O Relicário - Capítulo 10
Era umas três horas da tarde. Sentadas num banco da praça de mais cedo, as duas colegas observavam por debaixo de uma árvore a movimentação da cidade. Embora fosse muito estranho ver pessoas além de humanos, a moça de cabelo azul ainda achava linda a paisagem.
Realmente era algo belo de se ver. As crianças faziam suas estripulias em torno da fonte. Uma idosa cumprimentava feliz um rapaz de outra espécie, conforme ele fazia o mesmo. As folhas das árvores vez ou outra caíam sobre o pequeno gramado e um ninho de calopsitas cantava dentre os galhos acima das meninas.
Yumina e Lily comiam pães-de-queijo comprados de uma barraca próxima, quando a segunda perguntou:
— Foi divertido hoje, né?
— Sim. — Respondeu a turista pondo o lanche na boca — os habitantes daqui são muito legais com novos visitantes.
— Diamond é conhecida pela boa recepção.
Olhando fixamente a novata, a mulher de olhos vermelhos indagou séria:
— Poderia me explicar o motivo de ter trazido a joia?
— Eu deixei no quarto da Cecília. Juro! — respondeu ela em alto tom
— Mas ele tá aqui! — Pressionou a cavaleira
— Quando voltarmos, pode perguntar. Ela me viu deixando por cima da escrivaninha!
A mulher da magia de fogo queria acreditar nas palavras dela, mas ficava difícil confiar numa alegação contrária ao presenciado por ela mesma. A dona do artigo mágico insistia na alegação, deixando tudo mais esquisito. Por fim, a amiga da novata decidiu por deixar a discussão suspensa e chamou a parceira para voltarem à mansão.
No caminho pra casa, a loira contava à sua amiga as travessuras de Cecília contra Sakurai e as confusões que o grupo caía de vez em quando. As risadas transpassavam o silêncio da floresta e batiam nos arvoredos, voltando em feliz eco, fazendo-as se esquecerem do frio discretamente presente no meio delas ocasionado pelo ambiente fresco. Trocando o tema da conversa, Lily passou a falar:
— A partir de amanhã você vai começar a treinar. Como se sente?
— Sendo sincera, com medo de não conseguir…
— Não acha cedo demais pra ter medo? Entendo sua preocupação, mas você é deste mundo. Está no seu sangue! Só precisa treinar um pouco.
O rosto de alguém confiável se revelava por parte da loira. Em mesma medida, a admiração de Yumina crescia e a vontade de ser como ela também. A postura ereta, o corpo forte, o comportamento ora delicado, ora rígido de Lily e a irreverência ao mal inspirava a recruta, instigando-lhe a pensar “quero ser como ela”.
Já no portão de casa, o Dragão abriu a entrada com sua cauda, aproveitando por se encontrar perto do mesmo. Se recordando de mais cedo, Yumina questionou ao ser fantástico:
— Como estão Cecília e Sakurai?
— Arnold deu uma bronca e um castigo neles. A punição acabou há poucos minutos.
Dentro de casa, Cecília se encontrava espatifada no sofá da sala. Seu corpo estava todo arranhado e encardido. Sua roupa não estava em situação melhor, contendo rasgos e desfiados. O doce perfume da lobinha foi substituído pelo forte odor de suor e terra.
Lily se aproximou da mocinha esparramada sobre o móvel e perguntou como tinha sido o dia dela. Talvez o cansaço lhe deixara lenta em raciocínio, pois ela só percebeu que elas chegaram depois da cavaleira a tocar para chamá-la. Sua saudação não era a animada de sempre, mas já servia. Ela falava em pausas, procurando forças para falar entre puxadas lentas de fôlego.
— O que aconteceu aqui? — Indagou Yumina
— A gente treinou desde quando vocês saíram, até agorinha. Corremos, fizemos flexões… agachamentos… lutas contra Arnold… Sakurai foi tomar banho primeiro, então me encostei no sofá… agora, não consigo me levantar. Ah! é… lembrei. Arnold mandou pedirmos desculpas por sermos tão infantis, então… desculpa…
A moça de cabelo azul ficou aflita ao imaginar no que seria de si nos próximos dias, todavia, a exausta loba continuou:
— Ei… quando você pegou seu relicário de volta?
— Ele estava no seu quarto? — Se intrometeu a usuária de magia de fogo
— Sim… Ela deixou na minha escrivaninha…
E então, Sakurai apareceu. Ele tinha acabado de sair do banheiro, seu corpo ainda estava um pouco molhado e usava uma toalha enrolada no pescoço, visando logo enxugar seu cabelo. Com essas informações, não fica difícil pensar que ele não vestia uma camisa.
Ele não era musculoso nem tinha tanquinho. Apenas era magro, de musculatura aparecendo levemente. Ainda assim, era bonita sua fisionomia. Vapor subia de seu peito por conta da água quente.
Embora tudo isso, Sakurai também estava apenas o pó da rabiola. Dava para ver em sua face cansada e voz murcha o resultado do castigo. Na mesma hora qual chegou, disse, desejando informar a híbrida a disponibilidade do banheiro:
— Sua vez… ah! Oi, pra vocês duas… antes que me esqueça, peço humildemente perdão a vocês por agir feito uma criança. Não irá se repetir…
Evitando quaisquer complicações, a novata respondeu estar tudo bem e Lily levou a lobinha ao toalete para ajudá-la.
Tendo as duas saído, a moça de cabelo azul pôde prestar melhor atenção no esbelto físico de seu amigo. Seu corpo era de alguém quem pratica exercícios somente por motivos de saúde, contudo, aos olhos da observadora, esta era razão de ainda mais beleza.
A garota do relicário chegava a olhá-lo com o rosto rosado, pois nunca tinha encarado por tanto tempo alguém daquela maneira. Então, Sakurai se virou para avisar à Lily onde estava o xampu e Yumina viu a horrenda e enorme cicatriz mencionada pela cavaleira nas costas dele.
A marca ia de alto a baixo, mais escura em comparação ao resto do corpo do rapaz. Um ferimento daquela magnitude certamente teve uma dor à altura. Quase dava para sentir o sofrimento dele na hora em que foi cravado o sinal em sua pele. Só de olhar já veio o espanto e a pergunta da procedência dela, cuja explicação veio em seguida pelo homem da magia de gelo:
— Tive um acidente.
— Fiquei sabendo de um incêndio na noite deste “acidente”.
— É mesmo…? — disse ele demonstrando nervosismo ao acelerar a respiração
— Pode me contar a história?
— Eu… me machuquei sozinho depois de um ferro quente cair em mim
— Mas você não estava carre—
— Ora! — Interrompeu Arnold, entrando pela porta de entrada. — Bem-vinda de volta, minha cara.
A partir daí, a recruta não teve chance de continuar sua investigação, porque o rapaz da marca não aguentava falar muito e o velho não dava a oportunidade a ela de insistir no tema, cortando qualquer brecha por meio de outros assuntos e perguntas relacionadas a Diamond.
Passado um tempo, as encomendas feitas pela dupla chegaram. Vieram com um senhor de pele negra e barba curta. Suas roupas eram um uniforme amarelo, pertencente a uma equipe terceirizada de entregas. A carroça trazida por ele era bem grande e os animais os quais carregavam os produtos eram de uma raça “normal” por assim dizer, pois não tinham chifres, asas, cor roxa, azul, ou qualquer outro tipo de particularidade.
O entregador de voz grave e rouca saudou Arnold e pediu para assinar alguns papéis, a fim de confirmar a entrega e, vendo não conhecer aquele rostinho novo, inclinou a cabeça em sinal de respeito e contou se chamar Stuart. O homem das entregas era bem amigo do mestre e foi perguntando a rodo sobre a menina desconhecida.
Stuart não podia enrolar no trabalho, portanto, se despediu rapidamente e logo antes se esquecesse, tirou do bolso um saquinho leve de pano amarrado por um laço verde e entregou à Yumina dizendo:
— Margareth mandou dar-lhe isso. Também mandou dividirem.
— E o que é isso? — Perguntou a garota do relicário, curiosa
— Não sei. Não posso olhar o conteúdo dentro dos pacotes.
E assim partiu o simpático senhor pela mesma trilha de onde veio, acenando aos que ficaram para trás.
— Esqueci de contar: — disse o mestre com as mãos nos ombros de Yumina — ninguém sabe da presença do Dragão da Escuridão. Há um feitiço de percepção sobre ele pra evitar pessoas assustadas contando ter um bicho ancestral cuspidor de fogo aqui.
Sendo cinco horas, Arnold recomendou entrarem e orientou a jovem arrumar suas roupas e se banhar. Enquanto ia pegar suas coisas, ela investigou o interior do saco pouco pesado. Havia um monte de docinhos coloridos entre branco, rosa e amarelo. O aroma deles se misturou e virou um forte cheiro de açúcar. Ela decidiu não pegar nenhum ainda, tanto por não saber o que tinha neles, quanto porque queria ser justa.
Já dentro do banheiro, havia uma banheira de porcelana branca na parte mais distante da porta. A novata nunca havia usado uma e ficou empolgada em experimentá-la.
Ela tinha o tamanho adequado a um homem de estatura média, acomodando bem a moça. A água pura e quente dava a vontade de não sair dali. O sabão era cheiroso, possuindo fragrância de erva cidreira e o xampu, vermelho, soltava um delicioso perfume doce de baunilha.
Conforme Yumina apreciava a nova experiência, refletia sobre o acontecido no episódio do ladrão. Magia para impedir desaparecimento do relicário, ou um descuido por parte dela mesma e da amiguinha? Seja o que for, não lhe causava tanta inquietação quanto o pesadelo daquela mesma manhã.
“Quem era aquela mulher?” perguntava a si mesma passando o sabão pelo braço “Tinham tantas vozes no meio daquele vazio… Não vejo relação com algum filme ou evento recente.”
A resposta não lhe veio à cabeça, portanto, ela continuou seu banho e largou a ponta solta para outra hora.
Agora limpa, Yumina saiu do banheiro e foi rumo ao quarto onde dormia provisoriamente. Quanto mais se aproximava, mais era possível ouvir ruídos. Quando chegou do lado da porta, viu tratar-se de Sakurai, penteando os cabelos de Cecília, usando uma escova prateada com detalhes de flores. Eles conversavam, quando o rapaz disse:
— Desculpe brigar tanto ultimamente e te fazer receber um castigo. Me preocupei demais e acabei descontando minha ansiedade nas suas costas.
— Não precisa se desculpar. Quem tem de fazer isso sou eu. Brinquei além do limite e te irritei.
— Neste caso, nós dois temos culpa, não é?
— Tem razão, ha ha.
— Cecília, que tal darmos uma voltinha num dia livre desses?
— Sério mesmo?!? — quis confirmar a lobinha balançando a cauda de um lado ao outro e com os olhos brilhando feito dois faróis.
— É claro, mas por favor, para de esfregar esse seu rabo na minha cara. Tá entrando pelo nos meus olhos!
A garota do relicário os ouvia sorrindo, pensando em como se davam bem. Apesar de Cecília se comportar quase o tempo todo como uma criança, ela ainda sabia ser séria e reconhecer seus erros, enquanto Sakurai, mostrava que, mesmo parecendo apenas brigar, na verdade, isso era por se importar com sua amiga, revelando possuir um lado sensível dentro do cachecol vermelho. Para não se intrometer, a curiosa saiu de fininho e resolveu entrar no quarto só depois.
Quando Lily terminou de tomar seu banho, Yumina a esperava ao lado da porta. Ela queria propor uma ideia: dar o ingresso para seus dois amigos antes castigados. A cavaleira riu impressionada respondendo ter imaginado a mesma ideia. A partir de um “toca aqui”, elas selaram seu combinado e foram imediatamente pedir a Arnold.
Ao repassarem o recado ao senhor, a resposta foi bem decepcionante:
— Infelizmente, não posso permitir isso. Aqueles dois agiram de maneira muito indevida após sua chegada. Daquele jeito, provavelmente você desistiria de ficar em menos de uma semana. Como eles poderiam te escoltar até estar pronta se não possuem o mínimo de modos?
— É verdade que eles foram muito “crianças” quando eu cheguei. — Interveio Yumina — Mas acredito ser a razão de eu querer ficar. Mesmo brigando, Sakurai se preocupou em me procurar quando saí sem permissão e me salvou. Além disso, Cecília viu como eu estava com dúvidas e conversou comigo.
Olhando para baixo, ela deu continuidade a sua fala:
— Me fizeram querer ficar… o mais propenso era que eu desistisse de tudo rapidinho se eles tivessem agido como soldados. O fato de os castigar por passarem dos limites é compreensível, mas por favor, deixe-os ir para esse show. Talvez assim possam se reconciliar e pararem de discutir. Não os puna mais por minha causa. Por favor!
O mago olhou no fundo dos olhos dela e viu tamanha empatia, além da insistência também de Lily. E então, depois de um suspiro, concedeu a ida deles. A mulher de olhos vermelhos começou a comemorar euforicamente, no entanto, rapidamente voltou a sua compostura e agradeceu formalmente a seu mestre.
Pelo avançar de quase uma hora, todos se ajuntaram à mesa. Eles comiam tranquilamente. Sakurai e Cecília até trocavam piadas, mas agora estavam felizes e riam tão quanto verdadeiros familiares. A garota do relicário olhava aquilo e pensava:
— Não sei o que o Arnold fez, mas funcionou. Parecem até nunca se desentenderem.
Ao final da refeição, no momento quando Sakurai e a híbrida iam se levantar para arrumar a mesa, Lily os impediu. Ela explicou:
— Mais cedo, peguei um ladrão em Diamond e ganhei um ingresso com direito a um acompanhante. A Nossa amiga aqui se sentiu acolhida por nós e queria agradecer de alguma forma a vocês dois por terem sido tão legais com ela. Portanto, o ingresso que peguei, é seus.
Sem dúvida, eles se alegraram bastante com o presente e agradeciam sem parar.
— É bom avisar: se voltarem a brigar eu mudo de ideia e não os deixo ir. — Alertou Arnold
Tal resposta mexeu com os dois, os quais aceitaram os termos.
A lobinha já estava ansiosa, imaginando como seria o dia. Em algumas de suas fantasias, pensava no que iria comer. Dava para notar, visto ela babar um pouquinho até perceber.
Como não podiam ficar apenas comemorando, eles voltaram a seus afazeres no intuito de logo irem dormir. Quando estava tudo pronto, o mago chamou a jovem de cabelo azul novamente. Ele queria saber se ela estava disposta ao treinamento preparado ao raiar do dia. Ela confessou sentir-se acanhada, mas estava disposta a tentar.
Arnold pôde sentir sua determinação e a encorajou dizendo que, apesar do processo necessário fosse muito difícil, ela iria conseguir, pois sua família era forte e nunca fugia de um desafio. Ainda por cima, lembrou do fato de estarem ali exatamente para apoiá-la.
Já na cama, quando a recruta estava quase dormindo, Cecília, aquela quem tinha apagado, abraçou Yumina feito uma de suas amadas pelúcias. Mesmo adormecida, ela soltou um “eu te amo” entre roncos. A hóspede do quarto não conseguiu entender para quem se dirigia aquela frase, mas antes de pensar muito, dormiu também.