O Belo e a Medonha - Capítulo 9
Damuzzu acordou um pouco diferente no dia seguinte. Colado nos postes, muros, tendas, às vezes jogado ao chão, haviam folhetos de propaganda.
Eles diziam: “Festa de bebidas na Taverna local, bebida a vontade a qualquer visitante por conta da casa.
Às 18 horas.”
Na taverna de anatol, um grande saco com peças de ouro estava em cima da bancada, junto de um pequeno bilhete.
“Gostaria de reservar a taverna, acredito que isso seja o suficiente.
Ass. Capitão Tsezar”
O vilarejo não era muito movimentado, então a notícia de uma festa vindo tão bruscamente alegrou a todos
Rapidamente se tornou popular entre os populares, as pessoas contavam em seus trabalhos e até mesmo as crianças estavam conscientes do fato.
Na pensão, o sol da manhã com dificuldade iluminava o quarto. Enquanto as tendas se abriam do lado de fora, Tsezar afinava seu bandolim com parcimônia. A cada toque, uma melodia calma se formava, trazendo memórias doces ao rapaz.
Pricyla acompanhava a música meio desatenta; os barulhos graves que suas correntes faziam eram sobrepostos a algo semelhante a um ronronar.
Quando ela olhou para o loiro nos olhos, ele já sabia o que ela perguntava.
— Sim Pricyla, é essa mesma, a primeira música que toquei quando nos conhecemos.
Se arrastando, a serpente começou a se enroscar no braço que o rapaz tocava as notas. Ela o apertou e o auxiliou a afinar o instrumento.
A melodia doce desapareceu e deu origem a toques abrangentes e alegres, um ritmo dançante contaminou os dedos do loiro; dançante ao ponto que a Serpente começou a se mexer ritmicamente após se desgrudar do braço do oficial.
A calmaria que reinou por décadas em Damuzzu sumiu mais rápido que nuvens de chuva em uma seca; as pessoas que passavam pela rua se surpreenderam ao ouvir a música que exalava pela janela.
Os sentimentos foram diversos: os mais jovens davam pequenos toques como estalos de dedos ou batidas dos pés, acompanhando o ritmo, os mais velhos “fecharam a cara” em negação.
A melodia só teve seu fim quando uma pedra foi lançada pela janela e “coincidentemente” acertou o cantor.
— Chega dessa cantoria! — gritou um senhor que andava com sua muleta.
Antes que o homem de idade pudesse gritar de novo, a pedra que ele havia jogado acertou o solo próximo à perna dele com velocidade o suficiente para criar uma pequena cratera.
Talvez fosse o abalo criado pelo impacto, talvez fosse alguma veia de seu coração, mas naquele momento, o velho sentiu uma palpitada em seu peito.
— Esses caipiras não apreciam uma boa música. — Pricyla parecia concordar com aquela afirmação.
Com um suspiro, Tsezar abandonou seu bandolim sobre a cama e se levantou. De pé ele analisou a parede que ele havia decorado de documentos.
O frio do início da manhã acanhava o oficial, confortando aquela carcaça cheia de marcas. Seu corpo que anteriormente queimava dado o treino diário foi resfriado pela brisa gélida que transpassava pela janela.
Essa mesma brisa soprava as folhas pregadas na parede à frente dele. Aquele desenho rude e brusco da fera, que estava à altura dos olhos, atraia a atenção do rapaz como mel chama um urso.
— Pricyla, se prepare, vamos caçar um pouco.
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Diferente de quando chegou, Tsezar reparou nos guardas que protegiam as entradas e saídas da vila, com suas enxadas e foices eles tentavam fazer vigilâncias.
Perto da entrada, uma dupla protegia os grandes portões de Damuzzu. Ambos dormiam apoiados sobre seus bastões.
Aos poucos um deles acordou e deu-se de cara com um homem alto, loiro e com roupas mais limpas do que qualquer uma que ele já tenha usado na vida.
— Poderia me tirar uma dúvida?
Os olhos do rapaz se esbugalharam como os de uma lebre e por pouco a ponta do cabo não acertou sua boca com força, mas ele conseguiu se recompor.
— Ah! Sim, claro cidadão!
Seu suor frio escorreu entre suas roupas com extrema facilidade, grudando aquele tecido sujo ao seu corpo mal lavado.
— Não precisa de tantas formalidades, apenas gostaria de saber um bom lugar para caçar na floresta à frente.
— Caçar? Bem, a floresta está bastante calma nos últimos dias, depende muito do que você quer.
Um pensamento bateu forte no cérebro de Tsezar, ele sabia muito bem quem havia espantado os animais da floresta.
— Algo grande, grande o suficiente para abastecer uma família por uma refeição.
— Isso reduz suas opções, mas os animais aqui são violentos demais para serem caçados sozinh…
Antes que ele terminasse sua frase, o loiro estendeu sua mão ao ombro dele, o aperto era forte, quase rasgando a roupa do homem.
— Eu sei me cuidar.
A feição que o loiro expressava, era um misto de horror com frieza, conseguindo assustar o guarda até a alma.
— Certo… tem uma caverna próxima a uma clareira naquela direção — disse apontando para fora da vila — costuma aparecer javalis de grandes presas por lá.
— Maravilha!
Já pronto para sair, Tsezar já marchava para fora dali, antes disso, o guarda o parou e perguntou: — Você vai lutar de mãos nuas?
— Sim, por que?
— Espere um pouco.
A alguns passos dali, o segundo guarda dormia apoiado em sua foice, semelhante ao seu colega. Seu sono foi interrompido quando sua arma foi ao chão após uma rasteira.
— Acorda vagabundo! Me dá sua foice.
— Ei! Você também estava dormindo e pra que você quer a minha foice.
Antes que o dorminhoco pudesse reclamar mais, seu colega já punha suas mãos sobre a foice dele. Uma briga de força deu-se início quando cada um puxava para si.
— Tem alguém que precisa dessa arma mais que você!
— E quem disse que eu me importo!
Aquela briga infantil continuou por curtos minutos até que eles percebessem que eles estavam sozinhos. Não havia ninguém ali além deles dois.
Longe dali, Tsezar já caminhava tranquilamente até o lugar desejado. O clima fresco já ia sendo substituído pelo calor abafado do interior de uma densa floresta.
O caminho foi calmo, aquele fenômeno de solidão que a floresta proporcionava se mantinha vivo e forte. Não havia cantarolar dos pássaros, nem farfalhar dos arbustos, nada que indicasse vida.
Aquela nostalgica solidão não incomodava mais o loiro, era estranhamente reconfortante.
A curtos passos, a dita cuja caverna se aproximava cada vez mais. A paisagem de árvores com topos cheios de folhas foi substituída aos poucos por arbustos baixos e um chão batido.
No solo, era visível as marcas de cascos no chão macio; ao bater os olhos naquilo, o loiro já abriu o sorriso no rosto e apressou seu caminhar.
Assim como foi dito, após a clareira estava um pequeno monte com uma grande abertura ao centro; aos pés da caverna estava resto de feno velho e esterco.
— He, he, achei.
Quando o rapaz estava próximo, um estalo de galho quebrando soou não muito longe, junto a isso, o chão começou a remexer e tremer bruscamente.
Um piscar de olhos, um simples piscar de olhos foi necessário para que dois javalis enormes surgissem na visão periférica do loiro.
Eles eram quase idênticos, suas longas presas ultrapassavam a altura da cabeça, seus cascos negros pisotevam o chão com força para quebrar rochas maciças, seu pelo rubro se destacava em meio a mata.
Nesses curtos segundos apenas deu tempo de Tsezar saltar para trás no desespero, desviando com sucesso, mas mal conseguindo pousar e se manter de pé.
As feras não conseguiram frear a tempo de colidirem com uma grande árvore que tinha um pouco longe. O choque reverberou pela região, o segundo estrondo se deu quando o tronco se desprendeu da terra e caiu para trás.
Um dos suínos se recuperou rápido e partiu para outro ataque. Seus poderosos músculos faziam aquela massa enorme correr a velocidades absurdas para um animal daquele tamanho.
A cada pisada, mais e mais a morte certa se aproximava do rapaz, para evitar isso, um poderoso salto para frente foi dado por ele, o colocando muito próximo da abertura da caverna.
Em busca de abrigo, ele adentrou o local escuro e abrangente. Dentro, era visível a discrepância entre o lado de fora e o interior daquela gruta; ela era úmida e fresca, não muito quente, não muito fria.
Aquele grande suíno de antes voltou seus olhos a Tsezar que se entrincheirava entre os pedregulhos; sem se mexer e sem avançar, apenas analisava o soldado.
“Parece que ele não quer quebrar sua linda moradi…”, os pensamentos do rapaz foram prontamente cortados por múltiplos choros baixos.
Ao olhar para trás, uma dúzia de filhotes de javali deram boas vindas ao rapaz com suas lamentações. Eles estavam aconchegados em uma pilha de grama seca e palha ressecada, um verdadeiro ninho.
— Isso explica tudo.
Antes mesmo de qualquer iniciativa por parte do oficial, Pricyla tomou a frente e fechou a passagem com um grande “×”, impedindo qualquer um de chegar perto dos filhotes.
— Como assim “não matar os filhotes”? Eu não pretendia fazer isso, ainda.
Com um olhar profundo, a serpente encarou os olhos castanhos do rapaz, transmitindo suas vontades diretamente na mente de seu amo.
— Você e seu moralismo… até a mãe deles eu tenho que deixar?
Com seu peso, ela descia e subia sua “cabeça” lentamente, concordando com tal afirmação. Tsezar relaxou os braços e fechou a cara em decepção.
— Ótimo! Isso deixa a tarefa vinte vezes mais difícil.
Um forte puxão foi dado pelo rapaz para tirar a corrente de sua posição inicial, enrolando-a em torno de seu braço para completar.
Poucos passos da abertura, os dois javalis já haviam se levantado e encaravam o local de repouso dos filhotes. O loiro entrou no campo de visão deles quando finalmente saiu da caverna.
Encubidos de uma estranha paciência, os suinos aguardaram que o oficial já estivesse relativamente distante para voltarem a atacar.
A brisa fria soprava calmamente, as folhas caiam com parcimônia. Os 3 se entreolharam incontáveis vezes nesses curtos segundos, analisando-se de corpo inteiro.
Aquela calmaria antes da tempestade durou pouco, o chão rapidamente voltou a tremer, chacoalhando os pedregulhos e as árvores distantes.
A luta recomeçou. O primeiro javali raspou o casco no solo antes de disparar a toda velocidade enquanto o segundo aguardava pela chance de atacar.
Já preparado, Tsezar contraiu suas pernas e com força saltou sobre a fera, sua maestria se demonstrava nesses momentos.
“Vou ter que dar um jeito de descobrir quem é o macho e quem é a fêmea nesses dois. Por que eles são tão parecidos!?”
Não durou muito para que ele pousasse; a dor de colidir os pés com o chão duro não chamou tanta atenção quanto o outro javali vindo a toda velocidade.
Seguindo as leis básicas de uma tauromaquia, o loiro deu uma curta cambalhota para trás. Não foi necessário se estender no ar já que a fera transpassou mais rápido do que o tempo que ele ficou pairando.
Ao cair não muito longe de seu primeiro pouso, Tsezar engatilhou seu braço direito, o estendendo para trás junto de sua fiel escudeira.
Em simultâneo, outra disparada vinha em direção ao rapaz. Um momento de precisão surgiu naquele curto instante, caso Tsezar não acertasse no momento certo, uma série de ossos quebrados ou a morte certa o aguardava.
“Dez passos…”
Cada vez mais o chão tremia sobre seus pés.
“Sete passos…”
Enquanto corria, o javali bufava o ar com força, capaz de soprar uma pilha de papéis para longe.
“Quatro passos…”
A ansiedade armazenada no interior de Tsezar vinha à tona em forma de um suor frio que cobria ele dos pés à cabeça.
“Dois passos…”
A poeira e restos de pedras quebradas já voavam sobre o rosto do rapaz.
— He, he.
Próximo o suficiente para ver claramente as marcas e cicatrizes nas presas do animal, Tsezar decidiu se salvar.
Ao jogar seu braço com toda força para frente, as correntes presas nele foram extirpadas em forma de uma grande espiral em direção ao animal.
O impacto obviamente aconteceu, porém a força da disparada foi redistribuída entre o conjunto total da corrente. Dado o formato em espiral, ela se enrolou em torno de todo o animal, trancando-se na ponta de trás dele.
Completando, Tsezar usou parte da força do impacto contra a fera, de maneira que a derrubasse para o lado, conforme ela ia se arrastando pelo chão.
Para evitar que a fera tentasse se levantar, Pricyla se prendeu ao chão, enrolando o javali como um porco para ceia.
— Fêmea, essa é certamente a fêmea — disse o rapaz conferindo a parte inferior do animal.