O Horror de Portsworth - Capítulo 2
PARTE 2: NECROMANCIA
Havia bons sinais de que algo com consequências cataclísmicas estava para acontecer em Portsworth, naquele dia gélido e enevoado. O grupo de aventureiros já havia cruzado parte do deserto, alcançando a trilha arenosa que os levaria até o vilarejo consumido pela neblina sobrenatural.
Ao imergirem no ambiente, puderam sentir, quase que instantaneamente, a sensação de estarem sendo observados por todos os lados. Alderman e Lecram caminharam até uma árvore próxima, notando que seu tronco azul turquesa exibia caroços exóticos, que mais pareciam olhos fechados. Quando o caçador tocou na madeira, um de seus anéis brilhou intensamente.
— Ela parece… — Alderman arregalou os olhos, intrigado. — Viva.
— Todas as plantas são vivas. — O druida observava as folhas rubras que caíam à sua volta e resolveu pegar uma.
Em questão de instantes, a folha se desmanchou em sua mão, fazendo com que um desavisado pensasse que ele estava sangrando. Mesmo tendo vivido em harmonia com a natureza por anos a fio, Lecram nunca vira nada parecido.
— Mas realmente é uma espécie única.
Bem-vindo à Portsworth
A placa de madeira turquesa pareceu acolhedora aos forasteiros, lhes admitindo que, de fato, haviam chegado ao vilarejo que pedira ajuda ao grupo mais forte disponível.
O xerife local, emissor da carta que chegou tanto à Guilda dos Aventureiros quanto na ocupada guarda da capital, havia implorado por socorro imediato. Dizia que demônios tomaram o moinho de Portsworth, amaldiçoando seu solo e também os alimentos dos aldeões. Os monstros surgiram pela noite, com uma explosão prateada que quase demolira o edifício. Após a chegada dos seres profanos, todos que se aproximaram da construção foram tomados pela loucura. Em letras tremidas de medo ou nervosismo, o fim da mensagem dizia que todos estariam condenados em questão de dias, se não obtivessem ajuda.
Agora que a ajuda chegara, não havia ninguém para recebê-la. Tudo parecia vazio. O ambiente arenoso deveria estar sendo castigado pelo Sol escaldante do deserto, mas jazia sob névoas frias que incomodavam até mesmo Friynn, uma draconata de gelo. Com exceção do druida e do caçador, que se distraíam com a flora local, o restante do grupo avançava por uma estrada de terra, passando por casarões da mesma madeira misteriosa, coberta por vinhas, cipós e uma natureza que exigia imperiosamente o seu lugar.
— Qual é o plano? — Keiniz sentiu um calafrio ao perceber que todas as casas tinham barricadas nas janelas.
— Precisamos encontrar o xerife, o quanto antes. — Sandor caminhava altivo, na frente de todos.
— Faz tempo que não me sinto tão próximo da minha deusa. — Adran inspirou o ar empoeirado de abandono.
— Isso é uma má notícia. — Friynn parecia tão nervosa quanto o mago.
O vento zunia através das casas dominadas por essa natureza inédita. Encoberta nas trevas de um beco estreito, uma figura os observava em silêncio, sem ser notada. Não pôde conter seu sorriso de dentes afiados.
Sandor parou a marcha, aguardando que Alderman e Lecram os alcançassem.
— É melhor nós acabarmos com isso antes de anoitecer. — O líder esperou até que todos concordassem. — Vamos nos separar em dois grupos.
— Desde que eu não vá com o Alderman, tá tudo bem. — Lecram trocou um olhar ressentido com o caçador.
Afastado do restante do vilarejo, o moinho estava decrépito, com sua lateral estourada por algo que deixou marcas de carbonização. Era como se o edifício tivesse sido atingido por um tiro de canhão, mas não havia projétil grande o suficiente para fazer tamanho estrago.
Adran e Friynn tentavam explorar o mais rápido possível, mas já se viam diante de um impasse, quando Lecram parou para analisar o solo recoberto por uma grama rosada.
— Tá, agora eu tô com medo desse lugar. — Lecram passou a palma de sua mão no solo, sentindo uma irritação na pele. — Esse gramado nem deveria existir num deserto. E a pigmentação… Não é clorofila. É algo novo.
Antes que Friynn pudesse perguntar o que era clorofila, Adran a segurou pelo braço, lhe rendendo um susto. Sem dizer nada, o clérigo apontou para uma árvore morta, onde jazia um cadáver enforcado.
— Santa Mãe Natureza! — Lecram segurou o vômito frente à imagem decrépita.
Todos no grupo já estavam acostumados a cadáveres, mas o que viam diante de si era perturbador até mesmo para o mais experiente dos aventureiros. Apenas Adran ficou feliz com a descoberta.
O cadáver putrefato pendia na corda, balançando lentamente ao vento seco. Tinha uma barba grande, agora repleta de larvas. Líquidos malcheirosos escorriam pelo seu corpo e pingavam no gramado, deixando uma poça escura de podridão e um fedor repulsivo. O corpo estava extremamente inchado pela ação dos gases que o explodiriam a qualquer momento. A boca estava aberta, com a gengiva e língua já pretas, servindo de alimento para as milhares de moscas horrendas que habitavam seu interior. Seus olhos não existiam mais, apenas órbitas vazias que o faziam parecer um espantalho.
— Me ajudem a descer o corpo. — O clérigo caminhou até a árvore, sem se importar com o cheiro nauseante.
— Isso não parece uma boa ideia… — A mente de Lecram trabalhava desesperadamente, para encontrar uma maneira de sair dessa situação sem ter que mexer no cadáver. — A gente pode acabar pegando alguma doença, cara.
— Pensa bem, Adran… — Friynn parecia concordar com o druida, pela primeira vez na vida. — Se ele fez isso, é porque não queria ser incomodado.
— Não importa. — O elfo abriu sua mochila, armando-se com o Necronomicon. — Nós vamos falar com ele.
Em um mundo onde dragões dominam castelos, mortos voltam à vida e adolescentes feiticeiras conseguem lançar fogo pelos dedos, tudo parece caótico, mas não é. Há regras que o mundo deve seguir. E uma das regras imutáveis é que toda aventura avança, quando se passa em uma taverna.
Seguindo essa lógica absurda, Sandor parou em frente ao edifício arruinado pelo tempo e pelos maus-tratos. Uma placa próxima à porta fechada continha os dizeres “Oasis Encantado”, escrito numa cor vermelha escorrida, com o que todos esperavam que fosse tinta.
— Tem certeza que é uma boa ideia? — Keiniz já segurava sua varinha de cedro, perfeita para feitiços rápidos.
— Há pessoas lá dentro, eu tenho certeza. — Alderman tentava encontrar um ângulo em que se pudesse enxergar o interior, mas as barricadas lhe impediam. — Eles estão sussurrando alguma coisa.
— Então eles já sabem que nós estamos aqui. — Sandor sacou a gigantesca Daratukk. — Vamos continuar.
— E se for uma armadilha? — Keiniz hesitou, enquanto os outros avançavam.
— As chances são altas. — O caçador pôs uma flecha na corda. — Mas planos bem elaborados nunca foram o nosso forte.
Friynn estendeu seu dedo contra a corda, disparando um espinho de gelo que voou preciso, libertando o cadáver decadente. Ao atingir o solo, as pernas se dobraram e a barriga enegrecida estourou em sangue coagulado, moscas gordas e um pus pestilencial. O clérigo se aproximou da parte onde havia os braços, o torso com costelas e uma gordura amarelada à mostra, o pescoço repleto de buracos e a face destruída pelos vermes.
— Nós demos sorte. — Adran tocou o peito do corpo, removendo uma insígnia dourada em forma de estrela. — Encontramos o nosso xerife.
— O que você vai fazer com ele? — Lecram se afastou junto a Friynn.
— Essa vila não foi abandonada, Lecram. — O clérigo inspirou fundo e sentiu a euforia dominar cada célula do seu corpo. — Há pessoas morrendo nesse exato momento.
O elfo deixou que o poder da Morte fluísse pelo seu corpo e se condensasse em uma das mãos. Abaixou-se rente ao cadáver e colocou sua palma na garganta esburacada.
— Eu só preciso saber como e por quê. — Deixou que a Morte fizesse o trabalho.
Quando Sandor abriu a porta, esperava encontrar demônios sedentos por sangue ou aldeões tremendo de medo. Percebeu que a segunda opção estava meio certa. Havia, de fato, aldeões no recinto, mas eles não pareciam assustados. E também não pareciam de qualquer espécie já catalogada.
Todos possuíam uma pele esverdeada, com poros enormes por onde vazava um muco incessante. Seus olhos eram grandes e arregalados, como os de um peixe. Os corpos estavam inchados, repletos de dobras e pelancas. Vestiam roupas velhas, encharcadas.
A mente tática de Alderman contou rapidamente oito aberrações na taverna. Sete delas jaziam sentados, enquanto o oitavo caminhava em direção a eles, carregando uma bandeja com três canecas de um líquido prateado e brilhante.
— Ora, o que estão fazendo aí parados? Podem entrar! — O que parecia ser o taverneiro sorriu com seus dentes idênticos a agulhas. — Não sejam tímidos, forasteiros. Peguem uma caneca!
Alderman ignorou a gentileza, ultrapassando a criatura obesa e caminhando para os fundos. Sandor agradeceu, mas negou tanto para si quanto para Keiniz. Entrou na frente do mago, para protegê-lo de qualquer surpresa desagradável. O ambiente estava dominado por um cheiro nauseabundo de peixe podre, enquanto a bebida exalava um aroma metálico.
— Obrigado, mas nós estamos aqui a trabalho. — O guerreiro esboçou um sorriso. — Eu sinto muito se parecer desrespeitoso, mas… Essa vila não deveria pertencer a humanos?
Todas as conversas cessaram. O silêncio se instaurou no local, exatamente no momento em que o sorriso do taverneiro se desfez. As criaturas pareciam tremendamente ofendidas.
— Eu sei que não estamos na melhor das condições, mas gostaria que nos tratasse com respeito, senhor…
— Sandor — o guerreiro gaguejou. — Sandor Siv.
— Então vocês são humanos? — Keiniz suava frio, mas precisava saber. — Com todo o respeito, senhor, mas nós nunca vimos essa condição antes.
— É claro que somos! Não seja tolo, rapaz.
— Pode nos dizer onde está o xerife? — O guerreiro olhou em volta, mas não o encontrou. — Ele nos disse que vocês estavam… Com problemas.
— Ele fez isso, é? — O taverneiro soltou uma gargalhada, projetando perdigotos asquerosos contra Sandor e Keiniz. — Aquele velho biruta!
A aberração apoiou sua bandeja em uma mesa próxima. Segurou os aventureiros pelos ombros, sujando ambos com seu muco fedido e virando-os para que vissem cada indivíduo da taverna. Todos saboreavam a bebida misteriosa e se alimentavam de frutas emboloradas. Faziam cara de poucos amigos, mostrando que estavam desconfortáveis com a presença dos forasteiros.
— Como vocês podem ver, não temos problema algum, no momento. — Com o sorriso perturbador, o taverneiro pegou duas canecas na bandeja. — Estamos até comemorando pela tranquilidade do vilarejo, então sejam gentis e juntem-se a nós!
Novamente a bebida fora oferecida. Sandor não se deu ao trabalho de recusar, apenas ficou imóvel, observando tudo com desgosto. Keiniz parecia igualmente enojado.
— Infelizmente vocês caíram na ladainha de um homem louco. — Quando percebeu que não aceitariam o brinde, a aberração aplacou a sede, com um gole farto.
— Entendo. — Sandor estava cada vez mais confuso.
No deserto escaldante, o Sol estava se pondo.
No vilarejo enevoado, o breu avançava rapidamente.
E na escuridão crescente, Adran observava o cadáver mover a cabeça e estalar os ossos, acostumando-se ao antigo corpo.
— Diga-nos o que ceifou a sua vida e eu o deixarei voltar ao descanso eterno, xerife. — O clérigo ainda tinha a mão na face do morto-vivo, canalizando sua energia profana. — Nós temos um trato?
Lecram e Friynn permaneciam em choque.
— Eu odeio quando você faz essas coisas. — O druida se arrependeu de não ter ido com Alderman.
Quando o xerife abriu a boca, centenas de moscas escaparam.
— A LUZ! ELA VEIO DOS CÉUS… — disse o morto, com a voz equivalente à sua forma. — FOI COMO UM DEUS VISITANDO A TERRA.
O morto-vivo fora acometido por uma tosse, cuspindo um coágulo espesso, repleto de catarro. Pôs uma de suas mãos na garganta, ignorando a falta do dedo indicador, que já havia sido levado por uma ave carniceira.
— MAS A TERRA MUDOU… A ÁGUA MUDOU… E AS PESSOAS QUE BEBERAM DELA… — Das órbitas vazias, saíram cascatas de sangue velho. — VIRARAM DEMÔNIOS!
— Eu vou precisar saber mais do que isso, se você quer ser vingado. — Adran permanecia insensível, com seus olhos negros e frios.
— O MOINHO! — O xerife esticou o braço até o moinho, mas percebeu que já não tinha mais o indicador. — A VERDADE ESTÁ NO MOINHO, EU JURO!
O morto-vivo começou a gemer, acometido pela dor e agonia. Agarrou o clérigo pelo pescoço.
— AGORA DÊ-ME A MORTE!!!
— Você já a tem. — Adran se levantou, pondo as mãos nos bolsos de seu manto e deixando que o xerife voltasse à calmaria eterna e escura.
Enquanto o clérigo se aproximava do moinho, seus dois companheiros o seguiam a uma distância segura.
— O que você tá fazendo? — Lecram esperou por uma resposta, mas foi ignorado. — Fala comigo, Adran!
— Como eu pensei… — O elfo parou em frente ao edifício, observando a aura prateada que o local exalava. Seus olhos brilhantes puderam identificar a entrada de uma caverna, incrustada no chão destruído do moinho. — Aqui está o mal que corrompe a vila.