O Druida Lendário - Capítulo 11
Ragnar estava diante de Torvell, o maior urso que já viu em toda sua vida, ele tinha pelos pretos, olhos vermelhos e patas grossas e intimidantes cobertas por camadas de ferro.
Mas em vez de cumprir sua parte do acordo e contar ao druida quem foi Bjorn, Torvell pediu para que o acompanhasse em uma caminhada. E como Ragnar não queria ser indelicado, ele aceitou.
Juntos os dois caminharam pelas construções decadentes do santuário até pisarem no gramado do lado de fora.
Ragnar contemplou o ambiente à céu aberto, delimitada ao longe pelas árvores da mata que se estendia até o paredão rochoso que protegia o santuário.
Um rio de águas cristalinas cortava a paisagem na diagonal. Alguns ursos de ferro parecidos com Torvell, porém menores, bebiam a água do rio ou descansavam em suas margens.
— Seja bem-vindo ao lar dos ursos de ferro — anunciou Torvell.
— Que lugar lindo — Ragnar estava boquiaberto.
— Aqui vivem os últimos da minha espécie.
Ragnar olhou para cada um deles. Haviam ursos de pelo preto, pardo, avermelhado e até azulado. E apesar de toda essa diversidade, apenas os pretos possuíam aquelas patas ameaçadoras de ferro.
Seria necessário uma centena de orcs tuskir para derrubar um deles, ponderou Ragnar, então voltou-se para Torvell.
— Bjorn era um druida? — ele perguntou.
O urso soltou uma risada desdenhosa, mas respondeu:
— Um druida? Ele foi muito mais do que um mero druida como você.
Aquele comentário atingiu seu coração como uma flecha.
— Nosso passeio está acabando — anunciou Torvell. — O destino final é o Círculo de Convergência Natural.
Ragnar ficou arrepiado só de ouvir o nome.
Minutos depois eles pararam em frente à ruina mais conservada do santuário, um grande círculo de pedra coberto de plantas rasteiras, marcado por escrituras talhadas ao redor do centro, e cuja parte exterior era delimitada por pilares de pedras.
— Bjorn costumava vir aqui para se comunicar com os espíritos da natureza — disse Torvell, indo até o centro do círculo. — Eu cumpri minha parte do acordo. Se realmente quiser saber quem foi o patrono do santuário, você precisará meditar para se comunicar com o espírito dele.
— Você prome… — Ragnar protestou, mas foi cortado por Torvell.
— Ainda tenho minhas dúvidas quanto a você, druida. Convencer os orcs tuskir a nos deixar em paz foi um grande feito, mas eu posso sentir a fraqueza pulsando dentro de você.
É claro, eu ainda estou no nível 10. Missões de classes lendários nunca foram completadas por avatares abaixo do nível 20, Ragnar ponderou, frustrado por não haver outra escolha.
Ele sentou no centro do círculo, cruzou as pernas, e começou a meditar.
A voz de Torvell ressoou:
— Boa sorte, Ragnar.
Daniel, a pessoa controlando o druida, meditava uma vez por semana graças ao tempo que conviveu com Júlia. A ex-namorada cultivava uma filosofia de vida digna de uma monja budista, portanto, não demorou muito para ela empurrar essa prática a ele.
Ragnar se deixou levar em pensamentos. O turbilhão de ideias em sua mente foi aos poucos dissipando até ele focar-se apenas no som do vento passando por seu corpo.
Minutos depois Ragnar ouviu o canto de pássaros, o arrastar da grama. Um rugido longo, forte, não de fúria, mas de alguma fera se impondo ao mundo.
Então uma melodia de flauta entrou em seus ouvidos.
Ragnar abriu os olhos e viu-se em um lugar semelhante àquele em que esteve antes de meditar.
Haviam mais de cem ursos em seu campo de visão, bebendo água do riacho ou andando de um lado para o outro. Ele piscou os olhos ao ver um grupo de cinco druidas entrando na construção principal do santuário.
— Você está longe de casa, amigo — disse uma voz calma, vindo de trás.
Ragnar virou-se em direção à voz, e deparou-se com um homem alto, forte, trajando um longo manto marrom e preto, em suas mãos ele segurava uma flauta de bambu.
— Bjorn? — Ragnar perguntou, esperançoso. O homem de cabelo longo e escuro confirmou sua suposição. — Onde eu estou?
— No passado — respondeu Bjorn. — Sua meditação o sintonizou com a energia natural que emana deste lugar sagrado. Você está vivenciando uma memória antiga do santuário, um momento da história compatível com seu desejo de me encontrar.
O druida ficou sem palavras, mas o espírito continuou:
— Você gostaria de acompanhar-me durante uma caminhada? Prometo recompensá-lo saciando sua curiosidade com a minha sabedoria.
Os olhos de Ragnar brilharam. Bjorn era a terceira pessoa a convidá-lo para caminhar naquele dia, mas este poderia ser o passeio que viria a concluir a missão que tanto cobiçava.
Bjorn o guiou por aquela versão do santuário. Haviam druidas por todo o lugar, eles alimentavam os animais, cuidavam das plantas e faziam a manutenção das estruturas.
— Jovem druida. Por que você queria tanto me encontrar?
— Durante uma expedição ao Covil das Serpentes, acabei recuperando uma de suas criações, a Perdição das Víboras, então fiquei fascinado em querer descobrir mais a respeito de seu criador.
Ragnar empunhou a lança. Os olhos de Bjorn arregalaram ao ver sua antiga obra-prima. Ele chegou mais perto, passou a ponta dos dedos sobre a haste de madeira, e disse:
— Você a encontrou… e meditou até encontrar meu espírito. Eu posso não o conhecer, mas posso afirmar que você não é um druida qualquer.
— Eu devo minhas conquistas àqueles que me ajudaram nesta jornada — Ragnar admitiu, referindo-se ao homem misterioso que revelou a localização deste lugar.
Bjorn levou a mão ao queixo e balançou a cabeça.
— Humildade é a maior virtude de um druida.
Ele se aproximou, parou em sua frente, ergueu os braços e pousou as duas mãos sobre a cabeça de Ragnar.
— Incrível, você exerceu as cinco virtudes em tão pouco tempo. Você demonstrou senso de justiça enfrentando o taverneiro aproveitador. Você também demonstrou coragem ao descer ao Covil das Serpentes e enfrentar aquelas monstruosidades. Seu vínculo com a serpente que apelidou de Lady Plissken é algo nobre. E quanta criatividade, usar a forma de serpente para entrar em um buraco minúsculo para encontrar minha lança. E para finalizar, você demonstrou diplomacia ao convencer toda uma tribo de orcs a deixar este santuário em paz.
Bjorn parou um momento para refletir. Ragnar permaneceu quieto, esperando o outro se manifestar.
— Você pode ainda ser fraco, mas em compensação é valoroso e capaz de entrar no mundo espiritual sem grandes dificuldades. Fazem cem anos que nenhum druida veio a este refúgio. Eu poderia tentar fazer de você um de meus discípulos, o que me diz?
— Eu aceito. — Este era o momento que Ragnar esteve esperando.
— Ótimo, mas antes de começarmos, você precisa conhecer minha história.
“Eu cresci numa época onde ursos e druidas viviam em tranquilidade, os reinos vizinhos estavam em paz uns com os outros, e as tribos orcs ainda não ousavam invadir nossas fronteiras.
“Então, um feiticeiro estranho apareceu nos portões da cidade de Salem. Seu nome era Mergraff, um desconhecido vindo sabe-se lá de onde. Em frente aos guardas da cidade ele encheu os pulmões e desafiou o rei e seus cavaleiros a um duelo.
“Não querendo demonstrar fraqueza, o rei de Salem — cujo nome eu não lembro — aceitou o desafio e caminhou pomposamente para fora da cidade, ele estava acompanhado de seus cavaleiros mais fortes e confiáveis.
“A batalha iniciou e terminou no conjurar de dois feitiços. O primeiro aprisionou o rei e seus cavaleiros, o segundo os sufocou até a morte. Os guardas da cidade ficaram em choque, e ninguém mais ousou desafiar Mergraff.
“O feiticeiro caminhou para dentro da cidade, as pessoas em seu caminho deram espaço para ele passar. O feiticeiro caminhou até o castelo do rei, e lá se trancafiou. Horas depois, ele apareceu no alto de uma das torres.
“Mergraff anunciou em voz alta para todo mundo ouvir: ‘Caros cidadãos de Salem. Como já devem saber, eu, Mergraff, desafiei seu soberano e o venci em um duelo justo. Portanto venho proclamar aquilo que é meu por direito, a coroa do reino. Vocês agora são objetos de minha vontade.
“A população permaneceu em silêncio. Apesar da ousadia do estranho, os nobres do reino se perguntavam: ‘Como ele irá governar sem nosso apoio? Sem nossos exércitos?’.
“A resposta veio tão súbito quando sua chegada. Ele ergueu o cajado, uma nuvem sombria pairou por toda a cidade. As pessoas ficaram temerosas com o que poderia acontecer.
“A nuvem negra desceu e se alastrou entre a população. As pessoas tossiram e engasgaram, enquanto a pele ressecava até suas vidas serem drenadas por completo. As vítimas caíram no chão até não restar uma única alma viva que não fosse Mergraff.
“As nuvens negras dissiparam. Do alto do castelo, Mergraff esboçou um meio sorriso e preparou um novo feitiço. Uma fumaça roxa brotou do chão e se espalhou pelas ruas da cidade. O feiticeiro entoou um cântico macabro que fez a fumaça entrar nos cadáveres dos cidadãos.
“Quando não havia mais resquícios da fumaça pairando no ar. Um dos corpos teve um espasmo, seguido de uma convulsão, então ele se ergueu como se nada tivesse acontecido. O mesmo processo se repetiu com todos aqueles que morrerem sufocados pela fumaça.
“Foi assim que os vampiros surgiram. Os cavaleiros do antigo rei, por serem fortes fisicamente e também habilidosos com magias, foram nomeados membros da guarda do novo rei, este grupo ficou conhecido como os Post-Mortem.”
Ragnar adorou a história, mas estava ávido por mais.
— E quando é que você entra na história?
— Agora — Bjorn o tranquilizou.
“Minha história inicia dez anos depois da ascensão de Mergraff, quando seu reinado de terror vivia seu auge. No início ele atacou os vilarejos e as cidades mais vulneráveis, seu objetivo era matar os habitantes para transformá-los em escravos de seu exército.
“Em pouquíssimo tempo suas forças abrangiam centenas de clãs vampiros, milhares de servos zumbis, dezenas de batalhões revenantes e outros agrupamentos de criaturas mortas-vivas.
“O Refúgio dos Ursos de Ferro foi um dos primeiros Santuários Druidas a sofrer ataques das legiões de Mergraff. Nós lutamos bravamente, mesmo assim nossos inimigos venceram as primeiras batalhas graças a vantagem numérica que possuíam. Quase a metade das nossas forças foram aniquiladas.
“Nós cogitamos abandonar o santuário durante o período mais sombrio, mas em um último esforço de coragem, eu peregrinei por cidades e Santuários Druidas em busca de aliados dispostos a lutar uma última batalha. Como símbolo de boa-fé eu presenteei cada líder com uma das minhas obras-primas.
“Como você já sabe, jovem druida, a Perdição das Víboras foi presenteada a Najir, o grande guerreiro da tribo Najalla. Para minha grande alegria, cada líder presenteado respondeu o chamado.
“Mas um deles se destacou, Salazar, o rei de uma pequena província ao norte. Ele ficou maravilhado com a espada que forjei. Como agradecimento, Salazar me presenteou com toneladas de ferro.
“Eu não sabia o que fazer com todo aquele excesso. Levaria anos para transformar tudo aquilo em armas para as nossas tropas.
“Então eu tive uma ideia. Durante uma noite de lua cheia, quando o fluxo de energia natural fluí com mais força neste santuário, eu conduzi um ritual nunca antes visto.
“Eu amontoei aquele ferro todo em uma grande pilha, depois eu reuni todos os ursos e druidas do santuário ao redor do monte.
“Em seguida entoei um feitiço. Raios estalaram ao longe. A pilha de ferro começou a vibrar. O primeiro relâmpago atingiu o centro do círculo. Todo mundo ficou em choque, mas o medo da morte não era grande o bastante para afugentá-los.
“Todos permaneceram onde estavam, ninguém moveu um passo sequer. Centenas de descargas elétricas caíram sobre o ferro, liquefazendo-o. Então eu falei pela primeira vez desde o início do ritual: “O ferro diante de vocês é especial, é um presente da mãe natureza trazido por um nobre aliado. Venham, peguem-no, utilizem à sua vontade”.
“Mas ninguém se moveu, ninguém entendeu o que eu queria dizer. O grande urso negro, Torhell, ancestral de Torvell, foi o primeiro a se dirigir ao monte de ferro. O animal de olhos vermelhos mergulhou suas patas no ferro fundido.
“Todo mundo esperou que ele rugisse de dor, pois o líquido deveria estar quente como as entranhas sol, mas Torhell soltou apenas um grunhido de incômodo, então sentiu o ferro derretido ganhar forma em suas patas, como se estivesse vivo. Instantes depois haviam camadas metálicas cobrindo-lhe as patas, resistentes como aço e afiadas como a Lâmina de Salazar.
“Torhell ficou conhecido como o primeiro urso de ferro. Depois dele, os demais ursos seguiram seu exemplo e também mergulharam suas patas no monte de ferro líquido.
“O ritual chegou ao fim, e todo o ferro foi utilizado pelos ursos.”
— E os druidas ficaram sem nada? — Ragnar quis saber.
— Os druidas cederam o ferro aos ursos como agradecimento por lutarem ao seu lado por tantos anos. É claro que uma camada de ferro não seria suficiente para acabar com as legiões de Mergraff. O ferro também os agraciou com poderes mágicos. Eles agora conseguiam canalizar cargas elétricas em suas patas.
“Este poder se mostrou fatal na última batalha, especialmente contra os cavaleiros da morte em suas armaduras pesadas. A patada poderia não romper o aço que protegia as criaturas, mas a carga elétrica os atordoava, deixando-os vulneráveis.
“Nós vencemos a guerra. A legião dos mortos foi derrotada. Eu cravei meu machado no crânio de Mergraff. O necromante de Salem estava morto. Os soldados inimigos ainda em pé se renderam. Sem um mestre para servir, eles recobraram parte da humanidade e se ajoelharam perante a mim, clamando por piedade.
“Eu poupei suas vidas com uma condição: que vivessem para o bem, que deixassem a crueldade para trás e passassem a viver como as pessoas boas que eram antes de serem escravizados.
“Deste então a cidade de Salem voltou a prosperar, mas ela ficou conhecida como a Cidade dos Mortos.
“Então foi assim, meu caro Ragnar, que eu me tornei um herói entre os druidas.”
— Se vocês ganharam a guerra, como o Refúgio dos Ursos ficou abandonado desse jeito?
— Eu não testemunhei a decadência, isso deve ter acontecido nos cem anos desde a minha morte. — Bjorn respirou fundo. — Chega de histórias. É hora de avaliar suas habilidades. Se você passar pelas Provações Druidas, eu farei de você meu sucessor.
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