O Belo e a Medonha - Capítulo 11
A escuridão da meia noite, era sobreposta timidamente pelas luzes dos postes, que em conjunto com o chão ladrilhado e os prédios, estampavam um estilo rústico e aconchegante ao local.
Mesmo assim, a calmaria do final do dia era cortada por uma pequena figura que corria entre os tetos das casas e lojas. As telhas carmesim às vezes não resistiam ao peso e vinham a quebrar com os passos.
Vindo atrás, havia mais homens, com grossos uniformes vermelhos, com lã cobrindo as bordas da vestimenta.
— Ei! Parado aí!
A cada grito que eles insistiam em exprimir, mais rápido o vulto tentava correr, porém já era visível que seus passos estavam mais inconstantes dado o cansaço.
Aos poucos um dos guardas chegavam cada vez mais perto; uma aura amarelada tomou conta do corpo do perseguidor anteriormente citado. O encapuzado virou seu olhar por míseros segundos antes de um raio amarelo como mel surgir por detrás dele.
— Peguei você! Seu pestinha! — disse o guarda envolto por aquele domo amarelado.
Antes de fazer algo produtivo, o oficial sentiu suas mãos leves, ele segurava a capa do encapuzado com ninguém dentro. Ao olhar para baixo ele viu a pessoa que ele perseguia cair de cima do prédio.
Era um garoto loiro, com roupas chamativas como as de um bobo da corte. Em seu rosto, a feição de deboche — a língua para fora e os olhos esbugalhados — direcionada ao guarda que o perseguia.
Os míseros segundos necessários para que os guardas focassem sua atenção no menino despencando foram o suficiente para ele pousar no chão e desaparecer entre os becos e vielas.
— 02, vai pela esquerda que eu vou pela direita! — gritou o guarda mais a frente.
Encostado à parede de um beco sujo e úmido, aquele menino escutou os gritos de seus perseguidores com o coração pulando do peito e a respiração o mais baixo possível.
O som dos passos se distanciando era a confirmação que ele havia despistado aqueles oficiais rubros. Uma sensação de alívio absorveu o pequeno caído ao chão, ele finalmente relaxou seu peito.
— Finalmente…
Agora mais calmo, o menino loiro analisou sua situação: sua roupa estava semelhante a trapos, as grandes bolhas negras que estampavam o tecido vermelho estavam caindo aos poucos, suas mãos e pés estavam cheios de marcas e cicatrizes recém fechadas.
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— Calma, calma, esse garoto é você? Você já morou em Muscoyv? — disse Dawid, cortando a história.
Ambos estavam sentados em restos de troncos de árvore, bancos improvisados. Os dois sentavam um à frente do outro.
— Precisamente, meu jovem. Eu nasci no Império Soyvit, por isso meu nome é Tsezar, significa, Grande líder ou Descendente de um grande líder na língua local.
Antes da história voltar, Dawid ficou em silêncio por poucos segundos, pensativo sobre os acontecimentos até então.
— Por que você colocou tanta ênfase na roupa?
— Se você fosse mais esperto, já teria entendido. Eu era membro de um circo itinerante na época, você realmente achou normal um garoto tão novo cair de um prédio e sair inteiro?
Com um grande sorriso no rosto, sem titubear, o ruivo respondeu: — Eu faço isso tranquilamente.
— Você é o estranho.
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Mesmo em uma cidade tão grande, em toda rua que Tsezar ousa-se colocar sua cabeça, timidamente para olhar, estavam no mínimo dois guardas.
— Esses caras não tem nada pra fazer?
Sem sua capa, era difícil não se destacar com uma roupa tão chamativa. A maneira que ele se rebaixou a usar, era passar pelos lugares mais remotos possíveis, fossem corredores entre prédios ou quintais abandonados. Mesmo assim.
— Achei! — gritou um guarda.
Aquele guarda segurava uma grossa corrente em suas mãos, que encoleirava um animal semelhante a um cachorro cheio de pelo ou um bebê urso. De prontidão, ele apontou seu dedo para Tsezar e soltou o animal, que se pôs a correr.
A fera era rápida, mesmo o loiro correndo o máximo que conseguia, não demorou muito para ela alcançá-lo, o loiro não teve tempo de reagir ou evitar.
Aquele cão de caça abocanhou a coxa esquerda do rapaz. Seus caninos eram potentes, eles perfuravam a carne e dificilmente soltaria.
O loiro não podia gritar, já que isso chamaria mais guardas, porém em seu interior, um poderoso grito de dor ressoou. O sangue saiu quase que imediatamente, a mordida do urso-cão apenas se apertava e rasgava a carne da panturrilha.
Antes que a ferida ficasse ainda maior, aquela miniatura de urso foi jogada longe por um soco que o atingiu fortemente no rosto. O choro do animal reverberou alto pelas paredes de pedra, chamando a atenção de guardas nas proximidades.
Três oficiais surgiram de direções diferentes, todos eles empunhando lampiões com chamas de diversas cores. Um deles rapidamente foi socorrer o pequeno animal que chorava baixo, encolhido e encostado à parede.
— Aonde ele foi!?
— Acalme-se 08, ele não deve ter ido muito longe.
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— Você abateu um urso-cão com um soco!?
A surpresa era visível na fala do ruivo, ele finalmente começou a se impressionar com a história do oficial.
Confiante e com um pouco de exibicionismo, Tsezar falou: — Se você souber aonde acertar, consegue abater até um grifo com um soco.
— Como ficou sua perna depois disso?
— Ah, eu ainda tenho a cicatriz se quiser ver.
Com um simples balançar de cabeça, Tsezar já se pôs de pé e levantou a barra da calça. Por debaixo do uniforme era possível ver a enorme cicatriz, ela cobria a panturrilha esquerda inteira.
— Nossa…
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Debaixo dos pés daqueles oficiais, abaixo do bueiro que estupidamente eles ignoraram, Tsezar descia as escadas entupidas de lodo e sujeira para dar-se de cara com um esgoto ainda mais sujo.
Ao olhar para sua panturrilha em carne viva, disse com extrema dor: — Cachorro de merda…
Arrancar a manga larga de sua roupa e enrolar o pano sujo na ferida que pulsava incansavelmente foi o mais próximo de um tratamento médico possível naquelas situações.
Caminhar se tornou um verdadeiro desafio, para sua sorte, na correnteza daquele esgoto, boiava uma estaca de madeira em um estado aceitável, poderia ser uma placa velha ou restos de alguma construção.
Com sua “muleta” em mãos, Tsezar tentou analisar a situação em que estava:
— Esse esgoto…, ele está na zona sul de Muscoyv, se eu ir pela esquerda… deve dar no rio Vog, eu acho…
As constantes pausas na sua fala eram dadas as dores que se espalharam por todo seu corpo; seus nervos mandavam sinais constantes ao seu cérebro, porém nas profundezas da sua alma, uma chama quente impedia ele de cair ou fraquejar.
O caminho foi longo, ao seu lado corpos de ratos e outros roedores faziam companhia; acima de sua cabeça era possível ouvir os gritos dos guardas e as fortes pisadas de algo que ele não queria saber o que era.
Não dava pra saber o que mais doía naquela situação: a dor da ferida, o cheiro fétido, o pano sujo que irritava sua pele, as carcaças pela metade que apareciam no canto de seu olho ou o risco de uma inundação o matar.
Tudo tendia a um único destino: ele não iria conseguir, porém uma luz no fim do túnel surgiu, uma literal luz no fim do túnel. No fim daquele corredor da morte, a luz da manhã anunciava a chegada do leão dourado.
Como esperado, aquele esgoto tinha sua vazão no rio Vog, um pequeno riacho que cortava os bairros mais distantes da capital, Muscoyv.
Não muito longe daquele córrego, um casebre bastante humilde se destacava, pois estava distante das outras moradas da região. Na frente, uma carroça entupida de frutas e verduras recém colhidas e um senhor de idade eram a atração do lugar.
Aquela visão, aquela doce visão quase levaram Tsezar aos prantos, mas sua determinação não podia ser contida.
Já próxima do senhor, ele perguntou: — Você é o senhor Klaus? Dizem que você leva quem pagar para próximo da fronteira…
Aquele senhor demorou mais do que o normal para se virar, em seu rosto uma feição carrancuda escancarava o seu humor.
— Sim e não, você tem o que para me dar?
Com a cabeça abaixada, o loiro começou a se remoer, ele não tinha nada além das roupas do corpo, será que toda essa viagem seria em vão? Ele já nem tinha forças para se manter de pé direito, imagine barganhar.
Até que para sua surpresa, um jovem de estatura média e vestindo o mesmo que o velho Klaus, surgiu de dentro do casebre com uma caixa de frutas em mãos.
— Pronto, peguei todas de lá dentro… — O rapaz cortou a própria fala quando viu Tsezar ali na frente — Quem é esse?
— Não faço a menor ideia, apenas alguém que quer algo e não tem como pagar.
Aquele jovem analisou o menino à sua frente por poucos segundos, segundos esses que gelaram a espinha do loiro. Ao colocar a caixa de frutas no chão, aquele jovem deu alguns passos até chegar no pobre garoto.
De joelhos, ele perguntou: — Você é o filho daquele mestre de cerimônias, certo?
— Sim…
Um ar pesado se espalhava pelo ambiente, Tsezar mantinha sua expressão triste, principalmente após o último comentário.
— Me acompanhe — disse o jovem puxando o menino.
Acompanhado do garoto de poucas características destacáveis, Tsezar seguiu pelo lado de fora do casebre até a porta de um porão que ficava no chão.
Dentro, havia um lampião próximo a entrada, mesmo lampião que o auxiliar de Klaus agarrou para iluminar o caminho a frente.
— Entre, lá dentro direi o que faremos.
Seguido por um lance de escadas, estava uma sala abafada e úmida, não havia janelas e muito menos uma saída de ar. Ao atravessar por outra porta, os dois deram de cara com três meninos, que sentados no chão apoiavam-se nas paredes desgastadas.
— Cedo pela manhã partiremos até a fronteira, seguiremos pelos três postos fronteiriços, lá vocês desceram e seguiram caminho.
— Obrigado…
— Não se preocupe, farei o máximo para vocês chegarem vivos até o outro lado.
Após suas últimas palavras, a porta foi fechada e trancada pelo lado de fora.
Os garotos que lá estavam não tinham caras muito amigáveis, todos olhavam cabisbaixo o chão sujo abaixo deles.
Tsezar não teve coragem de dizer algo, ele imitou os residentes e se sentou em um canto do quarto. Um sono profundo o tomou dado o cansaço do dia anterior.
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— Quem era esse Klaus? Como você o conhecia?
Dawid ficava calado por boa parte da história, mas em momentos bastante específicos ele insistia em parar para perguntar.
— Havia rumores que alguns comerciantes mais periféricos aceitavam levar qualquer um para fora do império por pouco, Klaus era famoso no mercado negro por causa disso.
— Entendi porque ele parece tão desprezível… E o garoto? Por que ele te ajudou?
— Mais tarde naquele dia, eu descobri que ele era órfão e havia conhecido meu pai, acho que por isso ele me ajudou — antes de continuar, uma feição triste tomou o rosto do oficial, até ele voltar a falar —, infelizmente nunca perguntei o nome dele, me arrependo disso até hoje.
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Ele só foi acordado com o grito de dois dos três meninos lá:
— Já falamos para você não fumar aqui dentro!
O primeiro a gritar era um garoto de pele morena e cabelo castanho, suas vestes brancas semelhantes a um longo vestido era característico das terras do sul.
— É seu drogado! Já nem circula muito ar por aqui!
O segundo, era um rapaz loiro, de pele clara como neve, suas roupas eram de couro de animais, característico das terras do norte.
— Cala a boca vocês dois! Não vamos sobreviver de qualquer jeito!
O terceiro, o fumante, era um garoto mais crescido, provavel que estava entre seus 14 a 15 anos. Seus cachos negros e seu colete tambem negro o caracterizavam como um tipico pastoreiro do imperio.
— Então fica aqui e morre sozinho, porque nós queremos sair daqui vivos! — gritou o moreno.
Seguido daquele grito, o fumante jogou o resto de seu fumo nas vestes largas do moreno. Não chegou a se alastrar, mas uma pequena chama queimou a borda daquele manto.
O dono daquelas vestes tentou ao máximo apagar as poucas chamas, sua tentativa criou uma larga gargalhada no garoto de colete.
— Não se preocupem, maricas, tem um buraco naquela porta, vocês não vão morrer.
Concluindo sua frase, ele puxou do bolso do colete um fumo pré‐pronto, colocou na boca e se levantou. Havia no canto superior uma lamparina que ele usou para abastecer seu vício.
Uma forte tragada antecedeu uma cortina de fumaça liberada pelo fumante, aquele cortina cinzenta se dispersou no ar e deixou pra trás um cheiro horrível.
— Por que você fuma? Você não sabe que isso vai te matar? — perguntou inocentemente Tsezar.
— Você não escutou? Não vamos sobreviver, então melhor curtir.
Ouvir aquilo não entristeceu ninguém, mas deixou o clima pesado. A realidade era dura com todos no recinto, todos tinham suas histórias e motivos para fugir de um destino cruel.