O Relicário - Capítulo 12
Yumina sonhava estar numa rua de Diamond. Pelo espaço aberto, deduziu ser a praça. A neblina cinza tapava a vista de detalhes além de três metros, fazia muito frio e um cheiro forte e familiar preenchia a zona. A catinga lhe dava enjoo, contudo, ela não conseguia identificar a fonte do odor.
Semelhante à primeira vez, ela chamava seus amigos e nenhum vivo lhe vinha acudir. Seus gritos não tinham retorno, tirando as esperanças de ser ouvida e resgatada.
Depois de andar um pouco, a moça sentiu andar sobre uma água quentinha, no entanto, ela não se atrevia a olhar o que era o líquido, temendo descobrir. O fluido aquecido lhe cobria os pés por inteiro e lentamente ela sentia ficar mais e mais pesado andar naquele “lago”.
Arrastando os pés sob a água mais um pouco, a portadora da joia viu a névoa começar a se esvair. Ainda era limitado, mas o campo de visão já melhorava, todavia, o enxergado pela garota não foi o desejado.
À sua frente, jogado aos pés da fonte, um cadáver tinha seu sangue escorrido sobre o chão da praça. O cheiro terrível agora fazia sentido e o líquido gradualmente mais pesado, se dava pelo fato de o sangue ter coagulado, lembrando uma gelatina bem vermelha.
Conforme a cortina acinzentada se dispersava, mais gente morta ia aparecendo, acelerando o coração atemorizado daquela única viva dentre os as vítimas.
Haviam pessoas de todo tipo e assassinadas das mais perversas maneiras. Ricos, pobres, soldados, clérigos e etc. decapitados, desmembrados, enforcados… tantos homicídios diferentes sem explicação. Certamente, todos foram cometidos por um psicopata, apaixonado por uma matança indiscriminada e insaciável.
Apavorada por tamanho massacre, a garota do relicário rapidamente virou-se de costas e pôs-se a correr sem olhar para trás. Mas, a fuga não se estendeu por mais que vinte metros, pois ela, tropeçando possivelmente num corpo, caiu e afundou numa parte onde o sangue ainda se encontrava ralo.
Ela procurava ir até a superfície, mas debater-se a levava mais ao fundo. Balançando os braços, a menina procurava um apoio, contudo nada era palpável. Acabando o oxigênio, Yumina foi perdendo seus movimentos e sua consciência se tornava densa. Após o último esforço fútil, as bolhas restantes de ar subiram e ela deixou de se mexer. Pouco depois deste último, a novata acordou.
De forma previsível, ela despertou aos trancos e barrancos, puxando ar feito um peixe fora d’água e rolando sobre o colchão. O suor e as lágrimas de alguém puramente desesperado rolavam pela face dela. Suas mãos não paravam de tremer e o coração parecia saltar pela boca.
Do lado da cama, Cecília via sua amiga se recuperando. De orelhas abaixadas, ela perguntou:
— Você tá bem?
— Eu… estou. foi só um pesadelo…
— Conte pro Arnold. Talvez ele saiba como ajudar. Seja lá o que viu, não parece ser “só um pesadelo”.
Devido a frequência dos sonhos macabros, ela manteve o conselho da lobinha em mente e prometeu fazê-lo quando tivesse a oportunidade. Dali, a mulher de cabelo azul seguiu ao campo de treinamento, onde o velho a aguardava.
A mais nova aluna de Arnold estava de pé ante seu professor e Lily. A cavaleira não emitia um pio, mantendo corpo ereto e aguardando ordens do mestre. Em tom firme como o de um soldado, Arnold começou:
— Jovem Yumina, a partir de hoje você treinará de segunda a sábado, realizando os mais variados e difíceis exercícios. Eles te colocarão à prova física e mentalmente. Está disposta a continuar, mesmo que venha a vontade de desistir?
Vindo logo o sim, se iniciou oficialmente o curso preparatório da garota do relicário.
De acordo com a fala do mago experiente, o primeiro foco era que sua aluna aprendesse a lutar sem magia, pois ela não tinha noção mínima de combate nem energias fundamentais para usar feitiços. Visando corrigir isso, ele preparou uma série de atividades destinadas ao corpo.
No começo, tudo feito era de conhecimento de qualquer pessoa, como flexões, corridas, abdominais, agachamentos e etc. No entanto, a coisa começou a ficar mais e mais difícil.
Em um momento, a tarefa a se fazer era arrastar um tronco por trinta metros, em outro, era de ficar equilibrada sobre pilares, e ainda um, escalar paredes de pedra. Para piorar, a loira sempre complicava os exercícios, seja aumentando os pesos subindo neles, seja atrapalhando o equilíbrio da caloura com as mesmas bolinhas de pano do dia anterior. A cada sessão realizada, maior era a vontade de deitar no chão e apenas dormir.
Por fim, a tarde veio e a sensação de alívio florescia no corpo dolorido e suado da moça de cabelos azuis, contente por terminar todos aqueles sofridos exercícios. Mas, em oposição ao relaxamento de Yumina, veio uma última tarefa: enfrentar a mulher de olhos vermelhos, primeiro de mãos nuas, depois usando espadas de madeira.
Na primeira parte, o objetivo era imobilizar a oponente no chão, usando apenas o corpo. Na teoria, podia ser fácil, mas na prática, a novata já previa a quanto apanharia nos minutos seguintes.
Frente a frente na área mais aberta do campo, elas se preparavam para o conflito, até ouvirem o sinal de ataque:
Comecem!
Dado início, antes de Yumina pensar em se mexer, a cavaleira já a pegou pela gola e a lançou ao chão. A principiante não teve o menor tempo de reagir e, por consequência, sentiu seus órgãos batendo em suas costas ao ser jogada, feito um boneco, contra o solo.
Foi uma luta muito curta. Decepcionante, para dizer o mínimo. A veterana não usara nem metade da força e a criatura de cabelos azuis já gemia de dor sob seus pés. Sem esboçar reação, Arnold ainda as fez realizarem mais duas sessões, as quais não foram diferentes da primeira, antes de começarem a segunda parte do combate.
Os esforços daquela que treinava vazavam pelos poros de seu corpo na forma de suor escorriam pelo seu corpo coberto de terra. Quando o tempo acabou, a novata mal conseguia respirar de tão cansada, mas ainda faltava o último trabalho.
Primeiramente as duas pegaram suas armas de lenho e se posicionaram na zona Norte. Descrente em ter resultados positivos, Yumina tentou uma estocada, mas sua parceira conduziu a arma dela para o lado e já a desarmou. Foi tão rápido a ponto de ser decepcionante, mas a novata tornou a pegar sua ferramenta de treino e foram à segunda tentativa.
A garota do relicário foi com a espada na direção das pernas da loira e ela se balançou rumo a um lado e golpeou a inexperiente pelas costas. Aquilo podia não machucar, mas doía pra valer, tirando um gemido dela.
Na terceira rodada, a jovem de cabelo azul foi mais ousada e desferiu uma série de golpes, mas não chegaram sequer a encostar em um fio de cabelo da oponente, a qual puxou o pedaço de madeira da colega para baixo, utilizando sua própria arma e a acertou no estômago com a ponta de lenha, deixando-a de joelhos.
Arnold, vendo o estado humilhante de sua aluna, finalizou o dia falando:
— Já chega por hoje. Amanhã nós continuamos com o treino. Este é só o começo.
A moça de olhos rubi, naquele instante, fincou sua lâmina cega sobre o gramado e foi cuidar daquela quem deu uma surra. Estendendo a mão àquela quem tentava levantar-se, ela disse:
— Foi mal! Usei força demais.
Aceitando a ajuda, a novata na verdade agradecia por sua amiga ter se segurado, pois tinha certeza que não sobreviveria se ela se soltasse.
No coração de Yumina, a frustração precoce de não ter tido um desempenho melhor lhe perturbava, mas não se arriscava a contar, porque temia incomodar a loira. De fato, um sentimento desses não deveria estar presente logo no primeiro dia. Muito chão ainda existia para ser caminhado.
Lily, querendo o melhor à parceira de treino, acompanhou-a até o banheiro, pegando todos itens necessários de maneira a evitar mais esforços de Yumina.
A banheira parecia o lugar mais confortável do mundo. A água quente afastava o frio, as dores e relaxava o corpo rígido por tantos exercícios e golpes num único dia. O vapor umedecia o nariz dela, facilitando e deixando a respiração muito mais confortável, assim como também embaçava o espelho de cima da pia.
Embora fosse aquele um banho tão bom, ela não podia ficar mais por tanto tempo lá, pois o sono lhe buscava e seria perigoso dormir dentro de uma banheira cheia d’água. Dali, ela seguiu ao quarto da lobinha.
A jovem de cabelo azul aproveitava o tempo livre e encarava melhor a boneca danificada. Ela era leve e macia, conforme uma pelúcia deveria ser. O cheiro amadeirado de mirra se misturava com o aroma floral de rosas, formando uma combinação peculiar, mas agradável. Não só os olhos de botão da adorável boneca se encontravam bem conservados, mas também a roupa semelhante à vestimenta da “menina original”.
A queimadura do brinquedo havia enrijecido o tecido na área afetada e era possível ver as tentativas de remover os pedaços duros e pretos, pois parte do enchimento se mostrava exposto, sendo este o único defeito da pequena Cecília de pano.
Em sua mente, a portadora da joia mágica tentava imaginar a história da “Ceciliazinha”, ou ao menos desenvolver uma teoria, mas nada plausível foi construído. Uma única pista não era o suficiente para desenvolver uma conclusão minimamente válida, muito menos sem conhecer direito ainda aqueles a quem chamava de “amigos”.
Por fim, ela colocou o brinquedo onde estava da maneira a qual pegou e se dirigiu à cozinha, atendendo ao chamado de Arnold para juntar-se a ele e à loira no intuito de jantarem.
Antes de a nova aluna dar a primeira garfada, ela perguntou a seu professor se não deveriam esperar pelos dois ainda fora de casa. Tranquilamente, ele respondeu:
— É muito possível que tenham ido a um restaurante à essa altura. Fique à vontade pra atacar.
Por ter menos gente, o prato da noite foi mais simples: macarronada ao molho. Estava uma delícia conforme sempre. O molho era feito à base de tomates, pimenta, pimentão, cebola e um legume de nome “feijão de coração”, dono do título popular de “feijão do amor”.
Esse último adoçava o gosto picante presente no prato. O gosto era bem agradável, mas talvez não muito, caso se tratasse de uma criança. Lily, quebrando o silêncio sem graça, começou a explicar o motivo daquele apelido do legume:
— Existe uma história de que houve um tempo, quando uma rainha e um rei (de reinos diferentes) lutavam muito entre si. Numa noite, na tentativa de um acordo de paz, os criados dos dois lados se juntaram e prepararam uma receita especial, cujo ingrediente especial era o tal feijão. Durante o jantar, eles comeram a comida e magicamente se apaixonaram pouco a pouco, até se casarem e unificarem seus territórios. Embora seja apenas uma história, esse feijão é bem valorizado por aqui, em especial, por casais.
Yumina olhou ao prato e pensou em como um conto inocente desses já era o suficiente para os pares românticos já fortificarem seus laços. Remexendo o alimento, lembrou ela mais uma vez de quando foi salva da serpente e carregada até em casa por Sakurai. O rosto dela ficou rosado e a mulher de temperamento forte perguntou:
— Tá se sentindo bem?
— S-sim. Eu só me distraí. — Respondeu Yumina virando a cabeça
Dentro da cabeça da jovem de cabelos azuis, veio a incerteza do que sentia. Era o cansaço de tanto treino, ou algo mais forte? Sem acreditar, presumia ser a quantidade de coisas novas lhe vindo todas de uma só vez. Mas, ainda não tirava da cuca:
“Será que um dia vou me apaixonar por alguém da mesma maneira da história?”
Terminada a refeição, o mago se encarregou de lavar a louça da noite e, então, as outras se dirigiram à sala. Elas conversavam sobre o treinamento de seus amigos e da própria cavaleira. Os contos, seguindo os parâmetros do mundo fantástico onde a garota do relicário estava, não passavam de um treino puxado, enquanto na percepção de realidade de Yumina, pareciam sobre-humanos.
A conversa podia ser divertida, mas não se estendeu muito, até porque a aluna nova já bocejava e vez ou outra quase dormia sobre o sofá, escorada sobre o próprio braço. Portanto, cada uma seguiu para o próprio quarto ainda cedo.
Deitada e olhando o teto, a recruta pensava no treinamento novamente. Junto a isso, ela tentava criar esperanças de seu futuro:
— Quem sabe eu consiga achar os meus pais? Melhor não criar expectativas, já faz anos desde o tal ataque contado por Arnold. Vai saber o que rolou nesse meio tempo.
As perguntas voltaram a borbulhar e balbuciar em sua cabeça e sua curiosidade se aguçava em busca de uma resposta aceitável, mas o que dizer se não sabia ao menos onde si mesma estava exatamente?
Ela até por um momento tentou explicar cientificamente a razão da magia e do hibridismo do lugar, no entanto tudo só piorava a situação, pois ao encontrar alguma justificativa, outro fator aparecia para anular a primeira, como foi o caso do javali elemental da terra.
“Poderia ser magnetismo? Mas ele não atrai metais… Manipulação da gravidade em pequenas quantidades? Isso explicaria o fato de ele aguentar o peso da terra em seu corpo, mas ela fluía como água nas patas dele…”
Antes da neblina transformar aquele pobre cérebro em um mingau, ela deixou todas as teorias de lado e concluiu:
“Minha vida aqui é bem mais legal e divertida que antes. Preciso parar de forçar tanto e aproveitar essa experiência nova…”
E assim o sono a abraçou e a levou rumo à terra dos sonhos.
Enquanto tudo isso acontecia, Sakurai e Cecília curtiam seu espetáculo no centro de Diamond.