O Monarca do Céu - Capítulo 177
SEGUNDO ATO – INÍCIO.
Capítulo 177 – Mercenários.
Meio ano atrás, o continente havia sido lançado em uma impiedosa desolação decadente. Após a queda da grandiosa Ultan, todo território que fez parte do grande império passou a ser uma zona de conflitos intermitentes. Haviam aqueles que buscavam glória de ascender como novos imperadores, outros, desejavam fazer seu nome a fim de chamar atenção de ducados menores.
Sem Ultan assumindo as rédeas, os vilarejos dominados pelo império se separaram em pequenas vilas e cidades, separadas por vastos ermos que lutavam pela sobrevivência e mantinham um tímido comércio entre si.
Não foram só o número de assassinos, ladrões e estupradores que tiveram uma considerável crescente, a própria natureza se tornou ameaçadora em muitos lugares. Florestas verdejantes se tornaram lugares sombrios e decrépitos, infestados de fungos, vermes e outras abominações indescritíveis.
Algumas vilas e cidades afortunadas conseguiram erguer muralhas, enquanto aqueles mais miseráveis permaneceram à mercê de bandidos e monstros que costumavam espreitar principalmente à noite.
No meio das montanhas, onde bandidos costumam fazer sua morada, uma matilha de lobos selvagens alimentava-se do cadáver fresco de humanos. O cheiro de sangue fresco não atrairia apenas lobos, mas criaturas bem mais difíceis de lhe dar como carniçais ou Gnolss, seres que raramente se via seis meses atrás, mas que existiam agora aos montes.
Na calada da noite, dentro de uma cabana usada para reuniões em grupo, um homem estava sentado em uma cadeira com um saco na cabeça.
O saco foi retirado, revelando um homem de meia-idade castigado pelo tempo.
— N-Não me machuque! — Sua barba longa escondia sua boca.
Aquele homem viu três pessoas cobertas por capas negras, e a sua frente estava uma mulher com olhar frio. Um homem alto estava com os braços cruzados no canto e a outra mulher estava agachada sacudindo três caudas enquanto observava entretida ratos devorarem o braço decepado de outro homem.
— Você é bem difícil de achar, Ibras, o salteador. — A mulher jogou o capuz para trás, revelando seu rosto com uma mancha avermelhada do lado direito, cabelo loiro na altura dos ombros e uma bela feição.
— V-Vocês! — Os olhos dele arregalaram — Têm ideia do que fizeram aqui?
Alunys conjurou uma adaga de gelo e cravou na coxa de Ibras que deu um ribombante berro, capaz até mesmo de espantar os lobos do lado de fora.
— Sua…
— Responda tudo que eu perguntar, entendeu?
— Vai pro-
Alunys sacudiu o cabo da adaga e Ibras tornou a berrar.
— Tá! Eu entendi, entendi, inferno!
— Bom garoto. Onde está o dinheiro do duque Otto?
Ibras engoliu o seco.
— Então estão trabalhando para ele agora? Hehehe Isso não me surpreende, típico de prostitutas de moedas como vocês! — A coxa de Ibras começou a congelar, um gelo que queimava. — Está na caverna! Na Caverna, droga!
— Seja mais específico!
— Aquela atrás do rio Revony, tudo que roubamos daquele desgraçado está lá!
Alunys assentiu.
— É melhor que não esteja mentindo. Sabemos onde seu filho e sua mulher residem, ou melhor, sabemos onde se escondem. Tente escapar com elas e nós faremos você assistir enquanto elas morrem lentamente, estamos entendidos?
— Tsc… Como vocês…
Crash!
Alunys retirou a adaga da coxa de Ibras, que deu outro berro e caiu da cadeira apoiando a mão na coxa.
— Vamos precisar dos seus serviços, salteador, quando receber nosso chamado, é melhor que atenda. — Alunys cobriu a cabeça com o capuz e se ergueu.
— Uma última pergunta. — Foi a vez de Colin se aproximar — Estou procurando uma mulher, cabelo preto, olhos verdes e muito bonita. Ela deve estar grávida de sete meses. A barriga dela deve estar enorme agora.
Ibras abriu um sorriso de canto.
— Uma prostituta? Hehehe Somente prostitutas ficam grávidas nesse inferno.
— Você a viu?
— Não! Satisfeito?
Colin agachou, apoiou o joelho no peito de Ibras e segurou seu pulso.
— Ei! O que está fazendo?
— Isso é pelo trabalho todo que tive para te achar.
Crash!
— Aaaaa! Meu braço, seu Elfo de merda! Seu fodido desgraçado!
— A gente se vê, Ibras. — Colin ergueu-se — Se eu fosse você me apressaria para sair logo daqui. Esse lugar deve ficar cheio de monstros em minutos.
— Seu…
Colin e suas companheiras deixaram a cabana enquanto Ibras continuava desferindo gritos de baixo calão sem parar. Alunys suspirou, como se tivesse tirado um peso enorme dos ombros.
— Por que esses caras nunca se entregam de primeira? — ela indagou.
— Você se entregaria?
— Não…
Colin deu dois tapinhas no ombro dela.
— Vamos para caverna, quero descansar ainda hoje.
Leona tinha a forma de uma pandoriana adolescente com cerca de treze anos. Ela puxou a capa de Colin duas vezes, fazendo olhar para baixo.
— Mestre, estou com fome.
— Se pegar o dinheiro na caverna, você poderá comer quantos ratos fritos quiser.
— Isso é sério? — indagou empolgada.
Colin assentiu.
— É sim.
— Tá, o que a gente tá esperando? Vamos!
…
Não faltava muito para amanhecer.
Colin e Alunys estavam sentados do lado do outro. O errante comia uma maçã e Elfa balançava os pés sentada em uma pedra enquanto lia alguns documentos.
— Isso não faz sentido. — Disse ela.
— O quê? — indagou Colin de boca cheia.
— De acordo com esses documentos, os Agoureiros têm se movimentado de maneira estranha, parece que até estão indo para uma guerra.
Colin assentiu.
— Pegou esses documentos aonde?
— Dos salteadores que derrotamos semana passada. Olha! — Ela entregou os documentos para Colin que os leu com calma.
Os documentos eram anotações que funcionavam como inventário, com data e hora marcada. Nas últimas semanas, o grupo de mercenários conhecido como Agoureiros movimentou uma quantidade exacerbada de armas e armaduras.
— Acha que eles querem invadir alguma cidade murada? — indagou Colin.
— Não sei, mas seria muita estupidez. Os agoureiros não são tão numerosos assim para tentar uma invasão.
— A segurança das vilas e pequenas cidades também estão horríveis. Só ontem no ducado soube de três estupros e seis assassinatos.
Colin devolveu o papel para a Elfa, que guardou no interior da capa.
— Eles estão ficando sem recurso. — Ela respondeu — As terras cultiváveis foram tomadas por monstros, então eles não conseguem produzir nada, e os preços estão elevados, sem falar que o duque não para de aumentar os impostos.
— Bom, ele tem que pagar os mercenários que contrata, e mercenários que conseguem retornar de uma missão são bem raros. A gente é sortudo.
Alunys assentiu. Mexeu na bolsa que ficava na altura de sua cintura e a pegou, retirando um cantil cheio d’água.
— Já fazemos trabalhos para o duque há quase um mês, não acha que é hora de irmos?
— Acho. Assim que entregarmos o dinheiro para o duque vamos embora.
Ela bebeu metade da água do cantil e suspirou.
— Para onde vamos? Valéria?
Colin assentiu e coçou a nuca.
— Sim. Os Elfos da Floresta devem saber de alguma coisa sobre Brighid, certo?
Alunys abriu um sorriso de canto e assentiu. Apesar de suas esperanças estarem baixas, ela não queria transparecer isso para Colin de maneira alguma.
Escutaram passos atrás, e quando viraram, avistaram Leona segurando um saco gordo de moedas.
— Você foi rápida. — comentou Colin.
— Eram todos fracos e Lentos, não foi desafio para mim. — Ela fez beicinho — Depois da queda de Ultan, parece que as pessoas fortes estão todas mortas. Isso está ficando chato.
Colin ergueu-se e apanhou o saco de moedas das mãos de Leona, jogando-o sob seu ombro.
— Trabalho fácil significa dinheiro fácil.
Leona cruzou os braços e continuou fazendo beicinho.
— Você não precisa de dinheiro. Ainda tem aquelas, milhares de moedas que pegou vendendo joias do Norte ao gigante do poço.
Colin abriu um sorriso de canto.
— Mais moedas são sempre bem-vindas. Melhor apressarmos o passo, é um longo caminho até o ducado.
…
Após caminharem por algumas horas, finalmente chegaram no ducado, cercado por altos muros de madeira na forma de estacas. Colin era conhecido naquele lugar, então adentrou sem problemas.
Era um lugar penurioso.
O chão tinha bastante lama, as pessoas portavam um olhar desesperançoso e cheio de angústia. Enquanto a maioria da população era magra, quase esquelética, os guardas eram o completo oposto.
— Vem, Alunys! — Leona pegou a mão dela — Vamos comer, deixa que Colin acerte tudo com o duque!
— Leona, não me puxa tão forte!
— Tá, desculpa…
— Podem ir. — disse Colin — Alcanço vocês mais tarde.
Elas assentiram e Leona arrastou a Elfa para a taverna mais próxima. Colin caminhou por alguns minutos até adentrar o castelo do duque, que mais parecia uma ruína de tão destruído.
O errante não foi impedido de adentrar, mas olhos cheios de fúria o encaravam. Chegou em uma sala que o duque apelidou de sala do trono. Não era nada mais que um salão amplo com alguns de seus servos ao lado de uma grande cadeira que ficava no fim de um extenso tapete avermelhado.
Corpulento, de bigode encaracolado e vestindo trajes de gala, o duque estava sentado em sua cadeira ornada que apelidou de trono.
— Senhor Colin! — O duque abriu um sorriso — Tenho ficado mais feliz em ver você do que a mais bela das meretrizes do bordel no fim da rua, se aproxime, meu amigo!
Colin ficou a metros do duque e jogou o saco de moedas no chão.
— Tá aí o que queria.
Os olhos do duque brilharam de felicidade após ver tantas moedas.
— Fantástico! Como sempre, um homem de palavra. — Ele olhou para seus servos — Rápido, deem a recompensa ao meu amigo.
Os servos foram rapidamente até os fundos e retornaram com um saco de moedas, entregando para Colin após uma reverência.
— Aqui está seu pagamento, meu caro.
Colin assentiu e deu as costas, mas o duque o chamou.
— Senhor Colin, eu gostaria de propor algo.
— Nosso trabalho acabou, duque, não tenho mais nada com você.
Os guardas franziram o cenho. A língua afiada de Colin sempre deixava os guardas em alerta. Após engolir o seco, o duque saiu de seu trono e foi até Colin.
— Senhor, tenho certeza que é uma proposta irrecusável, por que não vem jantar comigo a noite e a ouve, há?
— Não acho que seja uma proposta tão boa que me faça ficar.
O duque apoiou uma das mãos no ombro de Colin.
— Soube que andou fazendo perguntas sobre uma bela mulher grávida, hehe-
Grab!
Colin se moveu rapidamente, agarrando o pescoço do duque.
Os guardas sacaram suas espadas e apontaram para o errante.
— Solte o duque! — ordenou um soltado — Ou enfrente as consequências!
Colin o ignorou completamente. Apesar de sua atitude ser de uma pessoa impulsiva, seu semblante estava calmo, enquanto o duque se esforçava para pegar algum ar.
— S-Senhor Colin! — esforçou-se o duque — T-Tenho contatos, posso ajudar você a encontrar essa mulher, se me ajudar…
Colin o soltou, e os joelhos do duque bateram no chão. Soldados estavam preparados para avançar, mas o duque ergueu a mão os impedindo.
— Não! Não o ataquem, vocês seriam massacrados! — Ele recuperou o fôlego — Venha jantar comigo, senhor Colin, juro que não se arrependerá!
O duque sempre teve objetivos escusos. Colin não fazia ideia do que ele iria propor, mas ficou curioso.
— Tudo bem, ao anoitecer estarei aqui.
Ele caminhou lentamente para fora enquanto os guardas abriam espaço ainda segurando suas espadas.
Alisando o pescoço, o duque abriu um sorriso orgulhoso. Ele tinha grandes expectativas em Colin.
Colin tornou a caminhar pelas ruas enlameadas observando toda aquela pobreza desoladora.
Havia pedintes a cada beco sórdido daquele ducado, sem falar que assaltos e outros crimes aconteciam abertamente a luz do dia. O ducado não resolvia casos desse tipo, guardas diziam que não tinham tempo, apesar de mais da metade deles passar o dia em bordéis ou tavernas.
— Moço! — Ele olhou para o lado, vendo uma garotinha que tinha no máximo doze anos — Não quer se divertir um pouco?
A garota, vestindo trapos, suja de fuligem e magrela, levantou o vestido até a metade das coxas e abriu um sorriso forçado. Colin sentiu pena, mas não deixou isso externalizar.
Ele enfiou a mão no paletó, pegou cinco moedas de prata e caminhou até ela entregando as moedas em sua mão. Mercenários como ele ganhavam bem, mesmo que fizessem trabalhos pequenos.
Cinco moedas de prata serviam para que ela se alimentasse bem por pelo menos um mês inteiro.
Os olhos dela brilharam e ela mal conseguiu conter a emoção. Para ganhar algo como aquilo, era necessário se prostituir por pelo menos três meses, isso se ela dormisse pouco entre os intervalos.
— Senhor… eu não posso aceitar, é muito dinheiro…
Outras prostitutas já haviam dito a ela que clientes que normalmente ofereciam muito dinheiro gostavam de fazer de tudo, inclusive coisas que colocasse a vida delas em risco. Colin era alto, tinha um semblante amedrontador e era bem forte. Depois que a emoção momentânea do dinheiro passou, ela suspeitou que ele pudesse ser esse tipo esquisito de cliente.
Olhando para trás dela em um beco, Colin viu dois garotinhos de mãos dadas encarando a garota. Eles pareciam bem aflitos com a situação.
“Devem ser irmãos dela…”
— Eu não quero nada com você. Use isso para comer, comprar roupas novas, dormir em uma cama quente.
Virando de costas, Colin continuou a caminhar pela rua. A garota limpou as lágrimas no canto dos olhos e se curvou.
— Muito obrigada!
Ele deu um tchauzinho de costas, e os irmãos dela firam até ela com sorrisos tão genuínos que foi como se eles tivessem ganhado o melhor presente do mundo.
Em silêncio, Colin temeu que as crianças do ducado tivessem acabado daquele jeito. Era algo que ele queria afastar completamente de sua cabeça.
Ele ainda não havia perdido as esperanças de encontrá-los e encontrar também Brighid.
Às vezes antes de dormir, ele se lembrava das memórias juntos e passava horas acordado de madrugada olhando a foto no medalhão que havia ganho de Brey há um ano. Tudo isso o deixava melancólico. Pensava que se fosse mais forte, isso nunca teria acontecido.
Cansado, ele foi até um albergue.
Decidiu seguir um caminho diferente de suas companheiras que foram comer e resolveu dormir. Desde que chegaram ao ducado, era ali que passavam as noites, mas ainda era dia.
Sentou-se na cama, suspirou e deitou com as mãos atrás da cabeça. Com os pés, tirou os sapatos sujos de lama e fechou os olhos após um longo suspiro.
Ele tentou pegar no sono, mas era difícil.
Escutava choro de criança, barulho de gente apanhando no beco ao lado do albergue, escutava prostitutas chamando homens para seus quartos e homens que vês ou outra abordavam um desavisado oferecendo produtos mágicos.
Aquele era um lugar bastante caótico.