O Legado Negro - Prólogo
No gigantesco universo, muitas coisas costumam acontecer e uma das mais comuns é o conflito. Civilizações lutam constantemente entre si desde o início dos tempos. Diversas naves, com os mais distintos tamanhos e tipos estão se digladiando violentamente. Dois lados se atacam mutuamente, lançando violentos disparos plasmáticos. Os raios lasers percorrem em diversas direções, reverberando diversos tons cromáticos.
O “caixão” era uma das espaçonaves mais temidas. Seu enorme poder de ataque fazia jus ao nome. A forte blindagem, junto de dezenas de disparos simultâneos faziam deste veículo um dos mais temidos do universo conhecido. A civilização que o produziu foi dizimada e levou consigo o segredo de sua construção. Contudo, as poucas máquinas restantes eram suficientes para destruir diversos exércitos.
As naves batedoras, chamadas de “pardais”, sobrevoavam mais distante dos dois “caixões”. Estas não tinham poder muito grande, mas eram velozes e conseguiam ser perigosas quando agiam em bando. Por fim, naves muito parecidas com vagões levavam algo que parecia ser bastante precioso. Diversas pardais foram abatidas para não deixar o inimigo se aproximar destes vagões.
O inimigo, por sua vez, era muito feroz e possuía naves de ponta. A principal força batedora era composta por espaçonaves redondas, que disparavam em diversas direções ao mesmo tempo. Junto delas, uma versão melhorada dos “pardais”, focada na direção. E finalmente, um dos melhores veículos do planeta Zentria… A Nazir! A nave que alcançava velocidades inimagináveis, com dois pares de armas de raio laser em cada asa. Na parte superior de seu casco, estava alocado um canhão plasmático de grosso calibre. Na dianteira, outro armamento, que apesar de drenar muita energia do motor, conseguia destruir meteoros com seu poder.
A Nazir era guiada por um ser, que por falta de definição melhor, deve ser chamada de fêmea (ou algo assim). Uma exímia engenheira e pilota militar. Sua experiência não era das mais vastas, entretanto, sempre se destacou diante das missões. Desde que entrou para a força aeroespacial, se tornou uma pedra no sapato dos traficantes. Sua ousadia ajudou a libertar diversos povos, enquanto gerou prejuízo ao destruir dezenas de naves inimigas e prender membros importantes. Tanta eficiência a transformou em alvo. Em seu planeta, ela foi premiada com três medalhas de bravura. Os superiores acusaram-na de imprudência, apesar de reconhecerem seu valor.
A pilota grunhiu um som de queixa quando se viu cercada. Instintivamente, a resposta de fuga a fez disparar para abrir caminho. Então, acelerou sua nave até conseguir um pouco de distância dos inimigos e ativou seu motor hiperespacial. Acreditou que escaparia ilesa, quando no último momento foi atingida por diversos tiros que alteraram as coordenadas de seu veículo. Em meio ao caos da violenta batalha, a nave dela se perdeu, reaparecendo em uma galáxia desconhecida…
Brasil
1996
Contato
Luis tomava banho contentemente depois de suportar mais uma semana extremamente exaustiva. As cobranças dos superiores para o protótipo mecatrônico o deixaram muito cansado. A água escorria pelos cabelos longos, enquanto a mente permaneceu focada em sua esposa. O engenheiro havia planejado uma noite especial, onde o casal tomaria um bom vinho acompanhado de diversos queijos e ao final da fondue, uma tigela de morango acompanhados de chantili para anteceder uma noite amorosa.
O rapaz fechou o registro e secou-se com a toalha. Não queria sair pingando água pelo carpete do quarto. Ansioso, não conseguiu conter o sorriso malicioso. Sabia que ela o esperava com a mesma intensidade. Ouviu quando a mulher abriu a porta e sentou-se na cama.
– Já quer começar agor…? – A voz macia sumiu repentinamente. Espremendo os lábios, não conseguiu terminar a frase. Desgostoso, encontrou um homem sentado na cama. O desgraçado estava com a tigela de morangos no colo. O intruso comia despreocupadamente, parecendo não ligar para a presença de Luís. O rapaz suspirou profundamente e suprimiu a raiva. Estava acostumado a esconder suas emoções da mesma maneira que estava habituado com aquela pessoa muito inconveniente.
– Sanderson… – demorou alguns segundos antes de continuar. Era muito difícil manter-se calmo ao ver chantili sujando os lençóis – Você está comendo os morangos que reservei para eu partilhar com minha esposa?!
– Tô não! – respondeu cinicamente pouco antes de levar outro morango coberto com chantilly à boca.
– Se eu for na geladeira agora… – outra pausa – Vou encontrar os morangos que deixei lá?!
– É… Talvez eu esteja… – lançou um sorriso provocativo – Bem que eu deveria ter desconfiado, quando vim até sua casa, abri sua geladeira e vi escrito “não tocar, Sanderson!”. – Por mais estranho que possa parecer, era uma situação comum na vida de ambos. Luís e Sanderson conheceram-se na primeira série e nunca mais se separaram. Alguns homens da família branca do engenheiro comparavam-nos com “marido e mulher”. Talvez porque a dupla não fazia sucesso com as mulheres ou porque não aturavam que o pequeno Luís tivesse um amigo negro. Negro, não… Mulato! Termos aplicados a miscigenação eram comumente usados por pessoas claras para justificarem o racismo velado. Sanderson, descendente de nordestinos, tinha cabelos crespos raspados, pele escura, um nariz de batata estranhamente empinado e lábios grossos. A vida o castigou de diversas maneiras, o fazendo se sentir fraco e inferior. Uma das poucas soluções que achou foi recorrer ao cinismo. Alguns professores diziam que ele sempre tinha uma resposta pronta, como se tivesse bolado toda a situação em sua mente. – Mas assim… Não recomendo ir até à geladeira com a toalha na cintura. Sua filha ainda está acordada!
Luís colocou uma roupa e desceu para a sala de jantar. Sanderson o acompanhou silenciosamente. A esposa e a filha estavam petiscando os queijos.
– Acho que minha noite já acabou… – disse o cabeludo ao se sentar.
– Pelo contrário! Só está começando! – falou Sanderson, enquanto espetava um queijo com o palito – Esqueceu que tinha combinado de irmos para a praia?
– Você disse que estaria aqui as dezoito horas… E já são quase vinte e um!
– Engraçado… – Sanderson sacou o celular do bolso – Aqui está marcando seis e cinco no meu.
– Obviamente atrasou o seu relógio!
– Ou o seu está adiantado… Pode olhar pela casa, todos marcam seis e cinco.
– Como é?!
– Ele mexeu em todos os relógios da casa. – A esposa segurou a risada debochada.
– Justo. – Luís não queria continuar insistindo.
– Amor, vá com ele para a praia, já que você prometeu. Suas férias vão começar na segunda. Teremos tempo.
– Viu, corno? Terão tempo! Vamos logo.
– Depois que eu jantar. Você vai levar o carro. Está com sua habilitação?
– Sempre!
Depois do jantar e da sobremesa, eles guardaram algumas coisas no utilitário do Luís. Iriam acampar na praia. Saíram de Osasco por volta das vinte e duas horas. Nas estradas, o carro rugia como uma fera. O percurso até o litoral duraria pouco mais de duas horas, caso não houvesse nenhum contratempo.
– Vai oferendar para Iemanjá?
– Não sinto que devo, mas admito que sou um péssimo religioso.
– Cara, acho que estou mais na umbanda que você. E nunca pisei num terreiro!
– Eu vou de vez em quando.
A viagem prosseguiu sem problemas. Vez ou outra encontravam algum carro, mas o caminho era praticamente da dupla. Próximo a serra de Santos, foram parados por uma batida policial. Ao encostar o veículo, o cabo perguntou severamente:
– Você não é escurinho demais para dirigir um carro desses?!
– Como é que é?! – retrucou Sanderson pistola.
– Saia do veículo! – o policial lançou um olhar agressivo.
– Boa noite, policial. – Interveio Luís calmamente – O carro está em meu nome. Deixei meu amigo dirigir porque estou muito cansado. Estou com a documentação aqui, caso queira ver.
– Não precisa. – respondeu o policial amigavelmente. – Só de te olhar, a gente percebe que é uma pessoa honesta. Não queria te denegrir. Enquanto a você, – falou com Sanderson – tente não parecer tão suspeito da próxima vez!
– Falarei com ele. – respondeu Luís antes que o amigo o colocasse em apuros.
Quando o carro partiu, o motorista esbravejou:
– Aquele racista nem sabe o significado de “denegrir”! – o engenheiro permaneceu silencioso – Andar com um documento para provar que o carro é meu…! Tá! É a lei! Só que está nítido que ele pediu porque um negro não pode ter um carro bom!
– O carro não é seu…
– Vá se lascar, seu corno filho de uma égua! Ele só queria um motivo para me levar! É igual a época da escravidão, onde o negro alforriado tinha de andar com documento comprovando liberdade. Eu tenho de fazer o mesmo! Tudo isso porque os racistas não curtem ver um preto se dando bem!
Depois desse caso, ninguém falou mais nada. Luís não era de conversar muito e Sanderson era uma matraca que ficava excessivamente calado quando irritado. A única vez que abriu a boca foi quando viram um objeto incandescente rasgando os céus ser seguido por um som estrondoso. Um barulho que se assemelhava com diversas bombas explodindo em conjunto. Eles sentiram o chão tremer por um breve instante. Em seguida, viram uma luz que esmaeceu tão repentinamente quanto surgiu.
–Vamos ver o que é! – falou Sanderson pouco antes de sair do veículo para se enfiar na mata e correr em direção a explosão.
Relutantemente, a passos lentos, Luís seguiu seu amigo. Ele desejava saber o que ocasionou aquela explosão, afinal, também estava curioso. Entretanto, pensava nos riscos de uma explosão dessa magnitude ser muito perigosa. Além disso, havia a possibilidade de ocorrer reincidência. Enfim, quando ele deu por si, já estava no epicentro do estrondo. Ao ver aquilo, esqueceu do perigo de sua família ou mesmo de Sanderson.
As árvores estavam esmagadas, como se fossem feitas de papel e o chão “craterou” com a força do impacto. No meio disso, um veículo parecido com um avião de guerra. Entretanto, Luís sabia que a relação estava limitada a aparência. Ele não era especialista em aviação, mas conhecia bem as estruturas. Nunca tinha visto aquele tipo de armamento sob as asas. Prosseguiu andando curiosamente ao redor do veículo.
– Uma torreta? – perguntou ele para si mesmo ao observar aquele armamento de grosso calibre no topo da nave. Imprudentemente, ele colocou a mão direita sobre a estrutura do veículo. Seus pensamentos foram interrompidos por um som constante, porém suave.
Em uma abertura próximo às asas, uma rampa se estendeu até o chão. Aos poucos, Luís observava uma silhueta aparentemente humana sair do interior da nave. As luzes de emergência do veículo revelaram a criatura! Um ser de pele lilás e cabelos roxos encaracolados. Seu olhar perdido era realçado pelas írises laranjas. Seu nariz era achatado e lábios grossos. No ouvido esquerdo, um fone discreto. Ela vestia uma armadura preta, muito parecida com as roupas táticas usadas pela polícia.
Por sua vez, Sanderson observava a tudo maravilhado. Seu olhar era semelhante ao de uma criança. Lançou um sorriso alegre, porém nervoso. Quando a criatura surgiu diante dele, imediatamente sentiu o coração acelerar. Nunca tinha visto nada igual.
– Por favor, – disse ela ansiosa e levemente assustada – onde eu estou?
– Você… está na Terra. – respondeu Luís milagrosamente. A voz quase não saiu.
– COMO VOCÊ FALA PORTUGUÊS? – Berrou Sanderson completamente surpreso.
– Vocês sabem o que é um motor hiperespacial ou que abre caminhos entre o espaço? – perguntou ela com um tom deprimente, já esperando a negativa.
– Não… – respondeu Luís
– Droga! Vocês já ouviram falar de Zentria?
– Também não… – respondeu Luís.
– Ela está falando nossa língua e só eu acho isso normal… – disse Sanderson para si mesmo, enquanto os olhos giravam e fumaça saia por seus ouvidos.
– Meu motor foi avariado. E como nunca ouvimos falar daqui, acho que não conseguirei entrar em contato com meu lar. Nunca nem mapeamos essa região. É como se isso aqui não existisse… – disse ela em voz alta sem se referir a ninguém em particular.
– Você tem um manual ou coisa assim? – perguntou Luís – Eu sou engenheiro mecânico. Talvez eu consiga te ajudar.
– Tull! – respondeu a criatura mais contente – Eu tenho um pouco de conhecimento de motores. Com sorte vamos conseguir alguma coisa. As instruções estão debaixo do banco.
Luís, agora muito mais à vontade e relaxado, adentrou a nave. Pegou os manuais digitais, que estavam traduzidos em um português rudimentar. Achou o assunto mais difícil do que o esperado, contudo, acreditava que poderia compreender com um pouco de tempo. Ele adorava essas geringonças tecnológicas. Quando entrou na faculdade ficou em dúvida se estudava mecânica ou robótica. Desejava se especializar em ambos. Um homem muito inteligente… Um dos mais inteligentes do nosso tempo!
– Ei Luís, – falou Sanderson após ter seguido o amigo – todo esse barulho… Já devem estar sabendo. Não acha melhor ligar para a sua esposa? – em seguida ele se dirigiu à alienígena – Ele é casado, viu, moça? Aliás, você é mesmo uma mulher? Como fala nossa língua? De onde veio? Como você se chama? – o silêncio foi sua resposta.
A criatura manteve-se concentrada em seu trabalho. Ela preferiu ignorar as perguntas do Sanderson. Quando percebeu a maneira que ele a olhava, na hora sentiu repulsa. O rapaz era como os outros seres de seu planeta. Ser reduzida a um pedaço de carne a incomodava muito. Os malefícios da beleza…
– Seu amigo é sempre inconveniente assim? – perguntou ela para Luís depois de Sanderson repetir todas as perguntas pela terceira vez.
–Bastante! Especialmente quando algo chama a atenção dele. É mais fácil responder de uma vez. Isso vai levar um tempo…
– Certo. – disse ela depois de respirar profundamente – Eu me chamo Eneauf. Venho de um planeta chamado Zentria. É bem distante daqui. Possivelmente, se aparecer em suas lentes mais potentes, vocês nos verão como seres aquém de hoje. Eu sou uma oficial da força aeroespacial do meu planeta. É o setor mais emocionante das forças armadas. Eu estava investigando uma denúncia de tráfico espacial. Achamos que eram poucas naves, mas fomos surpreendidos! Não estávamos preparados para enfrentar um número tão grande.
– E aí? – perguntou Sanderson muito interessado.
– Há uns anos uma quadrilha de seres de diversos planetas ganharam a vida traficando seres de outros planetas. O universo é imenso, isso acaba gerando uma variedade enorme. Por exemplo, no caso de Zentria, nós temos um sistema imune que se adapta a velocidades em que outros só podem imaginar. Parece quase mágica! Aí que os traficantes entram. Só querem sequestrar nosso povo e utilizar essa habilidade. Mas isso não é nada. Já vi seres que conseguem curar os outros, alguns que se fundem ao material que tocam, outros podem controlar campos magnéticos e por aí vai.
– Entendo, – disse Sanderson bastante intrigado – mas por que vocês não tiram proveito dessa vantagem de vocês? Um sistema imune tão adaptativo poderia gerar curas que levariam a grandes lucros.
– Como eu disse, se adaptam, porém, não é sempre garantido. Nesta vastidão, também há seres que se adaptaram a matar com substâncias extremamente tóxicas. Na verdade, acaba sendo uma loteria. Muitos de nós que foram sequestrados acabaram em condições deploráveis. Injetaram coisas neles que resultaram em coisas que nem gosto de lembrar.
– Por isso você se expôs sem considerar os organismos de nosso planeta?
– Na verdade eu estava tão nervosa que acabei me esquecendo disso. Mas felizmente, eu tenho um sistema imune um pouco mais refinado que muitos de meu planeta. Além disso, num geral, não é um problema muito grave. Organismos sempre estão pulando de um planeta para outro. No máximo, uma vacinação preventiva.
– Eneauf, você usa muitos substantivos femininos. É uma fêmea?
– Bem, numa relação, eu geraria o embrião até o seu nascimento. Isso que quer saber?
– Exatamente! Eu disse “fêmea” por não saber se você era mesmo mulher. Porque não sendo humana, meio que acaba sendo um tipo de animal. Mas acho que não se aplica em seu caso, já que tem uma aparência humanoide. Se não fosse sua cor lilás, eu diria que você é uma negra. Uma muito bonita, por sinal!
– E por falarmos a mesma língua, tem a ver com meu microfone. Ele está ligado ao computador da minha nave, que entrou nos registros de idioma e está traduzindo tudo simultaneamente. Por isso seu amigo consegue ler o manual.
– É impressionante! – disse Luís se curvando sobre o motor – A linguagem não é nada além de algoritmos. Isso só mostra como estamos bem atrasados tecnologicamente.
– Se vocês viajassem pelo universo ficariam surpresos com quantos planetas poderiam conversar. – Continuou ela – Zentria cresceu através de uma política imperialista. Não é algo que nos orgulhamos atualmente, mas exploramos muitos planetas.
– Sei… – Sanderson tinha um tom reprovador.
– Mas tentamos compensar. Estamos ajudando os outros planetas a se desenvolverem. Além disso, formamos uma coalizão.
– Tipo a OTAN… – comentou Luís. – E essa pistola na sua perna, dispara o quê?
– Laser, contudo, numa intensidade mais fraca do que o laser da nave.
– Essa armadura, ela só serve para defesa?
– Basicamente, mas ela também possui um sistema de pulso eletromagnético. Há muitos eletrônicos usados como armas no espaço. Também há um sistema de camuflagem. Em caso de emergência, ela pode desprender-se do meu corpo.
– Esse formato da sua nave é bem diferente do que estamos acostumados. – falou Sanderson ao se lembrar dos filmes – Quer dizer, a gente sempre falou de disco voador. Pratos aéreos, sabe?…
–s Não têm aula de física aqui? – questionou Eneauf num tom óbvio – No vácuo, o formato não importa muito, entretanto, deve levar em consideração o arrasto ao entrar nas atmosferas.
– Por arrasto, ela quer dizer a resistência do ar. – explicou Luís.
– E não entendi por que você concordou com ela deu ser inconveniente. Sou apenas uma pessoa curiosa…
– Sanderson… – o engenheiro parou o que estava fazendo e olhou em direção ao seu chegado – Na sua formatura, você se vestiu de prostituta para homenagear a sua mãe, sendo que ela é faxineira. No último natal, você colocou meu número no orelhão e ainda escreveu “faço tudo” no anúncio. Eu sempre tinha medo da minha filha atender o telefone.
A conversa perdurou por pouco mais de duas horas e o trio acabou se entrosando. Para seres tão diferentes, aconteceu mais rápido do que alguém poderia imaginar. Eneauf teve sorte de pousar perto deles. Um local afastado e majoritariamente masculino costuma ser perigoso para as mulheres, mas estes são rapazes curiosos e respeitosos.
– Parece que terminamos! – disse Luís orgulhosamente.
– Agraciada! – disse Eneauf – Será o bastante para eu sair daqui e conseguir me aproximar de casa. Vou poder enviar um sinal com clareza. – O trio saiu da nave. A mulher colocou a mão aberta sobre o próprio peito e curvou o tronco levemente, reverenciando a dupla – Acho que não vou esquecer vocês e tudo que fizeram por mim. Muito agraciada!
Uma nova série de explosões! Uma saraivada de disparos partiu a Nazir ao meio. O ataque surpresa aturdiu o impotente trio. Sem compreender o que acontecia, não perceberam a nave acima de suas cabeças. O veículo recém-chegado aterrissou no chão bruscamente. Em seguida, o atacante lançou fachos de luzes intermitentes, causando uma cegueira temporária.
Um homem vestindo uma armadura robótica desceu da nave. Ele parecia com um androide saído dos filmes de ficção científica. Na palma das mãos surgiu uma espécie de espingarda. Apontou para os terráqueos e disparou dois cartuchos eletrônicos. Os rapazes gritaram de dor com uma intensa carga elétrica percorrendo seus corpos. O sofrimento não durou mais que três segundos. Eles tombaram inertes.
– Vou levar você viva, Eneauf! – a voz soava ameaçadoramente – Já se meteu demais em nosso caminho!
A criatura metálica apontou sua espingarda na direção da alienígena. Disparou mais oito vezes. Sabia como ela era perigosa e não ficou tão surpreso quando viu a mulher rolar para trás e esquivar de todos os disparos. Mas antes que ela pudesse tentar um ataque, os cartuchos retornaram em sua direção. Eram controlados a distância. Dessa vez, os objetos atacaram em diversas direções quase ao mesmo tempo. Eneauf desviava a muito custo. Quando conseguiu encostar na arma em sua perna, foi surpreendida com um violento golpe. O invasor usou os propulsores e a atingiu violentamente no meio das costas. A mulher foi lançada alguns metros, se chocando contra uma árvore. O tronco rachou com a força da pancada.
– Ai…! – gemeu ela se levantando. A armadura impediu que ela se ferisse gravemente. Os cartuchos já estavam em cima dela. Dessa vez ela conseguiu ativar seu pulso eletromagnético e os drones caíram. O robotizado tinha defesas em sua estrutura e lançou outro ataque de propulsão! Porém, ela conseguiu se esquivar. Girou o corpo para esquerda saindo do trajeto do golpe, em seguida deu um chute que jogou o inimigo contra as árvores. Sem perder tempo, a mulher correu para cima do seu atacante. Deitou seu corpo sobre o dele e descarregou sua pistola contra a cabeça. O capacete era extremamente resistente e os tiros pareciam apenas socos.
– Já chega! – esbravejou o invasor completamente irritado. Tentáculos emergiram dos braços e enrolaram por todo o corpo de Eneauf. A forte descarga elétrica gerou uma dor lancinante. Por mais que ela tentasse resistir, sentiu os músculos perdendo força. Em questão de segundos, ela desfaleceu. Contudo, o atacante arremessou o corpo dela contra o chão algumas vezes. Talvez medo ou simplesmente vingança. – Esse é o seu lugar! – ele arrastava o corpo desmaiado – O chefe vai adorar quando eu te entregar para ele! Mas o q…
Um raio laser foi a última coisa que o robotizado viu. Enquanto ele lutava, Luís tinha corrido até a nave restante. A breve leitura anterior no manual deu a ele uma noção de funcionamento. A violenta descarga energética aniquilou quase todo o tronco do invasor. Atrás dele, um rastro de destruição.
Sanderson se levantou vagarosamente. Meio trôpego, fez um sinal para que o amigo o ajudasse. Sabia que não teria forças para carregar o corpo de Eneauf sozinho. A muito custo, a dupla conseguiu encostá-la em uma árvore.
– O que houve? – ela estava meio baqueada.
– Nós destruímos o robô que te atacou! – disse Sanderson alegremente – A sua nave deu PT, mas você pode usar a dele. – Mal terminou de dizer estas palavras quando o veículo espacial explodiu. Nenhum deles imaginou, mas havia uma contagem regressiva que se iniciava ao fim dos sinais vitais de seu navegador.
– Acho que não voltarei para Zentria tão cedo… – lamentou Eneauf.
– Você pode ficar com a gente! – comemorou Sanderson sem disfarçar seu contentamento.
– Posso ser sua hóspede, Luís?
– Minha esposa não iria aceitar isso. Talvez você tenha de ficar na casa da mãe do Sanderson. – Luís conteve o riso irônico. Seu amigo não perdia essa mania de se engraçar com quase toda mulher que via. Tinha uma espécie de coleção, onde as classificava, de maneira muito machista, por tipos e etnias.
Antes do sol nascer, o trio abandonou as serras. Luís dirigiu apressadamente para ficar o mais longe possível daquele cenário de guerra. Uma hora depois, o local estava cercado de repórteres e autoridades militares. As emissoras de todo o país noticiaram o acontecimento. Contudo, eles não acompanharam as manchetes e dormiram durante toda a manhã.
Sanderson despertou um pouco antes de Eneauf. A mãe dele estranhou ao ver que o filho dormiu no sofá. Ele explicou o que havia acontecido na noite anterior. Detalhou a aparência da hóspede e pediu que a velha não surtasse. Ressaltou também a necessidade de manter sigilo sobre a situação da alienígena.
– Entendi. – Dizia ela com o clássico sotaque baiano – Não contar para ninguém!
Quando a zentrina despertou, a velha arregalou os olhos. Ela soluçou com o susto. Ambas as mulheres estavam desconcertadas e não sabiam o que falar. Sanderson observava-as sem dizer nada. Achava engraçado ver a mãe tão atônita e a interplanetária desconcertada.
– Fuefa, – disse Sanderson – essa é a Eneauf. Ela vai ficar com a gente por um tempinho. De buenas?
– Tá bom, mas ela só tem essa roupa? – perguntou a velha estranhando a armadura – Parece desconfortável.
– Minhas coisas ficaram em Zentria.
– “Magina”! Estou com umas roupas que a patroa deu. Vamos ver se alguma coisa serve em você!
A “Fuefa” pegou Eneauf pelo pulso e a levou para o quarto. Demoraram alguns momentos para voltarem. Quando Sanderson a viu, soube que a espera valeu a pena. A alienígena usava um vestido verde, que além de contrastar bem com a cor de sua pele, caiu muito bem no seu lindo corpo. Era a primeira vez que ela estava sorrindo desde que pisou na Terra. Um sorriso muito reconfortante, que fez o coração do rapaz acelerar. De todas as mulheres que existiam no universo, aquela foi a que mais o encantou.