era de toda família. Como último número, ele se fez desaparecer no meio de dezenas de pombas brancas, permitindo chamar o próximo colega.
Cecília parecia ter seis anos por conta do fascínio no show, abandando a cauda sem parar e vez ou outra acertando a face de Sakurai, o qual não dava um pio, pois adorava a felicidade da amiga.
As apresentações foram prosseguindo por mais duas horas, foi quando o homem quem deu início ao show voltou ao palco uma última vez junto de seus colegas de trabalho e se despediu de todos. Os espectadores amaram e show e aplaudiram fervorosamente. E assim, todos foram saindo pelas quatro saídas disponíveis.
Já do lado de fora, estava de noite e os postes estavam acesos, iluminando as ruas, quando Cecília chamou seu parceiro, na intenção de pegarem seus brindes. Sakurai por um instante se esqueceu com quem conversava e foi buscar os prêmios de bom grado.
Eles foram em barraca por barraca, pegando uma porção de prêmios em cada e os donos dos estabelecimentos entregavam-nos derrotados. Chegou um momento quando o jovem de cabelo branco não conseguia ver mais o caminho, por isso, a lobinha deu uma ajeitada e conseguiu deixar um espacinho por onde ele enxergava a estrada. Ao saírem da área do evento, o garoto de magia de gelo disse:
— Da próxima vez, não vou sair da sua cola. Você vai levar até o balcão desse jeito!
— Não tenho culpa se eles trapaceiam e não suporto gente trapaceira. Eles acabaram com a alegria de um monte de gente, por isso, acabei com a deles. Foi uma troca justa. E fique sabendo que já dei um montão de coisas pros outros, então vê se não reclama!
Ao ouvir tais palavras, o garoto da magia de gelo percebeu como a lobinha quis ajudar os outros e deu um sorriso. Mas, seu contentamento com a amiga não foi visto, afinal, uma montanha de pelúcias e elementos decorativos tampavam todo o seu rosto, com exceção dos olhos.
Antes de dizer alguma coisa, Sakurai parou e ficou observando o outro lado da rua. Cecília parou sem entender o motivo do colega, mas logo entendeu do que se tratava.
Uma menina andava sozinha, utilizando roupas esfarrapadas. Era uma garota de rua, olhando a infinidade de coisas carregadas pelo rapaz. Em sua mente, ele imaginava quantas dificuldades aquela criança com seu cabelo ruivo e pele parda enfrentava. A lobinha, então, voltou seus olhos a ele e viu como se compadecia dela, em seguida, observou a criança e sentiu o mesmo.
Cecília pegou um de seus prêmios, uma boneca de pelúcia de vestido cor de rosa e foi até o encontro dessa menina. Chegando devagar, a híbrida abordou a menina:
— Ei! Qual é o seu nome?
— L-Laura…
— Que nome bonito. Aqui: tome este presente. Quando se sentir sozinha ou com medo, ela vai te proteger e sempre te acompanhará.
A garota agradeceu alegremente e descrente com o presente. Em seguida, deu um abraço no brinquedo e na loba e foi correndo feliz procurar a mãe. Quando a jovem de cabelo roxo voltou, Sakurai olhou nos olhos dela e disse em voz serena:
— Estou muito orgulhoso de você.
Aquela frase levantou as orelhas da jovem e sua cauda chacoalhava quase o bastante para voar. Satisfeita pelo elogio, ela cantarolava e caminhava feliz durante boa parte do percurso daqueles dois até em casa.
A magnífica lua iluminava a estrada de terra, fazendo as folhas produzirem sombra e as corujas ecoavam suas vozes entre os galhos, marcando sua presença. Cecília caminhava a passos curtos e bem próxima de seu companheiro, o qual mais parecia um caminhão com tantos prêmios em seus braços. A dona dos mesmos via o esforço de seu amigo tão conectado a ela e se oferecia para carregar, mas ele recusava prontamente e dizia estar bem. Ela então disse, olhando rumo ao chão:
— Sei o que você já passou, mas não precisa fazer tudo sozinho! Me deixe ajudar!
— Não é necessário. É sério, estou bem! Não quero te cansar. Além do mais, estou fazendo isso por livre e espontânea vontade.
— Pra quê fazer isso tudo por mim? — Tornou a questionar Cecília de orelhas baixas e levantando os olhos ante ele — Sou eu quem te devo.
— Deixe de ser boba, tamborete! — Respondeu Sakurai sorrindo — já te disse: estou fazendo isso porque quero. Se lembra da minha promessa? “Vou cuidar de você mesmo quando meu sangue parar de circular”. Por isso, não fique martelando essas coisas na sua cabeça.
— E depois dizem ser eu quem pareço uma criança… hi hi!
— Bom, nós dois somos então… crianças teimosas.
Enquanto caminhavam, os olhos azuis de um lobo preto espiavam no escuro em completo silêncio, fundindo sua respiração aos sons da floresta noturna e ocultando por inteiro sua presença.
O clima melhorou bem entre os dois depois daquilo e logo então chegaram em casa. O dragão que, sem surpresa alguma, dormia em frente ao portão, abriu os olhos, saudou-os e os deixou entrar.
Dentro de casa, todos dormiam. Portanto, prosseguiram na ponta dos pés, tencionando não acordar ninguém. Eles guardaram as coisas em um cantinho do quarto de Cecília, preocupados em acordar Yumina, cuja esta dormia com face virada a eles.
Ao colocarem tudo no lugar, Sakurai se aproximou da jovem do relicário e admirava seu belo rosto. Concentrado, ele vagarosamente se aproximava dela e podia ouvir melhor a respiração da amiga. Os lábios rosados da garota do relicário levemente abertos chamavam atraiam o rapaz, mas ele saiu o quanto antes, temendo ser mal interpretado.
Quando a dupla chegou do lado de fora do quarto, a híbrida cutucou-o, fazendo hora, e já puxou uma piada:
— Achei que bancaria o príncipe encantado e beijaria ela. Imagina só: ela acordava e aí vocês se beijavam de no-
Com o rosto vermelho, o jovem da magia de gelo deu um cascudo nela e depois um abraço acompanhado das seguintes palavras:
— Fique tranquila. Ela não vai me fazer te deixar de lado. Você continua sendo minha maninha bagunceira.
— Obrigada… — respondeu Cecília envolvendo seus braços nele da mesma maneira, em voz mais calma — Você continua tão legal quanto no dia que me salvou.
Após tal conversa, o garoto do frio foi para seus aposentos e a lobinha ao seu. A menina de cabelo roxo se aproximou, fazendo o menor ruído possível, de sua cama. Ela se esgueirou por debaixo do cobertor através uma brecha e em poucos minutos adormeceu.