O Horror de Portsworth - Capítulo 7
PARTE 7: TRANSPONDO O ABISMO
As pegadas dos sobreviventes deixavam rastros vermelhos no chão. Era o sangue dos que morreram e do próprio ambiente alienígena, ao mesmo tempo duro e frágil, esponjoso e resistente. Quanto mais fundo se entranhavam, menos sentido as coisas faziam. Não havia mais pedras, apenas o material de uma cor indescritível, que não parecia sólido, líquido ou gasoso. Seus cérebros o aceitaram como sendo completamente vermelho, para que não enlouquecessem.
— Vamos encontrar a criatura que criou isso. — Keiniz sentia-se quase anestesiado, após seu corpo liberar toneladas de adrenalina.
— É verdade… Tem um culpado maior por tudo isso. — Sandor sorriu, sentindo seus ombros mais leves. — Tem que haver.
No corredor ensanguentado, com ossos de Alderman, a estátua de Adran e o corpo de Lecram, um portal verde enervante tornava-se cada vez maior, até o momento em que Friynn pôde voltar ao mundo que pertencia. Suas garras e presas estavam maiores. Os olhos jaziam completamente brancos e brilhantes. Um vapor gélido escorria de sua boca. Maior e mais forte, ela havia alcançado sua forma suprema, mas não havia nada em seu interior para comemorar. Havia sido alterada pelo mal que caíra em Portsworth. Restava apenas cumprir seu objetivo primordial.
Chegara a hora de vingar-se de Sandor.
O túnel vermelho dera lugar a um extenso salão rubro, repleto de uma névoa cinza, com o mesmo cheiro da bebida oferecida no bar.
— Nós chegamos ao fim, eu tenho certeza. — Keiniz sentia cada pelo do seu corpo arrepiar-se.
— Eu não enxergo nada! — Sandor tentava dissipar a névoa, dando tapas no ar.
— AERIUM! — O mago conjurou uma ventania que varreu a névoa em instantes.
Finalmente, os culpados estavam à vista. No centro do salão, uma piscina prateada servia de lar para uma enorme massa de músculos, que poderia facilmente ser confundida com um cérebro gigante, se não fossem pelos fios de carne que o ligavam a sete entidades esverdeadas. Elas possuíam tentáculos no lugar da boca, olhos negros como piche, asas gigantes que os erguiam acima do chão e barrigas inchadas que os assemelhavam aos aldeões vistos na taverna, os mesmos que desciam pela passagem atrás de Sandor e Keiniz, cercando os sobreviventes.
— Era só o que faltava. — O mago contava doze camponeses, além das sete aberrações e o pseudocérebro. — Não dá para ficar pior.
Um rugido furioso calou o mago, mostrando-o que estava errado. Friynn jogou dois aldeões contra o chão, investindo contra Sandor, com um bote assassino. O guerreiro só teve tempo de erguer sua espada, afastando a feiticeira, que mordia a lâmina enferrujada, já repleta de rachaduras. Não duraria muito tempo.
— Iulgon’pha Hafan’wolgum Cthulhu! — as entidades voadoras começaram a rezar, fazendo a caverna tremer e uma aura prateada preencher o lugar. — Nyarlathotep lagna’hagaw niggurath!
— Então esses são os culpados! — Sandor afastou Friynn com um chute no estômago. — EU VOU FAZÊ-LOS PAGAR!
O guerreiro investiu contra a piscina prateada, mas quando tocou o líquido, sentiu a pressão ambiente aumentar ainda mais. Sua cabeça explodiria a qualquer momento.
— Papai, por que você não chegou a tempo? — A voz na sua cabeça era idêntica à da filha morta.
— Todos nós queimamos por sua culpa. — sua esposa inferiu, no interior da mente.
— Você não protegeu a vila quando precisava. — As palavras de seu pai foram as mais brutais contra os sentimentos do guerreiro. — É um fraco e covarde!
Sandor só pôde gritar em fúria, atraindo a atenção de todos os aldeões e também da demonificada Friynn. Keiniz aproveitou a deixa para abrir sua mochila, vasculhando-a desesperadamente.
— Eu preciso encontrar… — Em meio a tantos componentes, seus olhos não achavam o valioso item que poderia salvá-los. — Tem que estar aqui!
A mão de Keiniz parou a procura, interrompida por um braço envelhecido. Um arquimago corcunda e enrugado estava diante do jovem aflito.
— Não adianta lutar, meu filho. — Alexander Aring sorriu. — Nada nesse mundo vai ajudá-lo a sobreviver.
— Isso não é verdade.
— Ninguém vai chorar, se você morrer. — O velho possuía a mesma feição vilanesca de sempre. — Nem mesmo os deuses se importam com o que você tem para oferecer.
Por um momento, o jovem pensou em desistir. Tudo mudou quando seu pai apareceu. A ilusão dos inimigos havia saído pela culatra. Ver o velho ranzinza era exatamente o que Keiniz precisava para se sentir inflado pela coragem de se provar um herói.
— Saia da minha frente! — O mago atingiu um soco no pai, dissipando-o como uma miragem. — Eu já sei o que fazer.
A cabeça decepada de um aldeão voou para dentro das águas prateadas. Daratukk estava nas últimas, sendo sustentada apenas pela força de seu dono. O guerreiro perfurou o peito de outra aberração, antes de ter seu peitoral rasgado pelas garras de Friynn. O segundo golpe da draconata atingiu a espada, estourando-a em centenas de fragmentos. Sandor estava desarmado.
— Droga… — Com o líquido misterioso na altura dos joelhos, o humano não tinha para onde correr. Estava cercado, novamente. — Keiniz!
O poder das entidades entrou em ação. A cabeça do aldeão, banhada no fluido de prata, tornou-se repleta de pústulas e buracos, por onde nasciam tentáculos pegajosos, feitos inteiramente de músculos. Dez vezes maior do que antes, o membro inflava, ganhando mais olhos, mais bocas e milhões de dentes afiados. Recém-nascida, a cria aberrante rastejou até o guerreiro invasor, prendendo suas pernas e braços, deixando que lutasse inutilmente.
— Não… Droga… — Sandor olhava em volta, desesperado atrás do companheiro. — Merda… SOCORRO!!!
A lança de um aldeão atravessou o fígado do humano. Os dentes de Friynn perfuraram seu pescoço, arrancando o máximo de carne que pôde. Para seus ouvidos, os gritos do guerreiro eram como uma orquestra sinfônica.
— Sandor… Friynn… Já sei o que fazer. — Keiniz havia encontrado a solução, em sua mochila. Após alguns momentos de conjuração, o pergaminho estava pronto para o uso. — Eu sinto muito.
Esticou o pergaminho contra a massa de carne ligada às sete entidades. Segurou as lágrimas de sangue, quando observou os aldeões e a feiticeira destroçarem o antigo líder do grupo, que grunhia sem parar. Quando os inimigos perceberam o poder contido na arma secreta de Keiniz, já era tarde demais.
— EU INVOCO… — O papiro fora tomado por um azul arcano. — IGNI MAXIMUS!
Todo o salão fora iluminado por uma imensa bola de fogo, que mais parecia um Sol, aproximando-se lentamente de seus alvos. Todos os aldeões cessaram a tortura. A aberração tentacular afrouxou o vínculo com Sandor, que tombou imediatamente. Friynn grunhiu, completamente confusa.
— Isso é… — O guerreiro tentou achar palavras para descrever o seu fim. — Magnífico.
Com exceção do mago, que havia se afastado o suficiente, nenhum dos seres escapou da explosão. Sandor, Friynn e as aberrações controladas pelas entidades tentaculares foram instantaneamente incinerados. A massa de carne, ligada a seus filhos pelos cordões umbilicais, ardia em chamas prateadas, sem emitir qualquer som. Keiniz esperava que, no mínimo, seus adversários gritariam enquanto queimavam. Não foi agraciado com este prazer. Os monstros morreram silenciosamente, sem discurso final, sem explicações de seus poderes ou objetivos. A vitória veio com o gosto amargo da solidão e o cheiro de carne carbonizada.
E a caverna estava desmoronando.