O Desejo Depois Da Morte - Capítulo 10
As vozes reverberaram, ecos distantes, transformando-se em murmúrios. “Irmão, acho que ele está acordando!” alguém sussurrou. Seu retorno à consciência foi recebido por dores pulsantes. Apertou os olhos com firmeza, e ao abri-los, encontrou-se sentado e com as costas apoiadas numa fria parede de pedra.
E bem na frente de seus olhos, onde apenas ele era capaz de enxergar, estava algo que não esperava ver tão cedo.
[Sistema Ascend]
[Chegue na cidade de Ariasken]
Tempo limite: 8 dias.
Recompensas:
– Fragmento de Memória
– Desbloqueio temporário do “Sistema”
– Aumento do vínculo com o “Coração de Ehdoton”
Falha: Morte imediata
Essa maldita tela de novo… Morte imediata!? Que porra é essa?
Estava escuro, e a visão turva não ajudava muito. O ambiente revelava um chão empoeirado, uma porta feita de barras de ferro e tochas iluminando um corredor sombrio. Uma prisão, deduziu.
Não, não vamos pensar nisso agora.
Seus dedos buscaram por instinto o cordão, mas em seu peito nada havia, restando uma sensação de que algo estava faltando.
Preciso recuperar meu cordão.
Cruzou olhares com um garoto e uma garota, os mesmos que estavam juntos da jovem de cabelos brancos que viu antes. Um garoto de orelhas esquisitas e uma garota com chifres, os dois exibindo ferimentos leves em seus rostos.
A jovem de cabelos brancos também estava lá, isolada num canto da cela, os braços cruzados. Todos compartilhavam a desolação de vestir trapos envelhecidos.
Avaliando a situação, percebeu cortes e manchas roxas espalhadas no próprio corpo, resultado dos implacáveis ataques de Edgard. Os braços, em especial, mostravam as marcas desde o pulso até os cotovelos.
A maioria das feridas estão um pouco inchadas. Minhas roupas foram levadas.
Voltou a encarar a garota de cabelos brancos, notando que a maioria dos seus ferimentos haviam desaparecido.
Considerando o quão ferida estava antes, ela parece bem.
— Você tá bem ferrado, hein? — disse a menina de olhos verdes, aproximando-se com um sorriso amigável. — Como se sente?
O jovem meneou a cabeça. — Eu já estive pior.
Lunna observou o estado de Hazan, franzindo as sobrancelhas e mostrando compaixão. Se aproximou, os olhos da garota brilharam, iluminando a cela. De suas mãos, uma fraca luz verde surgiu, e encostou a palma no peitoral do rapaz.
Aos poucos, todas as feridas que seguiam pelo corpo do lutador foram melhorando. Não estavam fechadas por completo, mas o inchaço diminuiu e as escoriações também.
O meio-elfo afastou a mão de sua irmã, a preocupação estampada no rosto. — Lunna! Já disse para não usar isso sem me perguntar primeiro! Não sabemos se ele é confiável!
— Ele lutou para nos proteger, porque não seria confiável? Cof! Cof! — Levou a mão até a boca, tossindo.
— É muito estranho que um cara apareça do nada e tente ajudar pessoas que nunca viu na vida!
— Ugh, você é um orelhudo insuportável! Só estava tentando ajudar, deixa de ser chato por pelo menos um minuto? — retrucou, fazendo careta e mostrando a língua.
Uma veia saltou de sua bochecha. — Achei que esses chifres serviam para captar boas ideias, mas você continua burra como uma porta!
Uma disputa de força começou entre os dois, irritados e indignados, revelando a juventude que mal ultrapassava os 14 anos.
Lunna interrompeu, puxando as orelhas do elfo. — Esse grande bobão aqui se chama Aspen, ele é meu amado irmão! — debochou.
Aspen cerrou os dentes e afastou-se de Lunna, bagunçando os cabelos dela antes de fixar um olhar cauteloso em Hazan. Ele correspondeu ao olhar, enrugando as sobrancelhas e comparando as características distintas dos jovens.
— Vocês não são nada parecidos — comentou, esfregando o queixo. — E obrigado por isso, sejá lá o que você fez.
— Nunca tinha visto uma pessoa normal enfrentar um pujante de igual para igual, isso foi incrível!
— Pujante?
— Um guerreiro capaz de usar aura é chamado pujante, você não sabe? — O meio-elfo questionou, cruzando os braços e cerrando os olhos.
— Aura…? — Fez que não com a cabeça. — Não sou daqui, não lembro muito bem de onde eu vim, e não sei nada sobre esse lugar.
Aspen acenou relutante.
— Vivíamos em um orfanato na Cidadela de Ariasken… — Cruzou os braços, encarando o canto da cela enquanto lembrava do passado. — Um dia, eu e Lunna estávamos colhendo algumas ervas para que pudéssemos vender, quando fomos capturados…
— Esse lugar é uma fortaleza. Consegui espiar pelas fendas da jaula quando fomos levados, estamos próximos à fronteira do reino… — Abaixou a cabeça, mantendo-se pensativa. — Muito longe de casa.
Uma fortaleza… Porcaria. Não vou desanimar com isso, preciso focar no que posso fazer.
— Aspen e Lunna, esses são bons nomes. — Sorriu, encarando os dois. — Me chamo Hazan. Olha, sei que não querem ficar aqui para sempre, e eu também não. Precisamos dar um jeito de fugir. Juntos.
— E porque faria isso por nós? — Aspen estava cético.
— Por que eu não faria? Vocês são apenas crianças.
Olhos repletos de sinceridade e uma voz que ecoava com a convicção de que aquilo era o que deveria ser feito. O tipo de generosidade que eles não estavam acostumados a receber de estranhos. Como órfãos, suas existências eram frequentemente julgadas como sem valor. Ao receberem aquela resposta, sentiram-se desamparados, confusos entre acolher tal gentileza ou rejeitá-la, temendo que fossem enganados.
— Não sei se vocês são tolos ou apenas ignorantes.
Os demais dirigiram seus olhares para o canto da cela, onde ela permanecera em silêncio até aquele momento. Encarando Hazan com desdém, Aurora prosseguiu.
— Fugir desse lugar? Olhe para si mesmo. Todas essas feridas expostas numa cela imunda. A garota só lhe deu um momento de conforto. Você pegará uma infecção e estará morto em algumas semanas, na melhor das hipóteses.
— Isso não vai acontecer — o lutador respondeu, convicto.
Ela franziu as sobrancelhas. — Então você é um tolo.
— Não lembro de ter pedido a sua opinião.
Os irmãos se entreolharam confusos, Aspen sussurrando para Lunna. — Ele não a salvou mais cedo?
— Seu estado é patético, e graças ao ritual de cárcere, eu me tornei uma escrava vinculada a você. — Seu olhar tornou-se ameaçador. — Seria fácil te matar, e isso me pouparia muitos problemas.
— Então por que não tenta?
— Não me provoque. — Aurora estreitou a vista, o ambiente tornando-se pesado com sua intenção assassina. As crianças suaram frio diante da tensão que se intensificava.
Hazan não recuou.
— Tenta.
ROOOARR!
A tensão atingiu seu ápice quando todos escutaram um rugido monstruoso, fazendo o chão e as celas tremerem.
— Há!Há! Nosso querido feral está de mau-humor, acho que está na hora de alimentá-lo.
Passos ecoaram pelo corredor, William apareceu detrás das grades, acompanhado por Edgard, seu guarda-costas, segurando um estranho globo azul numa almofada vermelha.
Um sorriso arrogante adornou o rosto de William ao encarar Hazan e os outros escravos. — Inicie o contato — ordenou.
Edgard tocou a palma da mão no globo, desencadeando uma intensa luz azul. O brilho tomou forma, avançando em direção à parede e se solidificando. Uma tela retangular, formando uma silhueta feminina, sentada em um trono, surgiu. Cabelos longos e cacheados, uma pinta no canto da boca, nariz empinado e olhar frio.
William, ajustando suas roupas pomposas, exibiu seu sorriso mais cativante. — Marquesa Beatrice, espero não incomodar com este contato repentino, mas achei relevante mostrar algumas de minhas recentes aquisições!
Ele apontou para a cela onde Hazan estava. — Um meio-elfo, uma dragoniana do tipo vitalis, um possível tahtoriano e uma polariana! Consegue acreditar? Uma polariana em Wurid?
Beatrice passou o olhar para cada prisioneiro, observando em silêncio. — Qual é o preço da polariana?
— Essa raça é demasiada rara, pois vivem no extremo norte em Glaciem. Polarianos resistem a temperaturas negativas, sua afinidade com água e gelo os torna talentos notáveis. Como mencionei ante-
— Chega. Sem devaneios.
— Certo… Mil moedas de ouro.
— Com esse valor, eu compraria centenas de escravos saudáveis e fortes. Fora de questão. — Ela encarou Hazan. — O que quis dizer com “possivel tahtoriano”?
— Ele? Hm, bem… — William esfregou as mãos, um sorriso ardiloso surgindo. — Este jovem enfrentou Edgard, um pujante avançado de três estrelas, usando técnicas de combate que eu nunca vi em todos esses anos sendo um humilde comerciante.
Beatrice ergueu a sobrancelha, intrigada. — Então ele sabe lutar?
— Definitivamente! Devido a alguns conflitos ocorrendo entre Tahtoa do Sul e Tahtoa do Norte, suspeito que ele seja um dos refugiados que escaparam para cá. Um guerreiro do “Deserto de Tahtoa!” — Enrolou o bigode no indicador, piscando para Beatrice. — Você é minha cliente de longa data, farei uma promoção especial: 200 moedas de ouro!
— Uma aposta… — Os lábios cresceram num sorriso. — Eu gosto de apostar, e meu filho precisa de um guarda-costas. Quem sabe aprender as técnicas de um “possível tahtoriano” seja benéfico para ele. Traga esse rapaz para minha propriedade. Se suas palavras forem verdade, teremos um acordo.
— Sua cautela é o que faz nossos negócios fluírem tão bem.
— Sobre a polariana, conheço um colecionador de escravos raros em Sohen. Se fecharem negócios… — Ela apontou para Aspen e Lunna. — Quero essas duas crianças como pagamento e um desconto no preço do rapaz.
— Sua perspicácia nunca deixa de me surpreender, Marquesa Beatrice.
— Acabamos por aqui. Você tem uma semana para trazê-los até mim.
A imagem da mulher se distorceu, e o globo cessou o brilho.
— Reforce a segurança neste calabouço, não podemos perder essa excelente oportunidade. Irei adiantar minha viagem para Ariasken, precisamos preparar nossas instalações para a próxima leva de escravos — disse o nobre, seu rosto antes gentil sendo tomado por uma feição fria ao encarar um dos guardas no corredor. — E não esqueça de alimentar o feral com os escravos que restaram aqui.
O guarda engoliu em seco e concordou.
As duas figuras desapareceram no corredor.
Aspen bagunçou os próprios cabelos. — Acabou… Beatrice é uma das pessoas mais influentes do reino! Mesmo que a gente escape, ainda vamos continuar sendo perseguidos…
— Isso é ridículo. Precisamos pensar num plano e tirar esses dois daqui. — Os olhos do rapaz se viraram para Aurora.
De braços cruzados, os olhos cianos se voltaram para ele. Olhos arrogantes e que passavam um ar de reprovação. — Oh, que nobre da sua parte. Vai salvar o dia, não é? Assim como fez mais cedo, tomando uma surra de Edgard e se juntando a nós?
— Também não suporto você, sua maluca. Mas não me importo com isso se eu conseguir ajudar esses dois.
— Se for capaz de sobreviver até lá, veremos como isso tudo se desenrola — respondeu, dando de ombros.
[…]
Quatro luas tinham erguido e baixado desde que Hazan se tornou um escravo. As feridas que marcavam seu corpo sumiram com o passar dos dias, graças ao suporte de Lunna, e curiosamente, a estranha recuperação do lutador. Por outro lado, a condição da dragoniana só se deteriorava com o passar dos dias, um declínio visível, junto a crescente fome que envolvia os irmãos.
Um pão envelhecido e uma sopa de ossos fedorenta era a alimentação oferecida por aquela prisão. Não se importou em dividir a sua parte com as crianças. O estômago vazio fazia questão de doer, se tornando um lembrete frequente da própria fome, embora ele não se importasse.
A menina, de olhos verdes e expressões vibrantes, agora estava enfraquecida, sua temperatura elevada e a respiração entrecortada preenchendo o silêncio sufocante da cela. Testemunhar a decadência de uma criança que, nos primeiros momentos de seu encontro, mostrara compaixão, era uma punição por si só.
Hazan e Aurora acumularam informações sobre os padrões dos guardas, preparando-se para a fuga iminente que planejavam durante a madrugada, quando o lugar era mais escuro e o número de sentinelas diminuía.
— Ei! — Hazan gritou, sua voz alcançando os guardas do lado de fora da cela. — Minha amiga está com sede, não poderiam dar um pouco de água?
Andou para perto da cela, pegou uma vasilha rudimentar e a estendeu para o guarda que tinha uma enorme cicatriz no olho direito, um pedido que visava amenizar o sofrimento de Lunna. O olhar do guarda, no entanto, traziam sombras maldosas, junto a um sorriso sinistro.
— Hehe, claro, o que eu não faria por uma pobre criança? — ironizou, ajustando a espada na cintura.
Após apanhar a vasilha, o homem virou de costas e a posicionou no chão. O som repugnante da vasilha sendo preenchida, seguido pelo fedor acre de urina, invadiu aquele pequeno cômodo. Enquanto um dos guardas ria sem parar, a vasilha, agora transbordando de mijo, foi chutada em direção a Hazan, que ergueu os braços para proteger Lunna dos respingos.
— Você não tem juízo, hein? Pedir algo assim, na sua condição. Se fosse eu, ficaria calado e aceitaria o meu destino de merda!
Silêncio foi a resposta do rapaz, que encarou o guarda com intensidade.
— O que há com esse olhar? — Agarrou a porta da cela, balançando-a. — Acha que eu não posso entrar aí e acabar com você!?
Um guarda no fim do corredor gritou, avisando que era a hora de trocar os turnos e interrompendo o confronto.
— Se não fosse pela mudança de turnos, você já estaria morto! — bufou o homem, cuspindo com desdém antes de deixar a cela, junto ao riso vil de seu parceiro.
Voltou a encarar Lunna, o suor escorria de testa e suas sobrancelhas estavam franzidas devido ao alvoroço.
— Não podemos mais esperar — murmurou, erguendo-se após decidir. — Ela continua piorando. Temos que agir agora.
— Consegue enfrentar todos aqueles guardas lá fora? — retrucou em um claro tom de sarcasmo. — Eu aposto que não. É melhor você não fazer nada estúpido.
Ignorando o aviso de Aurora, Hazan começou a alongar os músculos dos braços e das pernas.
— Eu vou fazer algo muito estúpido.
E com um estrondo, um chute brutal fez a porta e o cadeado se arremessarem para frente, colidindo contra a parede oposta, a liberdade conquistada de forma violenta.
Agarrou a vasilha de madeira e olhou para frente. Haviam dois guardas seguindo pelo extenso corredor e dois guardas descendo uma escadaria em espiral.
Flexionou os joelhos e avançou numa investida veloz.
— Atrás de você! — avisou um guarda, mas era tarde demais.
Crack!
Hazan despedaçou a vasilha de madeira na cabeça de um dos guardas com tal ferocidade que o homem desabou, já desmaiado.
O segundo guarda, surpreso, sacou uma espada curta em direção ao estômago de Hazan. Ele não esperava que o rapaz evitasse o ataque rotacionando o corpo, punindo o avanço descuidado com um gancho que atingiu o queixo do guerreiro. Sangue e dentes voaram pelo ar.
Bam!
Os outros soldados na escadaria reagiram empunhando suas armas. Um arqueiro puxou duas flechas da aljava, atirando na direção do habilidoso lutador.
Swish! Grab!
Hazan agachou no último instante, evitando a primeira flecha que passou rente a cabeça e agarrando a segunda no ar. Com um giro preciso, lançou a flecha de volta com uma força imparável em direção ao guarda.
Swish! Stuck!
O ombro do guarda caolho foi perfurado, jorrando sangue. O homem, sem capacidade de reação, gritou de dor e caiu de joelhos com o ombro ferido. Seu parceiro, apavorado, largou a espada no chão e optou por fugir em direção à escadaria.
Hazan cobriu a distância em segundos, sua sombra envolvendo a cabeça do fugitivo e impactando-a brutalmente contra a parede. O elmo amassou com o impacto.
Bam!
Três inimigos inconscientes, e um gemendo de dor. Hazan se aproximou, os olhos alaranjados fitando o guarda de cima para baixo, não havia resquícios de qualquer sentimento além de indiferença.
— Quantos guardas estão lá fora? — Seu tom era de ameaça.
— Hehe… A-acha q-que eu v-vou dizer algo para voc-
Scrash!
Pisou na ponta da flecha, deixando ela atravessar o ombro.
— Argh, para! P-para! São cerca de setenta homens, droga!
— É melhor que você esteja dizendo a verdade, ou eu vou-
Um puxão no ombro, as costas batendo contra a parede, uma lâmina fria colocada em sua garganta. Aurora fixou os olhos no rapaz.
— Não cansa de me dar motivos para te matar? — Pressionou a ponta da lâmina em seu pescoço, deixando o sangue escorrer. — Ignorou meu aviso, agiu como um bárbaro estúpido, e agora é questão de tempo até eles virem checar o que aconteceu! Acha que vai ser capaz de proteger esse pivetes contra dezenas de homens?
— Então agora você se importa com eles? Não vou ficar parado vendo ela morrer! — Estreitou os olhos como uma forma de aviso. — Então tira essa adaga do meu pescoço antes que se arrependa.
Aurora cerrou o punho em volta da adaga, e Hazan agarrou seu pulso, invertendo a pose e pressionando ela contra a parede. Aurora revidou, atingindo o estômago com uma joelhada e o empurrando para longe.
Ela avançou, usando cortes rápidos e sorrateiros iguais a um chicote, em direção ao pescoço de Hazan, não escondendo sua clara vontade de matar. O pardo evitou todos, tomando distância, e então socou a parte plana da adaga, fazendo ela voar longe.
Aurora abaixou no mesmo momento, e rotacionando o corpo, acertou outro chute no estômago do rapaz, no mesmo lugar que antes, fazendo-o derrapar.
Aspen carregava sua irmã nas costas, os dentes cerrados e as pernas tremendo. Observou os cantos das celas onde deveriam ter outros escravos, percebendo que elas estavam vazias, restando apenas sangue seco.
Eles realmente alimentaram um feral com pessoas vivas…?
A pressão entre os dois estava tão forte que interrompeu a linha de raciocínio do garoto. Sua garganta fechou, e aos poucos sentiu o desespero tomar conta. A coragem surgiu num momento de medo, e ele se colocou entre a dupla briguenta.
— O-o o guarda! — avisou, apontando para o corredor.
O guarda ferido, com sangue escorrendo por entre os dedos, aproveitou a confusão para se esgueirar, mas, ao contrário do esperado, não se dirigiu à escadaria. Ele se enfiou em uma cela que se revelou ser muito maior do que as demais.
Hazan ignorou Aurora e o perseguiu, observando o guarda desaparecer em um alçapão aberto no centro da cela. Sem hesitação, saltou no buraco escuro.
Seus pés aterrissaram em algo pegajoso, emitindo um som repulsivo.
Uma mão em decomposição. E isso era apenas o começo. Olhando ao redor, tentando ignorar os montes de ossos e corpos despedaçados, notou uma lareira crepitante, seus brasões iluminando o ambiente macabro. O espaço estava repleto de ossos humanos, servindo de lenha para aquele fogo vermelho.
Uma onda de náusea subiu pela garganta, ele apertou a mão contra a boca, forçando a própria respiração.
Isso é desumano…
— Eu te avisei, não avisei, moleque? Para você aceitar o seu destino miserável!
Preso por correntes grossas, lá estava o tão falado feral. Ao seu lado, o guarda caolho exibia um sorriso sádico.
À luz vacilante da lareira, a verdadeira forma da criatura se tornou visível. Pelo menos quatro metros de altura, chifres vermelhos e retorcidos perfuravam o ar, escamas negras cobriam seus membros e sua pele vermelha estava marcada por cicatrizes grotescas. Seu rosto, uma distorção cruel da semelhança com um humano, estava repleto de cicatrizes e manchado de sangue seco.
Com um clique metálico, o guarda destravou o cadeado que prendia as correntes, libertando a besta.
Um som úmido ecoou quando a cabeça do guarda foi arrancada de uma só vez, uma refeição para a fera. Hazan não esperou para assistir ao desenrolar da cena. Ele correu em direção à saída, subindo a escadaria do alçapão e se encontrando com Aurora e as crianças.
— Corram!
SCRASH! KABOOM!
[…]
Do lado de fora, gritos desesperados vinham dos guardas, confusos com um feral solto dentro da fortaleza.
— Onde está o Sr. Edgard!? Precisamos dele para acabar com esse feral, e rápido! — exclamou um dos mercenários.
Boom!
O corpo do guarda foi consumido por uma bola de fogo devastadora, que não apenas o atingiu, mas se expandiu uma explosão infernal, lançando chamas em todas as direções, lançando brasas o mais longe possível.
No caos e nos vestígios de sangue do campo de batalha, estava o feral exibindo um sorriso bizarro. Seu corpo musculoso era agora uma visão distorcida, envolto em chamas sinistras.
O vermelho ardente de seus olhos brilhava com uma intensidade demoníaca enquanto ele fitava suas presas. A boca aberta expeliu chamas vorazes, dizimando diversos soldados que se encontravam no caminho.
Correndo pela fortaleza numa velocidade sobrenatural, o feral esmagava qualquer soldado que cruzasse seu caminho. Agarrou um deles com as duas mãos, separando-o com uma facilidade assombrosa, se banhando no sangue e nos órgãos que caíam sobre seu rosto.
A fortaleza transformou-se em um verdadeiro abatedouro, dezenas de guardas organizavam uma formação para derrotar aquele monstro. Quanto mais homens ele se alimentava, mais sua força crescia, e mais rastros de destruição e horror pintavam o seu despertar.
Ainda no calabouço, Hazan e seu grupo correram pelo corredor, alcançando a escadaria em espiral e se deparando com uma porta de madeira.
Ao invés de nos atacar, ele destruiu o teto e foi atrás de onde tinha a maior concentração de pessoas. Demos sorte, preciso ajudar a Lunna e dar o fora daqui!
Assim que Hazan abriu a porta, seus olhos tremeram com a quantidade de sangue que estava espalhado pelo chão. O fogo se alastrava e o rastro de morte era avistado por todo canto.
A fortaleza não era tão grande. Os muros tinham uma altura razoável e havia quatro torres em cada ponta, formando um quadrado. Perto das calçadas, plantações de ervas enormes. Pequenas estradas conectam todos os prédios e lampiões que iluminavam o lugar naquela noite.
No meio, uma torre de seis andares construída em madeira e argila parecia ser a estrutura principal. Alguns soldados atiravam flechas do alto das torres tentando atingir o feral, mas estava longe demais para que eles pudessem enxergar os detalhes.
— O-o que vamos fazer? — Aspen estava roendo a unha do polegar.
— Tá vendo aquela torre enorme? Ela pode ter coisas úteis no geral, e talvez até algo que possa ajudar a Lunna. Vamos dar uma olhada lá, esperar essa confusão passar e depois cair fora.
— C-certo…
Hazan coçou a cabeça e suspirou, aquela era uma decisão difícil.
Ir embora agora é muito arriscado, tem soldados correndo pra todos os lados, porque eles manteriam preso um monstro que não conseguem conter?
Aurora tomou a frente, empurrando Hazan e o encarando por cima dos ombros. — Da próxima vez que eu te ver, você está morto. Cuidado com as costas.
Correu pelo campo de batalha e se camuflou num piscar de olhos, usando as plantações que estavam espalhadas pelo lugar e desaparecendo.
Doida do caralho.
— Deixa que eu carrego ela. Vou na frente, acha que consegue me acompanhar? — Hazan desafiou o garoto, um sorriso sereno no rosto.
Aspen engoliu seco e fez que sim com a cabeça.
Lunna subiu nas costas dele e cruzou as pernas em sua cintura.
— Segura firme. Beleza, quando eu contar até três. Um… Dois… Três!
E ultrapassaram a porta, disparando o mais rápido que conseguiram. Lunna agarrou o pescoço de Hazan com força, segurando as lágrimas e os soluços.
Várias flechas voavam pelo campo de batalha, Hazan desviou de uma delas que veio em direção ao seu rosto.
O corpo de um mercenário estirado no chão carregava um pequeno escudo de madeira. Aproveitando que o objeto já estava no percurso, ele o agarrou.
— Droga, droga, droga! — Gritou outro guarda ao ver o grupo correndo em sua direção. — Eu juro que vou matar todos vocês!
Hazan apertou os dentes, intensificando sua investida para encurtar a distância entre ele e seu oponente. O soldado, surpreendido, ergueu as sobrancelhas e atacou por instinto.
Swin!
O lutador flexionou os joelhos, agachando e girando no último segundo, deixando a espada passar rente à sua cabeça. Num movimento fluido, impulsionou-se, completando o giro e acertando o maxilar do guarda com a lateral do escudo.
Bam!
Um impacto seco ecoou quando o homem desabou, mas Hazan não perdeu tempo, alcançando a entrada do prédio.
Aspen mal podia acreditar no que presenciara: um jovem desprovido de equipamento atravessando o campo de batalha, esquivando-se de flechas, improvisando armas e nocauteando um guarda treinado com um único golpe. Sem contar os guardas que ele derrotou em segundos no extenso corredor do calabouço. Aquilo não era normal.
Subiram a pequena escadaria para o edifício principal. Uma ombrada vigorosa, Hazan arrombou a porta dupla, permitindo que Aspen entrasse primeiro antes de fechá-la imediatamente.
Soldados do lado de fora perceberam a invasão, tentando forçar a entrada e confrontando Hazan.
— Não vou segurar isso pra sempre! Precisamos de algo para bloquear a entrada, rápido! — exclamou ele, firme.
O primeiro andar da torre se mostrou um dormitório, camas e armários espalhados por todos os cantos. Com esforço, Aspen arrastou a cama mais próxima até a porta, e assim eles trabalharam em equipe para bloquear o acesso.
A porta quase cedeu, uma fresta ampla por onde a lâmina de um guarda se infiltrou, cortando a bochecha de Hazan, por pouco não atingindo seu olho. Agarrou o punho do homem, torceu até quebrá-lo, forçando o inimigo a recuar o braço, mas deixando a espada ali.
Crack!
Não perderam a oportunidade e fecharam a porta de uma só vez.
Bam!
Os gritos do lado de fora continuaram intensos.
O elfo soltou um suspiro de alívio, descansando e limpando o suor da testa.
— Vamos dar uma olhada nesse lugar. Lunna, você já pode descer.
Ele podia sentir a tremedeira da garota nas costas.
— N-não quero… Prefiro ficar aqui.
Ela abraçou o pescoço de Hazan ainda mais forte e se recusou a descer, fechando os olhos com força.
— L-Lunna! Você não pode atrapalhar ele, porque não desce e fica comigo? — disse Aspen.
— N-não! — exclamou a menina, apertando os braços mais forte em volta do pescoço de Hazan.
Perplexo, ele fez um sinal com a palma aberta para o garoto elfo. — Eu consigo cuidar dela. — Pegou a espada que estava no chão, estendendo ela para o loiro e sorrindo. — E você cuida das nossas costas.
— E se ela te atrapalhar? — indagou, segurando a espada.
— Então eu não fui forte o suficiente.
Os olhos de Aspen brilharam com tamanha confiança.
Se depararam com uma placa ao lado da escadaria. Hazan não entendia nada do que estava escrito, e Aspen espremeu a vista.
— É difícil sem meus óculos… Os escritórios ficam no penúltimo andar, e o último andar é um observatório!
— Vamos, não podemos perder tempo.
Tem que ter algo nos escritórios. Qualquer coisa. Não vou deixar essa garota morrer.
Subiram a escadaria, ignorando os outros andares.
Um corredor com o piso de madeira e paredes de argila pintadas de branco e amarelo. Infestado de quadros artísticos, e algumas janelas de vidro, uma escrivaninha com um jarro de plantas enfeitava o ambiente no fim do corredor.
Apenas duas portas existiam no corredor, e ambas tinham placas de madeira com nomes entalhados.
“Barão William”, é aqui!
A penúltima porta do corredor. Aspen tentou abri-la e percebeu que estava trancada. O garoto andou até a escrivaninha, abriu as gavetas e achou um par de chaves, uma de prata e outra de ouro.
Click!
Apostando na chave de ouro, um estalar metálico, a porta foi aberta.
— Boa! — Hazan elogiou, o polegar apontado para cima.
O elfo correspondeu com um sorriso sem jeito, e eles entraram no cômodo.
O escritório de William era simples: uma sala pequena, dois armários paralelos um ao outro nos cantos, um tapete de urso decorando o espaço vazio e uma enorme mesa acompanhada de uma cadeira de couro. Pilhas de livros e garrafas de vinho estavam sobre a mesa.
A janela que estava atrás da cadeira tinha uma visão para a parte de trás da fortaleza, fogo tomando o lugar pouco a pouco e soldados correndo com suas armas em punho.
Tá um verdadeiro caos lá fora.
— Dá uma olhada naquele armário do canto — pediu ao garoto.
Hazan andou até o armário oposto e o abriu, se deparando com mais garrafas de vinho, cartas, taças de prata adornadas e um espelho de tamanho médio fixado na altura do rosto.
Nada realmente útil. A tendência do estado dela é piorar, se não tem nada de bom aqui, nossa melhor opção é fugir e conseguir ajuda!
— Hazan, acho que encontrei as suas coisas!
— Sério? — ele virou, os olhos esperançosos em direção ao meio-elfo. No armário, haviam as mesmas roupas que o acompanharam desde seu despertar no templo das estátuas, porém, limpas e dobradas.
— E-eu vou descer… — falou a dragoniana.
Sem sinal do meu cordão… Mas ainda é melhor do que vestir trapos. Preciso encontrar algo pra eles também, não posso ser o único agasalhado.
— Vou verificar se a outra chave serve para a última porta do corredor. É melhor você cuidar da Lunna enquanto isso! — alertou Aspen.
Após Lunna descer, deixou o escudo sobre a mesa do escritório e se vestiu. Camisa preta, calças jeans azul e tênis. Ajeitando o cinto, ele se olhou no espelho do armário.
Bem melhor.
— Tá um caos lá fora, vamos esperar as coisas acalmarem antes de partirm-
Swin!
O vidro do armário refletiu uma pequena luz, o suficiente para que Hazan jogasse a cabeça para o lado antes de ser acertado. A espada que estava com Aspen cravou no espelho, partindo-o em estilhaços de vidro.
— Hehe, vocês fizeram uma verdadeira bagunça. Soltar um feral faminto? Eu não teria pensado em tamanha crueldade.
Edgard segurava os cabelos loiros de Aspen com indelicadeza na saída do escritório. Desacordado, a boca do elfo pingava sangue.
— I-irmão…! — Lunna começou a chorar.
— Devo adiantar minha gratidão, esse lugar estava precisando de um pouco de emoção. — O sorriso combinado de uma expressão fria era inquietante.
Punhos cerrados e olhos fixados em Edgard, Hazan sequer piscava.
— Solta ele. Agora!
O guerreiro sorriu e brutalmente jogou Aspen no chão. — Interessado numa revanche, garoto? Espero que me divirta, após subjulgar vocês e matar aquele feral, vou ter muita papelada pra lidar, então faça meu tempo valer a pena.
Do bolso, ele tirou algo que Hazan conhecia muito bem. Seu cordão, agora consertado, balançava num brilho atrativo. — Quer isso de volta? Por que não vem pegar? — provocou, guardando o cordão de volta no bolso.
Hazan e Edgard diminuíram pouco a pouco a distância, e um combate se iniciaria.
A destruição continuava acontecendo do lado de fora, os guardas não pareciam estar tendo sucesso ao conter o feral, e as chamas vermelhas continuaram a se espalhar, cada vez mais longe. Era só questão de tempo até atingir o prédio onde eles estavam.
O gosto da derrota continuava amargo entre os lábios do rapaz, que fez questão de lembrar cada detalhe da luta anterior contra Edgard durante todos os dias que passou trancado. O oponente era muito mais experiente e poderoso, e ainda existia a preocupação de proteger as crianças.
Nada estava a favor de Hazan.