O Relicário - Capítulo 1
Era uma manhã comum, o sol surgia em meio aos prédios clareando o céu cinza, sendo o último assim por conta da fumaça sufocante. Os pombos voavam rente ao chão em busca de migalhas salpicadas no asfalto quente e sujo, famintos. As pessoas andavam a passos largos em todas as direções rumo a seus empregos e olhos vidrados em telas. Os carros e motos, gélidos, alertavam sua passagem com os roncos ensurdecedores e buzinas agudas.
Numa rua qualquer, uma jovem caminhava cabisbaixa, olhando a calçada suja de bitucas de cigarros e outros lixos. Usava um uniforme escolar coberto por um cardigan preto de estrelas brancas e uma calça de moletom. Além disso, a garota tinha olhos verdes e um galhardo cabelo azul marinho adornado por uma presilha de mesmo formato dos desenhos da roupa. Uma mochila comum preta estava em suas costas e um tênis branco completava o look.
No pescoço, havia um relicário lindo com uma joia violeta no centro, rodeada por uma borda dourada. Tal item tinha ainda um laço borboleta branco que dava elegância à peça. Esta não apresentava riscos ou defeitos
Enquanto andava, ouvia os empresários ricos reclamando não conseguirem viver apenas tendo oito salários-mínimos. Uma mulher chorava porque ela perdeu seu celular de última geração e outro ainda alegava largar a namorada por ter visto uma mais bonita.
Conversas medíocres como essas foram soando durante todo o seu trajeto. Aquela menina continuou seu caminho pela calçada irregular e nojenta até uma escola abandonada, onde entrou sozinha.
A instituição parecia estar fechada há pelo menos 30 anos. As paredes descascadas e vandalizadas e o lixo espalhados apenas complementavam o estado deplorável do lugar. A tristeza cobria o rosto esbelto de pele clara da moça. Deixando a mochila largada próximo a um pilar, a jovem foi mais adentro da escola, reparando nos defeitos da estrutura.
— Não consegue viver com tanto dinheiro? — criticou ela — Eu tento viver usando um dinheiro que mal põe comida na mesa! O mundo acabou porque você perdeu uma porcaria de celular? A vida não roda em torno de uma mimada! Trocou a namorada por beleza… Falta de vergonha e decência! São pessoas como vocês as culpadas por esse mundo ser tão repulsivo!
Mordendo os lábios trêmulos e com lágrimas escorrendo, a garota soluçava, enquanto se queixava da sua vida e dos motivos os quais a tornavam tão desagradável. A infelicidade, a raiva e a inconformidade estavam estampadas nitidamente em sua face e seu choro ecoava pelos corredores e salas vazias da escola.
Seu sofrimento atingiu um ponto insuportável, até a garota sentir algo esquisito. O mundo parecia girar, como se ela estivesse bêbada. O chão figurava ao não existir. A tontura já aproximava da náusea e a cabeça girando lembrava um carrossel. Com esses sintomas se agravando, ela viu de relance uma luz forte sobre sua cabeça, mas antes de distinguir algo, sua visão escureceu e a infeliz desmaiou.
…
Dentro de um sonho, a menina viu dois olhos roxos brilhosos que pareciam furiosos, mas antes de ver qualquer conteúdo a mais, ela acordou. Ela estava desorientada, com visão mal focada e ainda um pouco zonza.
Ela se via envolta em um cobertor macio e quente, cujo tecido lembrava o luxo da burguesia do período feudal. A cama, feita de madeira maciça, remetia à mesma época. Apesar de atordoada, pôde pensar em um ponto muito importante: “onde diabos estou?!”
À medida qual recobrava sua consciência, ela ia reparando no tanto de coisas esquisitas se viam presentes naquele quarto misterioso.
O cômodo continha livros antigos em línguas desconhecidas sobre prateleiras de madeira. Uma escrivaninha comum da idade média feita em madeiro, pintado de branco e detalhes em dourado, se localizava à direita da cabeceira da cama. Do lado esquerdo ficava a parede, onde uma janela coberta por uma cortina branca se destacava.
O teto era de mármore e parecia ser robusto, significando que o dono tinha poder monetário. O travesseiro onde a menina repousava sua cabeça era tão fofo quanto uma nuvem. Nem dava vontade de se levantar porque a cama era muito, mas muito confortável, contudo, aquele lugar era um mistério, então a jovem deveria sair dali o mais rápido possível. Ao pensar nisso, ela pôs a mão nos bolsos e no corpo pensando:
“Me roubaram? Está tudo comigo?”
Pronta para sair, a porta no canto mais distante se abriu. Aproveitando um garfo de prata visto em cima da escrivaninha sobre um prato sujo, ela o pegou e o apontou em direção a porta.
Da entrada aberta, veio um velho de cabelos secos e grisalhos. Uma grande barba branca cobria seu rosto abaixo do nariz longo. Seus olhos de cor acinzelada expressavam tranquilidade, ao mesmo tempo como se uma mágoa antiga o atormentasse. O homem usava roupas compridas e amarelas com uma estampa de crisântemos, parecendo um mestre de artes marciais de filmes de luta de longa data.
Tendo comportamento similar a qualquer pessoa de juízo, a menina ficou em posição de guarda e tremendo de medo. A mesma falou usando um tom de voz bem alto, tencionando demonstrar segurança, entretanto, isso só a fez parecer mais medrosa.
— Opa! — Exclamou o idoso de mãos levantadas — se acalme! Não vou te machucar. Pode ver, estou desarmado. Agora, por favor abaixe esse garfo.
Ele se questionou quem seria responsável pela ideia de jerico de deixar um garfo perto de alguém que não conheciam.
— E lá vou saber se não vai fazer nada comigo? Nem te conheço! Até onde sei, você pode ser o sequestrador quem me fez desmaiar ou algo do tipo!
— Bom argumento! — disse o velho procurando uma réplica adequada.
Em meio a conversa, ela aproveitou para estudar a área e teve uma conclusão:
Primeiro, a cortina presente na única janela existente tornava o plano de saltá-la muito arriscada.
Segundo, notou estar sozinha com o velho. No entanto, não tinha certeza se alguém vigiava do lado de fora. Decidiu assim esperar avaliar melhor a situação antes de escapar.
Quando finalmente a fez abaixar o talher pontiagudo, o homem passou a falar explicações muito… diferentes.
— Ouça, minha jovem. Eu não sou nenhum sequestrador, ou coisa parecida. Meu nome é Arnold Kreiss. Sou um mago especialista em magia de eletricidade. Transferi você daquele mundo no intuito de garantir sua ajuda em um grande problema o qual estamos lidando.
— Então… fui invocada de um mundo paralelo?!? — indagou ela, franzindo a testa — isso não tem um pingo de sentido! Magos, magia, mundo paralelo… é tanta baboseira numa historinha apenas… me sinto ofendida só de pensar ser essa sua maior ideia de mentira com intenção de me enganar. Fala sério!
— Seu pensamento é bastante previsível e natural, pois no mundo onde você foi enviada não existem mesmo, mas é verdade. Usei minha magia visando te trazer aqui.
A garota continuou sem acreditar em letra nenhuma proferida pelo idoso e ela foi questionando-o na expectativa de encurralá-lo em alguma vírgula e o pôr em xeque, porém não obteve êxito. As palavras dele pareciam transparentes, mas ainda era impossível acreditar, tendo em vista que não há como um ser humano em sã consciência acreditar ter sido teletransportado de um mundo ao outro.
Apesar de não conseguir a convencer com seus “fatos”, aquele desconhecido continuou repetindo asneiras até notar a ineficácia de suas falas e decidiu fazer uma demonstração:
— Está bem, não posso te convencer pelas palavras, portanto, irei te provar!
No início, ele pôs suas mãos sobre o peito e a jovem já sacou sua arma de comer coisas em direção ao homem novamente. Depois, o senhor murmurou palavras inaudíveis e então, uma bola de fogo verde saiu da mão dele. Misteriosamente ela não queimava a palma do velho. Após surgir, a chama se elevou até o teto, onde se dissipou e virou uma neve branca como algodão. Mesmo sendo magnífico, para o azar do velho, ela respondeu:
— Seu show não me impressiona. Eu mesma sei fazer esse truque. Para a chama verde, basta adicionar cobre no fogo e seus comparsas aproveitam que a vítima está distraída e geram neve falsa com poliacrilato de sódio e água, e aí, jogam por cima dela. Além do mais, você não disse ser o “mestre de eletricidade”? Onde está sua coerência?
O homem ficou deprimido ao escutar isso e reclamou baixinho ter gastado anos até dominar magia, e a jovem simplesmente dizia ser mentira a partir de explicações as quais ele não compreendia.
Após se recompor, o idoso tentou demonstrar outra magia: ele levantou as mãos e gerou uma volumosa onda de correntes elétricas. Embora evidente a alta voltagem, as mesmas não causavam danos. Desta vez, ela bocejou. Falou ser aquilo fruto de geradores e/ou bobinas de Tesla emitindo eletricidade, a qual passava pelo corpo dele por uma malha de ferro.
Mais uma vez o suposto mago ficou pra baixo e pensava intensamente no que fazer. E esse método de tentativa e erro prosseguiu por uns cinco minutos e ainda assim, a moça persistia em dizer tudo se tratar de uma completa balela. Ele já estava ficando irritado quando jogou sua última ficha: o desconhecido foi à porta e pediu à moça olhar algo presente do lado de fora. Ela interpretou como uma chance de escapar e fingiu obedecê-lo.
Ao olhar rumo ao lado de fora, quando os olhos se adaptaram à luz, ela teve uma tremenda surpresa. Eles estavam em um lugar onde a fumaça tóxica dos carros e das indústrias não os alcançava. O ar era limpo e fresco. Não se podia ver prédios nem casas deturpando a visão. Estavam numa espécie de campo, ou zona rural até então fora do conhecimento dela ou de alguém. Tudo o que havia era um muro de três metros responsável por delimitar a residência.
À frente do portão onde estava a cerca alta de pedras, havia uma alta floresta exuberante, com arbustos e folhas tão verdes as quais pareciam nunca ter visto a poluição. Dentro daquele denso aglomerado de árvores, podia-se ver criaturas um tanto quanto novas.
Um exemplo foi um javali o qual movia a terra a sua volta para lhe facilitar a locomoção. Dizendo assim, não parece ser tão fantástico, porém ele não encostava no solo. O bicho apenas passava por perto e o solo fluía como água entre seus cascos, semelhantes a rochas. A terra se mexia na intenção de remover obstáculos e aplainar o caminho passado pelo animal.
A cena era de tirar fôlego, mas o melhor ainda estava por vir. Um dragão negro enorme dormia próximo do portão.
Mesmo a menina não crendo antes, sua opinião passou a ser diferente. Os detalhes em seu corpo escamoso eram tão intricados a ponto de ser impossível ter origem de obra humana. As grandes garras do dragão pareciam tão afiadas que poderiam certamente cortar uma pessoa desavisada num bobo peteleco.
Tremendo de espanto, ela apontou à criatura lendária e gaguejou:
— U-u-u-um d-dr-dra-draga-
— Exatamente! Um dragão! Negociamos com ele para ficar conosco. Mais tarde lhe explicaremos melhor, Yumina.
O fascínio da menina se dissipou de uma vez ao ouvir a frase, porque Yumina era seu nome e em nenhum momento ela havia o mencionado. Isso levantou suspeitas: como ele saberia seu nome? Ela revistou seu corpo, conferindo se tudo estava nos conformes
Arnold percebeu a inquietação dela e respondeu:
— Se está imaginando que sei seu nome por ter pegado algo seu, está enganada. Eu já te conhecia há tempo.
— Como?
— Isso é algo tal conversaremos quando todos estiverem presentes.
— “Todos”? — expressou Yumina, confusa — tem mais gente aqui?
Antes de Arnold prosseguir, outra pessoa apareceu calmamente a passos curtos e delicados parecendo uma legítima dama. Era uma jovem da mesma forma que Yumina, mas ela era bem diferente. Ela tinha um estonteante cabelo loiro curto. Seus olhos eram como rubis puros cor de brasas vermelhas.
— Mestre Arnold, — disse ela — eu terminei de fazer o almoço e… ei! Por acaso ela é a novata?
— Sim. Ela acabou de acordar. Ah! Pois bem, Yumina, essa é Lily Silva. Uma cavaleira usuária de magia de fogo. Lily, Yumina; Yumina, Lily.
— É um prazer te conhecer! — Saudou a cavaleira, segurando delicadamente a mão dela.
— Mas então, Arnold, onde estão eles? Não os encontrei.
— Devem estar no campo de treinamento. Já sei! — Exclamou o mago erguendo as sobrancelhas — Que tal irmos juntos, enquanto a nossa convidada conhece a casa?
A recém-chegada concordou e partiram todos ao intitulado “campo de treinamento” e, em meio à caminhada, ela pôde admirar a inédita paisagem e a arquitetura interessante daquele imóvel.