O Legado de Giliard - Capítulo 3
Na manhã seguinte, Norman despertou de um sono agitado e, à medida que ele ia se lembrando dos fatos do dia anterior, uma dor aguda no lado esquerdo do peito tomava conta. A tristeza envolveu-o como uma armadura pesada, tornando cada mísero movimento um esforço doloroso. O mundo ao seu redor parecia desbotado, suas cores desvanecidas pela perda. Um pequeno sorriso triste formou-se em seu rosto enquanto se lembrava do hábito de seu pai de entrar em seu quarto sem bater a qualquer momento.
Porém, nunca conseguia ficar com raiva dele, pois seu pai sempre aparecia com um sorriso caloroso e o cheiro reconfortante de seu café favorito fazia com que se sentisse no paraíso.
No meio dessa tormenta emocional, foi tirado de seu estupor quando ouviu seu nome sendo chamado de outro cômodo, acompanhado da voz da sua mãe, um cheiro suave de biscoitos recém assados pairava no ar. Ele quis se aprontar o mais rápido que podia, o cheiro ainda estava fortemente no ar, e, devido a isso, uma poça d’água estava se formando em sua boca.
Dentro de si, ele sabia melhor: “Agora que o papai se foi, mamãe só tem a mim. Preciso ser forte por ela… Quero mostrar que ela não está sozinha, preciso ser mais do que nunca ser o ponto seguro dela.” Seus olhos lacrimejaram um pouco, mas ele apenas ignorou e caminhou em direção à cozinha.
Na noite passada, no silêncio da noite, a solidão cercava Yasmin, fazendo-a sentir como se estivesse navegando em um oceano escuro e sem fim.
A ansiedade mantinha sua mente em constante agitação, com pensamentos confusos e angustiantes.
Dormir era uma batalha. Seu corpo clamava por descanso, porém, ao fechar os olhos, ela não podia deixar de ver a mesma cena do corpo de Giliard pendurado, já sem movimento, se repetindo constantemente: “Meu marido foi brutamente assassinado em minha frente” ,era o que passava na mente dela.
Aquela cena forte ainda estava viva e fresca para ela.
Seu único alívio em meio à tempestade interna, era ao olhar para o pequeno garoto encolhido em posição fetal.
Ele parecia estar tendo um sonho ruim, uma lágrima escorria do rosto dele enquanto dormia. Yasmin não pôde deixar de limpar as lágrimas quentes que escorriam do rosto do seu filho. Ela acariciava os cabelos macios dele na esperança de talvez, somente talvez, acalmar o que seu filho estava sentindo.
Vendo as expressões faciais de Norman suavizarem e que seus esforços maternos deram frutos.
Yasmin levantou-se e foi vagarosamente para a cozinha. Ela sentia que sua mente recheada de pensamentos necessitava de uma forma de distração.
Suas habilidades na cozinha sempre foi um hobby que ela praticava ao lado de Giliard, e essas lembranças repentinas quase fizeram seus joelhos cederem, quase.
Yasmin pensou interiormente: “Mais do que nunca preciso ser forte, meu filho precisa de mim. Não quero que me veja como uma mulher fraca.” Ela cerrou os punhos em sinal de determinação.
Chegando à cozinha, ela ligou as luzes e rapidamente começou a vasculhar os armários, retirando vários ingredientes. Seus movimentos rápidos, aliada com sua perspicácia espacial fazia dela ótima em múltiplas tarefas. Logo, três fornadas inteiras de biscoitinho com formatos de animaizinhos e florezinhas estavam prontas. Um bolo majestoso com cobertura de chocolate estava sobre a mesa.
Olhando para um relógio de parede, notou que a madrugada, junto com o seu terror sombrio, já havia passado. Eram sete e meia da manhã, quando ela ouviu alguns estalos, eram as molas da cama.
Yasmin ponderou: “Acho que Norman deve ter acordado, devo chamá-lo? Farei isso, caso ele tenha acordado, ele não vai demorar a vim.”
— Norman, querido, o café da manhã está pronto.
“Parece que eu estava certa”, Yasmin pensou ao ouvir os passos dele ecoando até a cozinha. Ela estava virada para frente da mesa, colocando alguns confetes e mais chocolate no bolo, quando foi surpreendida com dois pequenos braços a envolvendo por trás em um abraço quente. Ela não resistiu e nem falou nada, apenas aproveitou.
Norman quebrou o silêncio dirigindo as primeiras palavras dita diretamente à sua mãe desde o dia fatídico:
— Obrigado!
Yasmin não sabia pelo que exatamente ele a estava a agradecendo, então ela apenas se virou, abaixou-se e deu uma leve beliscada nas bochechas do garoto e falou enquanto um leve sorriso e um semblante gentil se formava em seu rosto:
— Agora, pequeno, quero que você vá lavar as suas mãos para poder comer.
Norman assentiu e logo fez como sua mãe havia falado, juntando-se à mesa com ela. Quando algumas batidas rápidas foram ouvidas da direção da porta. Norman se levantou para abrir, entretanto, tão logo sua mãe se pôs à sua frente o impedindo.
Yasmin sussurrou:
— Não sabemos quem é, pode ser qualquer um, até mesmo soldados imperiais.
As batidas continuaram, até que a pessoa que estava batendo falou:
— Por favor, senhora Yasmin, abra a porta. Sou eu, Heitor.
Ouvindo isso, Yasmin soltou um suspiro aliviado e finalmente se pôs a abrir a porta. Aberta, ela pediu pra que homem entrasse e se assentasse junto à mesa com eles. O homem de pronto fez uma pequena reverência e fez como pedido.
— Primeiramente, senhora Yasmin, peço perdão pelo susto. Eu havia dito que apareceria somente à tarde, porém, lembrei-me que a porta estava trancada e não pude deixar de ficar apreensível com o pensamento de os dois ficarem presos nesse cubículo. Quero dizer, não essa porta — Heitor disse com um tom envergonhado.
Yasmin assentiu e pediu que ele comesse alguma coisa.
Depois que o mal-entendido foi esclarecido, o café da manhã seguiu normal, com apenas algumas poucas palavras. Heitor, percebendo que o rapaz havia terminado de comer, fez um pedido:
— Jovem Norman, Hana, a moça que você viu ontem na lojinha gostaria de lhe presentear com alguns livros. Poderia ir até ela para que eu e sua mãe possamos conversar a sós?
Norman, olhou para sua mãe como se estivesse pedindo permissão. Ela acariciou os cabelos dele e deu um belo sorriso. Levantando-se, foi até a porta, olhou para trás antes de sair, em sinal de despedida, mas logo se virou novamente e subiu as escadas, passou pelo estoque de livro, finalmente alcançando onde estava a lojinha.
No balcão, uma moça de óculos azuis, cabelos lisos e pretos estava absorta na leitura de um livro, e essa moça era Hana. Ela parecia profundamente envolvida e entretida com o livro, a ponto de fazer Norman ponderar se deveria interrompê-la. Por sorte, Hana notou sua presença e fez um gesto com a mão, indicando que ele se aproximasse. Norman seguiu suas instruções e se aproximou dela.
Chegando mais perto, Hana se inclinou e retirou um livro médio do meio dos seus seios, o que deixou Norman levemente surpreso e corado. Hana percebeu a reação do garoto e deu de ombros com naturalidade diante disso.
— Este livro é bastante famoso, por isso é muito procurado — explicou Hana, enquanto se levantava e voltava a concentrar-se em sua leitura. — A forma como ele explica os cristais é tão didática que até mesmo as crianças conseguem compreender. Como você sabe, os cristais são usados em tudo, desde lâmpadas simples até poder bélico. Compreender seu funcionamento é compreender como este mundo opera.
Norman pegou o livro com cuidado, como se fosse o bem mais precioso do mundo, e começou a folheá-lo. Além do conteúdo, ele também notou o leve aroma da senhorita Hana impregnado nas páginas, o que, embora agradável, tirava um pouco da sensação do cheiro das folhas que tanto apreciava. Ele suspirou ao pensar nisso.
Finalmente, dirigindo-se a uma pequena mesa e começou a folhear as páginas do livro com mais calma.
— Os cristais são formados no decorrer de milhões de anos. Esse material se acumula no fundo de oceanos, mares, lagos e, por vezes, na terra. Ele se forma através do processo de decomposição da matéria orgânica em bacias sedimentares, aliado a um processo denominado energização. Quando todos esses processos são atendidos, há criação dos cristais. — Norman leu baixinho.
Ele achou interessante, então prosseguiu:
— Os cristais são divididos em sete cores: vermelho, sendo o mais fraco, laranja, amarelo, verde, ciano, azul e roxo. Quanto mais energia tiver o cristal, mais forte será a sua cor.
Ele ponderou:
“Entendo. Nunca havia notado como tudo ao meu redor é feito com esse material.” O conteúdo do livro explicava detalhadamente como os cristais eram formados, desde a decomposição da matéria orgânica até o processo de energização. A leitura o absorvia, fazendo-o refletir sobre o mundo ao seu redor, enquanto olhava diretamente para a pedra roxa em seu peito.
“Não posso deixar de me perguntar se essa pedra também é um cristal e, se for, ela não parece estar ligada a nenhum sistema de energia. Então, qual será que será a sua função? Será que eu estou apenas pensando demais e isso tem apenas função estética?”, Norman pensou.
O livro, depois disso, não acrescentou muito, então ele o finalizou rapidamente.
Seus olhos, vez ou outra, vagueavam para além das palavras impressas, Norman, sentado à beira da janela, desviava o olhar para além do vidro, viu que o inverno havia abraçado a paisagem com firmeza.
O céu se apresentava em tons de cinza, pesado com nuvens carregadas de promessas de neve. A janela estava um pouco aberta, deixando o ar entrar em uma mordida de frio que era inconfundível, penetrando até os ossos.
Pequenos cristais de gelo dançavam em sua jornada do céu para a terra, criando um espetáculo etéreo que pintava o mundo de branco.
O chão estava coberto por uma fina camada de gelo, quebrando-se sob cada passo com um som crocante e efêmero.
“As pessoas tão felizes, passeando com seus filhos. Elas parecem estar se divertindo muito, enquanto eu sou obrigado a morrer de tristeza… nada mais justo do que um dia eu tirar o sorriso delas também… nada mais justo do que eu lhes apresentar o inferno também… O que estou pensando? Pelos deuses, elas não merecem isso; são inocentes…”
Para Hana, Norman parecia se deslumbrar com a beleza da neve. Ela o observava discretamente, notando um tamborilar ásperos dos dedos dele sobre a mesa. Ela se aproximou, trazendo consigo dois copos com chocolate quente e começou a conversar com o pequeno garoto.
Durante o tempo que o mancebo continuava sua conversa com Hana. Heitor e Yasmin estavam na sala, discutindo assuntos mais sérios.