O Relicário - Capítulo 11
Era de manhã. O sol batia de lado nas árvores, formando suas projeções sobre o solo que lhes alimentava. A lua continuava a ser vista no céu, mas já terminava de se esconder entre as florestas do extremo oeste, tendo seu brilho ofuscado pelo outro corpo celeste. Cecília, mais uma vez, acordou primeiro e despertou a colega de quarto. Após o relatado, tudo até a hora do treinamento se manteve como nos dias anteriores, sendo dispensável contar novamente.
Na zona Norte do campo de treinamento, todos os pupilos, exceto a novata, alinharam-se ombro a ombro atrás de Arnold. Eles se assemelhavam a soldados em formação aguardando o sinal de seu comandante. Virando-se à fileira de alunos, o mestre falou em tonalidade ora autoritária e séria:
— Hoje, começa o processo de capacitação para combate de nossa amiga novata, Yumina! Por agora, será uma espécie de avaliação, assim saberemos o nível dela e entenderemos por onde devemos começar. Juntos, nossa convidada rapidamente se adequará a nosso mundo e estaremos melhor preparados contra nosso inimigo em comum. Sem mais delongas, vamos começar!
O primeiro teste era de força. Consistia em pegar diferentes pesos e carregá-los de uma linha de flores criadas por Cecília, até um círculo desenhado da mesma maneira, localizado a quinze metros de distância. Não era coisa impossível de ser feita, embora a dificuldade fosse incrementada a cada sucesso da caloura.
Os objetos carregados eram feitos de materiais variados, como ferro, madeira e pedra. Em um dos lados, ele tinha um número pintado, identificando peso.
O primeiro tentado pela portadora do relicário foi mamão com açúcar, pois possuía somente cinco quilos. O segundo, de dez quilos, também foi tranquilo. E o sucesso no teste se manteve constante, até o momento quando ela tentou erguer trinta quilos. Ela prendia a respiração e a face se avermelhava na esperança de colocar o objeto sobre as costas, todavia, as pernas dela arriaram e ela foi obrigada a largá-lo antes mesmo de sair da linha de partida. Sem demonstrar reação, o mago anotou os resultados.
O segundo teste foi de agilidade. Ele foi organizado assim: foi feito outro círculo, bem maior, uns cinco metros de diâmetro. Yumina ficou no meio dele e ela poderia se mover livremente, mas apenas dentro da área designada, por outro lado, os outros três veteranos seriam os responsáveis por jogar pequenas bolas na novata.
Sakurai arremessava bolinhas de neve, Lily, esferas de pano e Cecília, frutinhas disparadas por magia. O objetivo era ver até onde ela conseguia desviar. Nos primeiros arremessos, tudo ia tranquilo, mas a coisa complicou quando começaram a arremessar mais e mais e passaram a correr em torno da grande área, confundindo a cabeça daquela quem deveria se esquivar.
Sendo acertada no rosto, peito, braços e pernas, rapidamente ela perdeu, com a roupa manchada de frutas e molhada pela neve derretida. A iniciante arfava e engasgava vez ou outra, pois nessa busca por ar, ela inalava a água escorrida de seus cabelos encharcados.
Na terceira avaliação, a recruta teve de correr ao redor do campo de treinamento e, com base nos outros testes, é inquestionável pensar que ela deu poucas voltas até cair sentada sem fôlego e suada, assemelhando-se a um picolé no sol.
Uma outra seleção de testes foi feita a partir daí, sendo o último realizado a uma hora da tarde. Eles eram bem desgastantes para alguém como ela, levando-a a passos largos ao cansaço. O velho, depois de escrever mais um pouco, virou seus olhos em Yumina e começou a anunciar o resultado:
— Minha jovem, depois de ver as avaliações, fiquei impressionado!
Na crença de ser elogiada e considerada uma pessoa avançada, Yumina levantou os lábios escancaradamente, mas a realidade lhe esbofeteou sem piedade:
— Suas estatísticas são todas medianas. É equivalente a uma humana comum. Acho que coloquei expectativas demais…
Foi como se a coroa de vidro feita sobre si mesma tivesse virado cacos. De fato, a caloura caiu do cavalo por acreditar ter sua história contada semelhante aos animes da TV. A verdade ria de tal inocência, de certa forma, tola. Sem enrolação, o mestre continuou:
— Por sorte, meu objetivo é te ensinar. Agora, irei montar um plano de treino de acordo com seu físico e começaremos de verdade amanhã. Esteja preparada cedo, pois será desde a manhã até escurecer. Estão dispensados!
Enquanto cada um seguia caminho rumo às tarefas de interesse e responsabilidade, a novata pediu que Lily ficasse e usasse seus golpes contra ela, ansiando sentir uma luta de verdade pela primeira vez. No primeiro instante, a loira hesitou, contudo, aceitou poucos segundos depois.
Ambas ficaram frente a frente. Elas usavam espadas de madeira polidas e finas, sendo mais leves e ágeis em comparação às metálicas e afiadas armas reais. A mulher de olhos de brasas mostrava semblante despreocupado e empolgado, levando a recruta a repensar no pedido feito…
A garota do relicário não conseguiu sequer chegar perto de sua colega. Lily se movia feito água, enquanto a outra se mexia como um robô, cujos parafusos foram apertados demais. As tentativas de golpes da principiante eram previsíveis, permitindo facilmente a esquiva da cavaleira, a qual respondia a ofensiva batendo nas costas da parceira.
Podiam não machucar aqueles cabos de madeira moldados, porém doíam bastante. A cada cacetada dada pela veterana, pior era a sensação de ter caído de uma árvore e batido em todos os galhos antes de chegar ao chão
Foi coisa de dez minutos até a caloura se dar por vencida, quer dizer, Lily achou melhor parar. O suor escorria pelo rosto da jovem de cabelo azul e seu corpo já balançava tanto quanto um bêbado cambaleante. O sensato era parar mesmo. Fadigada, a derrotada se sentou sobre o gramado e Lily a consolou após se acomodar do lado dela:
— Não se preocupe com isso. Você ainda está no ponto de partida.
E ainda acrescentou:
Do jeito qual te vi ao longo dos dias, no outro mundo certamente não existe magia. Como é o estilo de combate por lá?
— A única magia existente é a de truques como fazer um lápis parecer mole e tirar um coelho da cartola. Nada de verdade. Para lutar, eles criaram armas que lançam objetos pontiagudos de metal. As pessoas morrem sem precisarem se encostar diretamente…
A conversa ia ficando pesada, portanto, a loira trocou o tema, perguntando:
— Sobre esses truques… sabe fazer algum?
— Gosto de aprender, então aprendi um bocado.
— Poderia apresentar alguns mais tarde?
— Eu?!? — Perguntou Yumina com rosto vermelho — M-mas não sou boa nisso.
— Se acalme. Vai ser só um passatempo.
— E se ninguém gostar?
— Tá colocando a carroça na frente dos bois! Cecília adora mágica e isso não é uma apresentação profissional. Basta uns três números, só pra tirar a cabeça do treino!
Compreendendo melhor as intenções da amiga, ela aceitou a proposta e prometeu mostrar seus truques depois do jantar.
Combinado feito, a garota da joia mágica foi ao banheiro lavar-se de toda a sujeira e mal cheiro impregnado em roupa e corpo. Minutos depois, a mesma se dirigiu a sala, onde encontrou Sakurai e Cecília.
Eles conversavam sobre missões, sentados no sofá de estofado vermelho e madeira marrom escura. De acordo com a explicação de um deles, como iriam ao show do qual ganharam o ingresso, estavam discutindo qual aceitar para não se atrasarem. A dupla dinâmica tinha chegado à decisão de aceitar alguma missão de coleta, visto este tipo de tarefa na guilda geralmente não levar em consideração o tempo gasto, mas a quantidade coletada para receber recompensas.
A guilda era uma organização onde todas as pessoas quem quisessem podiam postar suas “missões”. Cada pedido disponibilizava uma recompensa conforme o solicitante, podendo ser uma arma, comida, dinheiro e etc. As tarefas variavam na mesma proporção: escolta, caça, coleta, investigação…
Por estarem ocupados, a garota do relicário os deixou resolverem seus assuntos e se afastou; foi dar uma volta. Arnold estava em seu quarto, montando um plano à sua nova aluna, incomodá-lo não parecia uma boa ideia. Lily limpava os quartos, usando um pano de chão e um espanador. Embora quisesse ajudar, Yumina teve seu voluntariado recusado.
Entediada, ela seguiu até o portão de casa para conhecer melhor o Dragão da Escuridão. Este se alongava no mesmo lugar de sempre e observava em volta, apreciando a paz.
Quando a jovem chegou, estava com medo, pois, na verdade, nunca tinha deixado de ter receio dele. Algo assim não é difícil de compreender, conforme fazia apenas dois dias que ela estava ali. Ao contrário do esperado, o ser místico não expressou raiva ou ameaça. Ele procurou uma posição confortável e perguntou bocejando:
— Posso lhe ajudar, pequena criança?
A forma adotada pelo dragão ante ela deu mais tranquilidade em falar:
— Gostaria de saber um pouco mais sobre este mundo. O senhor pode me contar?
Surpreso e feliz, o réptil alado comentou:
— Já faz um tempo que ninguém me pede uma história… Pois bem, — se ajeitou o dragão — em primeiro lugar, vou lhe contar do início de tudo: Antes, diziam que eu fazia parte da Trindade criacionista junto dos dragões da luz e do equilíbrio, no entanto, nós nunca criamos este mundo, por isso mandamos pararem de nos chamar assim.
— Na verdade — continuou ele inspirando profundamente — eu e o da luz nascemos junto deste lugar e como pensamos diferente, me tornei o mestre da noite e ele do dia, mas aquela lagartixa atrevida queria mais… ele enganou as pessoas, alegando eu ser uma ameaça e que qualquer tipo de trevas deveria ser extinto.
Riscando o chão utilizando sua garra, ele prosseguiu, demonstrando legítima raiva:
— Eu estava na minha. Pra ser sincero, estava garantindo a paz, porque eu mesmo não deixava os animais noturnos atacarem os diurnos, salvo autodefesa e sobrevivência. Parte da população não acreditou nele e se aliou a mim. Com isso, se iniciou o conflito… Muita gente morreu a troco de nutrir o ego daquela boca de isqueiro.
Yumina sentiu pena das almas sacrificadas em vão e um aperto no coração, atrelado a um desconforto no peito. Ansiosa, ela cobrou:
— E depois?
— Após várias fatalidades, as pessoas “da luz” perceberam como a luta não tinha tanto sentido e fizeram uma aliança com seus inimigos para invocar o Dragão do Equilíbrio. Ele é mais velho e muito mais forte, então, ele estabeleceu um cessar fogo permanente e proibiu todas as nações, sob quaisquer hipóteses, de guerrear a partir de ordens de nós dois, ou pela ideologia de luz e trevas de novo.
Coçando seu focinho, ele reclamou:
— Minha raiva sequer é por não vencermos a guerra, mas o fato daquele iguana me caluniar! Pelo menos, o conflito acabou e posso ficar em paz.
— E onde o Dragão da Luz está?
— Também não sei. Ele não é muito de falar onde vai. Caso não esteja se preparando para encher o meu saco novamente, pouco me importa também.
— E quanto a sua relação com Arnold?
— Eu estava descansando numa cordilheira distante daqui (talvez a conheça um dia) e ele apareceu por lá. Ele tinha me rastreado, disse precisar de mim e acabei por aqui.
— Mas… — voltou Yumina fazendo mais uma pergunta — por que você aceitou? O que pediu em troca?
— Heh! — Riu o dragão — você é mesmo uma criança curiosa! Eu aprecio muito isso, mas essa resposta ficará comigo.
Conversa vai e vem, as horas voaram. A jovem não podia ficar o tempo todo ali, por isso ela deixou a criatura de garras afiadíssimas, cuja felicidade era plenamente visível. Aquele papo foi muito relevante à moça, pois ela não somente aprendeu sobre o passado, mas viu como não precisava temer tanto assim o famoso Dragão da Escuridão.
Um tempo mais tarde, o jantar estava servido. A chef da noite era Cecília. Ela preparou, dentre outras coisas, sua especialidade: carne bovina com batata e cenoura. Podia até parecer nada de mais, mas o prato era estupendo.
A proteína era temperada e cozida ao ponto de bem passada. Os outros dois desmanchavam na boca e o aroma abria as válvulas de saliva. A novata pôs um pedaço adentro e só saiu elogios. A cena se repetia entre todos e a lobinha ficou toda vermelha, mexendo suas felpudas orelhas e abanando a cauda.
Terminada a refeição e limpado as coisas, Yumina apresentou os truques pedidos pela cavaleira mais cedo. O show não foi tão longo, mas deu para passar bem o tempo. Dentre os números, pode-se mencionar o truque do copo atravessando a mesa e a bolinha qual some da mão. A mais fascinada foi Cecília, cujos olhos brilhavam ante o mistério envolvido na “mágica”. Alguns desses números ainda usaram a própria plateia nas performances, visando maior interação, o que os tornavam o maior barato.
E a hora de dormir chegou. Os animais do dia já repousavam sob a luz da esfera prateada no céu, liberando os sons característicos de cada espécie. As estrelas salpicavam o céu preto, preenchendo o vazio daquele teto sem nuvens e fazendo companhia à lua.
Dentro do quarto, Yumina e Cecília já iam dormir, quando a híbrida relembrou um assunto:
— Ei! Me lembrei de uma coisa: prometi te deixar tocar nas minhas orelhas se decidisse ficar.
A garota do relicário tinha esquecido dessa conversa também, mas ficou animada ao lembrar. Elas se sentaram numa beirada da cama e a novata começou a pegar nas orelhas da lobinha.
Elas eram macias e flexíveis. O pelo de dentro parecia um algodão. Os dedos da mulher de cabelo azul iam com toda a suavidade tocando em todos os pontos permitidos, aproveitando o quão fofas conseguiam ser aquelas orelhas. O pelo de fora podia não ser suave feito o de dentro, mas era liso como não se tinha igual. Elas chegavam a lembrar fios de macarrão bem úmidos.
Não foi apenas Yumina quem gostou desse momento, mas também Cecília, molenga com a mão leve de sua amiga. A lobinha sequer parecia conter traços de lobo, aparentava mais um gato quando o tocam numa área muito agradável, levando-a a simplesmente fechar os olhos e quase dormir sobre o colo da colega de quarto.
Dali, as mocinhas encerraram mais um dia, dando espaço ao próximo. Entretanto, antes de usufruir de mais uma manhã, a portadora da joia mágica teve mais um de seus pesadelos quase rotineiros…