O Horror de Portsworth - Capítulo 1
PARTE 1: VILAREJO MACULADO
O mundo estava condenado.
Alheios a este fato, um pelotão de guardas observou com desgosto o jovem mago que estava prestes a ser julgado. Todos fizeram questão de se manterem afastados do humano misterioso. Tinham medo de seus olhos vazios.
No imenso salão de granito, a temperatura era sempre amena, mas nada explicava o frio sobrenatural que o lugar adotara.
— Keiniz Aring — o juiz anão pronunciou o nome do réu, tentando chamar sua atenção. — Foi você quem cometeu o massacre?
Os olhos do mago permaneciam impassíveis. Nenhuma palavra veio à tona. Sabiam seu nome apenas pela fama que precedia seu finado grupo.
— Ele não consegue falar desde que o encontramos, meritíssimo. — O comandante da guarda se ergueu de um banco gélido. — Vamos demorar algumas semanas para enterrar todos os corpos no vilarejo. E ele estava rindo na praça central do lugar.
— Mas não pode ter sido o único culpado. — O velho juiz analisou alguns documentos, antes de prosseguir. — Mas, ao que tudo indica, o senhor Aring trucidou até mesmo seus cúmplices.
A cada palavra proferida, uma nuvem de vapor escapava pela garganta do juiz. Por ter de usar mantos tão quentes e espalhafatosos, ele agradeceu em silêncio. Podia ver os membros da guarda tremerem dentro de suas armaduras, emitindo um som cada vez mais irritante. Fechou a pasta com os documentos, ainda confuso com a história.
— Tem algo a dizer em sua defesa?
Não houve resposta.
— Então, sem mais delongas, eu declaro esse julgamento como encerrado. Keiniz Aring e seu grupo de traidores são responsáveis pela chacina de Portsworth. — O juiz se deixou levar pela pressa em abandonar o frio do salão. — Até que novas informações sejam retiradas do culpado, este caso está encerrado.
Algo dentro de Keiniz o fez sorrir. Seria levado para a maior prisão do continente… a incubadora ideal para o que planejava espalhar.
Tudo seguia como o planejado.
ANTES
Quando entraram na Floresta dos Selvagens, todos na equipe já estavam preparados para matar.
No coração da mata, em meio à escuridão de uma noite sem estrelas, os aventureiros se viram cercados de gnolls, humanoides peludos e ferozes, semelhantes a hienas, conhecidos por sua crueldade ao lidar com as presas. Eram dezenas deles contra apenas seis.
— Não se segurem! — Sandor Siv, o líder do grupo, bradou enquanto sacava a espada.
— A Morte está no meio de nós — rezou o clérigo Adran Aelar, chamando a atenção do mais ágil entre os monstros.
Mesmo sendo um curandeiro, o elfo só poderia ser descrito como macabro. Vestia trajes completamente pretos, destacando perfeitamente sua palidez cadavérica. Desviou de uma lança sedenta por sangue, que lhe arrancou alguns fios do cabelo negro.
A besta rangeu seus dentes afiados, salivando frente à próxima refeição que planejava fazer. Investiu novamente, fazendo o clérigo suspirar de decepção.
“Previsível demais, como sempre”.
Adran chocou o cabo de sua foice contra a jugular do gnoll, fazendo-a dobrar em um ângulo perturbador. A criatura soltou um gemido áspero de quem tem as cordas vocais atravessadas pelos próprios ossos, convulsionando ao chão. Era um sacrifício fraco, mas o clérigo torcia para que sua deusa se entretivesse com a morte lenta e dolorosa que causara.
Seis dardos mágicos cruzaram o vento, estourando em partículas verdes e atingindo a meia dúzia de seres que ousaram confrontar o mago do grupo. Seu cajado ainda emanava uma fumaça turva, quando decidiu conjurar uma bola de fogo e finalizar a batalha.
— Igni! — o jovem proferiu, ao conjurar a magia explosiva.
Suas chamas se espalharam rapidamente, consumindo as árvores e fazendo chover folhas flamejantes. As criaturas eram carbonizadas aos montes.
— Friynn!!! — Sandor chamou a atenção da feiticeira.
— Já sei… — A draconata de escamas brancas fitou o incêndio, que consumia tanto os monstros quanto a floresta à sua volta. — Keiniz fez merda de novo.
— Foi mal. — Envergonhado, o mago coçou seus cabelos brancos.
A garota inspirou fundo, sugando toda a umidade à sua volta. Esperou que mais dos adversários surgissem a sua frente, antes de desferir sua arma secreta.
Usou seus poderes dracônicos para invocar um sopro gélido, congelando inúmeros gnolls e extinguindo as chamas com facilidade.
Sem fôlego e com a língua para fora, a jovem reptiliana se apoiou a uma das estátuas de gelo que havia formado. Tentou ignorar o cheiro de cachorro molhado que o cadáver exalava.
O maior e mais forte entre os selvagens investiu contra Sandor. O guerreiro mais parecia uma montanha de músculos, recoberta por uma armadura de aço, sem capacete, deixando seus longos cabelos ruivos serem livres.
A criatura atingiu uma machadada no peitoral do humano, mas ele nem se mexeu frente ao impacto.
— Fraco demais. — Um sorriso sádico surgiu entre a barba espessa. — Agora é a minha vez!
A besta só teve tempo de arregalar os olhos, antes de ter seu pescoço atingido pela inabalável Daratukk, a espada de duas mãos que também é conhecida como A Decapitadora.
Três monstros foram ao chão no mesmo momento que a cabeça de seu líder. Todos foram perfurados por flechas do arqueiro Alderman Corvus.
Como os membros de seu grupo, o humano de cavanhaque loiro também estava equipado com os melhores dos itens. Possuía um traje que o camuflaria em qualquer ambiente, assim como diversos anéis mágicos e um amuleto chamativo.
Tomou três de suas flechas e preparou o arco para um disparo especial. O caçador saltou da árvore em que se escondia, atirando sua saraivada em pleno ar.
— Seis cãezinhos até agora. — Ele contava cada vítima, saciando-se com a caça. — Vamos terminar com isso, Adran?
— Não precisa pedir duas vezes. — O elfo se ajoelhou para uma prece. — Rainha dos Últimos Suspiros, geradora da eterna paz e portadora de uma força da qual nada escapa… — Uma aura profanada surgiu em volta de seu corpo. — Abençoe essas aberrações com teu milagre… e traga-as para perto de ti!
Dúzias das bestas foram engolfadas por um fogo negro, manifestado pela deusa Morte. Em poucos instantes, havia apenas cinzas e um cheiro podre de decomposição, ligeiramente amargo.
Restavam apenas dez gnolls, que aproveitaram para cercar o membro que parecia mais frágil.
Armados com lanças, tridentes, machados e bastões, os monstros rugiram contra Lecram Diviciatus, o meio-elfo de pele perfeita, cabelos verdes ornamentados com flores e um par de olhos que mais pareciam sóis, de tão brilhantes. Ele estava desarmado, ostentando apenas uma camisa e calças azuis, feitas de um material exótico que se colava ao corpo.
— Querem mesmo jogar suas vidas fora? — o druida lhes deu uma chance.
Antes que pudessem investir contra Lecram, as criaturas perceberam que seu corpo estava em mutação. Os braços foram ganhando uma tonalidade marrom, com pelos espessos e músculos inchados. A roupa se mesclou à pele. Os cabelos viraram chifres enquanto os pés se tornaram cascos.
O homem, que tinha menos de dois metros, alcançara mais de cinco em poucos segundos.
Todos tremeram diante do minotauro. Olharam em volta, percebendo seus companheiros caídos. Sem mais alternativas, os seres correram pela mata, abandonando a batalha.
— Foi o que eu pensei. — Lecram sorriu, cruzando os braços.
Mais uma batalha foi vencida pelo grupo que não conhecia o sabor da derrota. Eles eram simplesmente invencíveis.
Ou assim pensavam.
DUAS HORAS MAIS TARDE
O fogo crepitava fraco em uma fogueira. Com o auxílio de um graveto, Keiniz tentava fazer com que as brasas ficassem mais intensas, enquanto Alderman esfolava os coelhos que serviriam de janta.
— Maldita umidade! — o mago praguejou.
— E aquelas bolas de fogo que sempre ferram a gente, novato? — Friynn se aproximou, com um sorriso cínico. — Cairiam bem agora.
— Não começa.
— Quer que eu acenda para você?
— Eu não preciso…
— Já que você insiste — a feiticeira interrompeu Keiniz, projetando um raio ardente a partir do seu dedo.
A fogueira estourou em chamas intensas.
— Eu te odeio, Friynn.
Enquanto a feiticeira riu como uma criança arteira. Keiniz suspirou fundo, frustrado por não ter o dom da feitiçaria. Se tivesse, poderia invocar seus truques com a mesma agilidade da draconata, sem a necessidade de grimórios, palavras de poder e catalisadores como o cajado que herdara de seu pai.
Sendo um mago e não um feiticeiro, sentia-se como um conjurador dependente de muletas.
— E agora? — Fryinn começou a bocejar. — Qual é o plano?
— Me deixa em paz.
— Nah! Prefiro te irritar até você sair do grupo.
— Pirralha maldita… — Com a palma na testa, Keiniz sentiu o sangue subir à cabeça.
— Olha… não me leva a mal, tá bem? Eu só acho que não faz o menor sentido um mago estar na mesma equipe que uma feiticeira. Aí dentro você concorda comigo.
— E você já conseguiu tirar alguém do grupo, agindo assim?
— Ainda não… — Foi a vez de Friynn ficar triste. — Mas não foi por falta de tentativa.
Ambos observaram o momento em que Sandor terminou de cravar os coelhos num espeto, pondo-os para assar.
— Tirando o nosso líder megalomaníaco, não tem uma única pessoa nesse grupo que eu não ache insuportável. — A draconata parecia prestes a ficar deprimida. — Não consigo entender como acabei parando aqui…
— Então por que você não sai de uma vez?
— Porque eu já perdi sete lutas contra o Sandor, esse maldito! E para qualquer um da linhagem dracônica, perder uma luta contra um humano é inadmissível! — Friynn cerrou o punho, tentando afastar a raiva. — Por isso, eu vou ficar bem perto dele, até alcançar minha forma suprema e acabar com a raça desse metido.
— Tem certeza de que ele é o megalomaníaco?
— Tá querendo me dizer alguma coisa, é?
— Olha… — Keiniz virou o olhar, procurando um novo assunto. — Já que você não vai sair daqui, então me diz uma coisa…
O mago observou Adran parado nas trevas, folheando o Livro da Morte, Necronomicon.
— Qual é a daquele clérigo? — Aring sussurrou, notando que todos evitavam ou temiam o membro. — Eles não deveriam ser figuras sagradas e iluminadas?
— Não quando você é um clérigo da sepultura. Como você já deve ter percebido, ele serve à Morte, então não tinha como ser um cara todo bonzinho e brilhante.
— E por que o Sandor chamaria alguém assim pro grupo? Ele parece o tipo de herói que luta contra clérigos das trevas.
— O Adran não faz mal a inocentes, pode ficar tranquilo. — A feiticeira se voltou ao caçador, que enrolava um pano oleoso em volta de uma flecha. — E assim como o Alderman, o nosso clérigo da Morte não cobra um tostão furado. É por isso que o Sandor os aceitou. Eles estão aqui só pelo prazer das aventuras.
— E você acredita mesmo nisso?
— Claro que não. Se quer minha opinião, eu acho que os dois tem algum passado sinistro.
— É, isso faz mais sentido. — Keiniz afastou o olhar no momento em que Adran passou a afagar seu livro feito de pele, carne e ossos. — Eles são bizarros demais para terem um desejo tão simplista. Talvez queiram redenção, ajudando as pessoas que contratam a gente.
— Talvez o Adran sim, mas o Alderman… — Friynn não conseguiu esconder uma expressão de desprezo. — Tem algo muito mais estranho com ele.
— Você tá falando do cheiro dele, não é? Me lembra o de um cadáver.
Alderman notou as encaradas súbitas, levantando-se do tronco em que sentara.
— O que vocês estão olhando aí? Tem alguma coisa na minha cara?
— Não… — O mago suou frio. — Foi mal, pode ficar tranquilo.
— Esse cara me dá mais medo que lagartas… — Friynn sussurrou para Keiniz.
Uma sombra se aproximou da dupla, surpreendendo ambos.
— O que é isso que eu tô vendo, Friynn? — Lecram chegou sorrindo, com uma iluminação macabra na face, graças à fogueira. — Você não disse que odiava todo e qualquer mago?
— Era só o que me faltava… — A feiticeira revirou os olhos, tentando ignorar o druida.
Como se convidado pela dupla, Lecram se sentou entre Friynn e Keiniz, apoiando um braço nos ombros de cada um.
— E aí, qual é o papo? — O meio-elfo continuava sorrindo, esbanjando um carisma forçado. — Estavam falando mal de mim ou algo do tipo?
— Se você não tirar a mão agora, eu vou te matar. — Friynn esperou três segundos antes de remover o braço do druida, com um tapa. — Como você me irrita!
— Não precisava dessa crueldade toda… — Lecram parecia prestes a chorar, demonstrando uma sensibilidade igualmente forçada.
As mãos de Friynn condensaram sua energia arcana.
— Eu vou te mostrar o que é crueldade!
— Espera aí… — Keiniz parou entre os dois. — Vocês vão brigar agora?!
— É claro não. Essa batalha acabou antes mesmo de começar! — O corpo do druida foi tomado por uma mutação repentina. Friynn e Keiniz recuaram.
Inesperadamente, Lecram começou a encolher ao invés de inchar na forma do minotauro. Tornou-se um animal quadrúpede, rechonchudo, com pelos castanhos e um longo focinho. Uma capivara.
O poder da feiticeira se dissipou. O druida a venceu, no momento em que começou a rolar no chão, com a barriguinha para cima.
A jovem começou a tremer, tentando se controlar diante de tamanha fofura. Admitiu a derrota quando correu para apertar a criatura felpuda.
— Chega de bizarrices por hoje. — Keiniz se afastou do grupo, lembrando-se de que havia algo mais importante para fazer.
Abriu sua mochila, removendo um pergaminho em branco, um tinteiro e uma pena afiada. Usaria o tempo de descanso para gerar um novo trunfo, que poderia ser útil em um momento de sufoco.
— O primeiro está pronto, pessoal! — Sandor os convocou.
— E que comece a briga pelas melhores partes… — Alderman previu certeiro.
AO AMANHECER
No limiar entre a Floresta dos Selvagens e o grande Deserto de Andrália, um raríssimo unicórnio albino pastava em calmaria.
Pelo chifre reluzente, de quase dois metros, podia-se perceber que era uma criatura anciã, dotada de uma crista com as cores do arco-íris. Um milagre da natureza que, num piscar de olhos, possuía uma flecha cravada em um dos olhos. Tentou cavalgar para longe, enquanto seu ferimento criava uma cascata de sangue e manchava seu couro.
Pôde dar três galopes antes de ser atingido por outra flechada na cabeça.
— Na mosca! — Alderman surgiu por trás de uma árvore, sorridente.
— SEU CRETINO! — Lecram, com lágrimas nos olhos, segurou o companheiro pela gola da camisa. — O que deu em você?!
— Eu sou um caçador, meu amigo druida. — Alderman bateu no braço do meio-elfo, se desvencilhando. — Seria um desrespeito com a minha guilda, deixar um espécime assim passar despercebido.
O humano se prostrou frente à carcaça, sacando um punhal afiado.
— Mas a carne dele é horrível! — Lecram limpou as lágrimas, tentando parar de soluçar.
— Ninguém mata um unicórnio pela sua carne. — O caçador aproximou seu punhal do imenso chifre. — Mas a alta casta paga uma fortuna por isso aqui.
De costas para o druida, Alderman não percebeu que o companheiro estava se transformando.
— O que eu posso fazer se os humanos e anões têm um fraco por peças inúteis e brilhantes? — O caçador arrancou o chifre, sendo atingido por um jato de sangue no processo. — Agora vamos logo, estamos ficando para trá…
Na forma de um guaxinim com garras afiadas, Lecram saltou contra Alderman, cravando suas unhas na face do companheiro.
— SEU ASSASSINO DE UNICÓRNIOS!!! A NATUREZA NÃO VAI TE PERDOAR!
— Mentecapto! Me solte imediatamente!
Enquanto a dupla se digladiava, o restante do grupo já avançava para fora da floresta, rumo ao topo de uma colina onde teriam uma visão privilegiada do grande deserto.
— Eles gostam mesmo de atrasar a gente, ein! — Friynn não escondia sua frustração.
— Vocês todos brigam muito! — Keiniz estava cada vez mais saturado do grupo.
Adran interrompeu a marcha de Sandor, segurando-o pelo braço.
— O que houve? — O guerreiro notou que os olhos do clérigo estavam fixados no horizonte.
— Você sente esse aroma?
— Aroma? Do que você tá falando?
O clérigo abaixou a cabeça, fazendo os cabelos caírem como uma máscara. Sua face foi tomada por uma sombra nefasta.
— Minha deusa está presente. — O elfo conseguiu esboçar um sorriso. — Nós estamos indo em direção à Morte.
Sandor não conseguiu esconder o nervosismo. Virou-se novamente para o topo da colina e passou a andar mais rápido.
— Se esse é o caso, então nós temos que correr.
— Acho que você não me entendeu. — Adran tentou acompanhar o guerreiro. — Esse lugar é mil vezes pior do que qualquer outro que nós já fomos.
— E este é só mais um motivo para nós irmos logo. — Sandor se lembrou da carta que recebera dias antes, com um pedido de socorro vindo de um local pacato. — Não posso deixar que pessoas inocentes morram por causa de um atraso… Eu já fiz isso uma vez e não vou repetir.
O grupo se aproximava do vilarejo Portsworth, repleto de uma vegetação excêntrica, com árvores de troncos azulados e folhas vermelhas como sangue fresco.
Nuvens escuras faziam questão de estacionar apenas acima da vila, que se destacava no deserto como um oasis amaldiçoado. As casas jaziam escondidas sob uma espessa e suspeita névoa.
Ao ver o destino final da missão, Sandor sentiu um calafrio percorrer o seu corpo.
— Vamos em frente — o guerreiro proferiu a ordem que o tornaria culpado do que estava por vir.