O Belo e a Medonha - Capítulo 1
O raiar do sol do meio-dia queimava sobre os ombros dele, o uniforme pesado e a manta cor de couro apenas agregava mais à tormenta.
A paisagem era solitária — nada chamava exatamente atenção —; árvores grossas e topos amontoados de folhas, um céu azul vazio de nuvens e pequenos montes ao distante olhar.
O grande destaque é uma placa apontando para um estreito caminho que se diz ser uma estrada; dificilmente algo maior que um humano passa por ali.
No centro de tudo há apenas um homem, alto, ombros largos e um corte curto, dourado como o sol.
Por debaixo da manta, era possível ver um uniforme branco de botões, suspensórios grossos e um pequeno símbolo de um corvo em seu peito.
— Abandonado, no meio do nada… — ele resmungou — Se destaque, eles disseram! Seja prestativo, eles disseram! Olha onde você foi parar!
Conversar sozinho podia parecer esquisito a maioria, porém para um cavaleiro que suas missões são em sua totalidade sozinhas, é terapêutico, ajuda a não enlouquecer.
A monotonia é logo cortada por um pequeno brilho azul claro vindo do bolso do uniforme. Ao perceber, o homem rapidamente retira do bolso um pergaminho com um grande selo vermelho. O símbolo de um grande corvo se destacava no papel amarelado, era um documento oficial.
Ao abrir o pergaminho as palavras surgiam diante dos olhos dele, a cada letra a ansiedade do homem aumentava.
“Atualização da missão
Direcionada ao cadete Tsezar;
Pelas previsões oficiais a sua localização atual é a frente da estrada GE-Ômega, uma estrada não oficial e não reconhecida pela república, graças ao estado da mesma é lhe dado 3 dias adicionais, totalizando 5 dias para sua chegada ao local da missão.
O resto das informações serão cedidas em 5 dias, após sua chegada ao local.
Salve a república!”
Ao lado, um pequeno mapa mostrando o caminho a ser percorrido e informações decorrentes do terreno.
— Ótimo! Até o comitê assumiu a podridão dessa “estrada” — praguejou com fúria.
Ao fim de seus resmungos, Tsezar se pôs em posição de corrida, 5 dias de viagem não se fariam sozinhos.
WOOSH!
Um estrondo, em simultâneo o rapaz se pôs a correr, a força decorrente do disparo foi suficiente para estraçalhar a terra maciça aos pés dele.
Todos os animais e criaturas próximas simplesmente correram de medo; sua velocidade era impensável para seres humanos normais, mas para cavaleiros é relativamente normal.
Uma cortina de poeira e detritos se formou atrás enquanto ele corria, naquela estrada não era recomendado esse tipo de tráfego, mas ele não ligava; 5 dias podia ser muito ou pouco dependendo do quão rápido ele corre-se e com certeza “pouco” era a pior escolha.
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E assim se foi meio dia de corrida, o sol já se punha a deitar no horizonte, o oficial havia montado um acampamento improvisado ao lado da “estrada”.
Ele havia colocado um longo saco de dormir e acendeu uma fogueira.
Aquele dia havia sido cansativo, tudo que ele mais queria agora era descansar, mas as necessidades do corpo iriam cobrar.
ROOAR
O estômago dele reivindicava comida urgente, ele havia passado o dia sem comer nada.
“A comida acabou ontem, e eu não encontrei nenhum animal no caminho, acho que hoje vou ficar de estômago vazio, ahhhh eu to com tanta fome” pensou Tsezar.
Sentado em cima de seu saco de dormir, o loiro refletia de olhos fechados sobre sua situação enquanto escutava a melodia da floresta.
“Dormir agora seria uma boa, talvez algum animal tente me atacar a noite e eu coma el…”
Os pensamentos dele foram logo cortados por um barulho que se diferenciava da melodia que ele tanto ouvia.
— Que sorte a minha, é raro ver alguém da sua laia por essas bandas — uma voz rouca e grossa ressoou atrás do cadete.
Seu corpo logo entrou em alerta quando sentiu um toque frio ao lado de seu pescoço, era uma lâmina.
— Nem pense em reagir, rato, se não teremos sangue de ratazana voando pra todo lado — falou a voz rouca.
A lâmina cada vez mais era empurrada no pescoço dele, porém o sangue se recusava a sair.
— Só segura o rato ai, irmãozão — uma voz mais fina e grave dizia logo a frente do loiro.
A segunda presença não estava no campo de visão do loiro, ele estava afastado da fogueira. Aos poucos ia se aproximando até se tornar visível. Um homem alto, esguio e magro, suas roupas eram esfarrapadas, digno de um bandido da pior categoria. Na cintura era possível ver uma bainha e o punhal de uma faca, nas costas ele carregava uma bolsa de corda relativamente cheia.
— Sabemos que vocês ratos da capital sempre carregam suas coisas chiques, apenas nos diga onde está e deixaremos você sair inteiro — disse a voz grossa.
— Por favor leve tudo, mas me deixe vivo! — disse Tsezar tomado pelo “terror”.
Uma gargalhada pode ser ouvida em uníssono, ambos irmãos riram alto do oficial.
— Mas poderiam me dar um último desejo? — expressou o cadete como um cachorro manhoso.
A primeira figura finalmente se fez presente, aparecendo no campo de visão do cadete, o olhando nos olhos, enquanto mantinha a lâmina no pescoço dele.
Um homem rechonchudo, barbudo e baixo, sua roupa era esfarrapada assim como seu dito cujo irmão.
— Sua vida está por um fio e mesmo assim se atreve a pedir algo? Tinha que ser um rato mesmo — o homem acima do peso falou.
— Só escute logo irmãozão — o homem esguio vociferou enquanto vasculhava o acampamento.
— Certo… diga logo, rato, estou sem paciência hoje!
— Vocês nobres homens poderiam dar um prato de comida a esse pobre homem? — Tsezar expressou de maneira chorosa, obviamente atuando.
— Mesmo que tenhamos não vam… — Antes que o rude homem pensa-se em titubear ou reclamar ele é cortado.
Diante de seus olhos gordos, o cavaleiro simplesmente desapareceu deixando apenas uma fraca brisa. O homem esguio sentiu suas costas leves antes de perceber que sua bolsa não estava mais lá.
— O QUE!? ONDE AQUELE RATO FOI!? — o homem rechonchudo gritou.
— Vocês só tem feijão verde? Odeio feijão verde — disse parando logo à frente dos irmãos enquanto vasculhava a bolsa.
Os dois homens nem pestanejaram e logo tentaram atacar o loiro. O mais magro arrancou a faca da bainha e tentou acertar um golpe direto. Mais uma vez tudo que ele conseguiu acertar foi o ar, o cadete prontamente desapareceu diante dos olhos dos bandidos, de novo.
Ele reapareceu, agora encostado em uma árvore ao lado do acampamento.
— Nunca julgue um homem faminto, é o que eu sempre digo — exclamou enquanto abria uma lata de feijão verde com uma colher na mão.
Os dois bandidos estavam perplexos com toda aquela situação, todos os cavaleiros da capital seriam rápidos assim? Seria isso magia ou algo do gênero? O homem magro tremia e pensava seriamente em fugir, mas seu irmão se mantinha firme.
— AAHHH — gritou o homem rechonchudo
Uma, duas, três, quatro vezes, quanto mais ele se esforçava em acertar, mais o cavaleiro desaparecia e reaparecia. Ele se mantinha apático enquanto devorava a lata de feijão com uma colher de madeira.
O homem magro olhava perplexo o esforço fútil de seu irmão em acertar Tsezar, ele suava frio e tremia.
“Algo daquele tipo era impossível certo?”, pensou e repensou o magro.
— Mas…como…!? — o homem gordo, agora ofegante, se perguntou quase caindo ao chão de cansaço.
O cadete parou na frente do fatigado homem com uma lata vazia de feijão. Em seguida ele amassou-a com facilidade, transformando-a em uma placa lisa na palma de sua mão; ele a deixou cair no chão.
— Certo agora que estou de estômago cheio, hora de cuidar de vocês dois — falou apontando a colher de madeira para os dois.
Novamente ele desapareceu, mas agora ele não voltou logo em seguida, os dois homens temiam por antecipação.
O homem rechonchudo tirou forças de onde não tinha e se manteve em pé, talvez o medo o motiva-se.
Quanto mais eles se entre olhavam mais sofriam, segundos se tornaram minutos, que se tornaram horas. Eles correram e encostaram as costas uma na outra, empunhando suas lâminas; talvez fosse só instinto de defesa ou medo da morte.
O cadete reapareceu dessa vez atrás dos dois, dizendo perto de suas orelhas para que eles escutassem bem.
— Eu vou dar 5 segundos pra vocês correrem antes que eu faça com vocês o mesmo que eu fiz com aquela lata — disse sério sem atuação dessa vez.
Os dois homens correram como se suas vidas dependessem disso — talvez dependesse mesmo — e desapareceram em meio a densa floresta.
— E obrigado pela comida!
O restante da noite foi calma, o alimentado Tsezar logo se pôs a dormir, não totalmente é claro — a floresta podia surpreender a qualquer momento — mas o suficiente para descansar seu fatigado corpo.
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O segundo dia decorreu sem grandes infortúnios, o sol nasceu e patinou pelo céu, sozinho no grande mar vazio de nuvens.
O oficial correu pela estrada fazendo pequenas paradas para descansar; ele não comeu nada pelo caminho.
Estava ficando enlouquecedor aquela floresta tão grossa e massiva sem uma única criatura, por algum tempo Tsezar sentiu falta daqueles dois bandidos.
O sol se pôs e a escuridão da noite se fez, dessa vez o loiro nem acendeu a fogueira, ele dormiu junto ao entardecer do sol.
“Esse lugar só pode ser amaldiçoado! Não me surpreende ter uma missão logo aqui. Mesmo assim, nenhuma criatura viva! Nada de nada, eu sou tão assustador assim? Deve ser”, reclamou mentalmente.
A escuridão cessou e mais uma vez o leão iniciou sua patinação, e junto dele o oficial levantou. Trilhou o caminho com o estômago o atormentando, horas se passaram e nada comestível aparecia na visão dele.
Ele estava realmente cogitando comer a grama que beirava a estrada, até que um farfalhar ao lado chamou a atenção.
O cadete parou e prontamente pôs sua atenção, ele não se importava com o quê fosse; se mover significava comida em sua fatigada mente.
Um pulo, um bote, uma grande besta salta em cima dele, um cervo com grandes presas prontas para devorar a carne nobre.
Desviando com certa dificuldade, o oficial deu poucos passos para trás, sem ferimentos. Ao desviar do ataque, o cavaleiro se pôs em posição de combate e encarou a criatura dos pés a cabeça, o cervo fez o mesmo.
“Um cervo de sangue!? Não imaginava encontrar uma fera tão magnífica nesse fim de mundo”
A criatura encarava o loiro com suas grandes pupilas avermelhadas, sua grande mandíbula se abriam e fechavam conforme ela rosnava.
Ao perceber a besta que o encarava, um sorriso de orelha a orelha surgiu no rosto de Tsezar, talvez fosse a fome, a surpresa ou um misto de tudo isso, mas aquilo só podia ser um presente dos deuses, era como ver um pote de ouro ambulante.
Nesse ponto eram duas bestas encarando suas presas, ambos sabiam que a vida de um deles acabaria naquela tarde.
O primeiro a tomar a iniciativa foi o cervo, ele se pôs em disparada, colocando sua grande mandíbula aberta pronta para o bote. Em resposta, o cadete abriu os braços e dobrou as pernas como se ele fosse abraçar o animal.
Antes que a fera pudesse acertá-lo, o oficial pôs seu pé esquerdo à frente e deslizou o direito, evitando o bote. Com a besta a sua frente, ele enroscou seus braços no pescoço dela.
Com a besta nos braços, o cadete segurou o quadrúpede pelo pescoço encaixando um “mata-leão” na criatura.
Nesse momento uma disputa de força se iniciou, o cervo lutava por sua vida; debatendo suas 4 pernas.
O oficial colocou uma força bestial em seus braços, suas veias saltavam para fora e suas mãos embranqueciam dada a força; aos poucos a vida da criatura se esvaia, porém o aperto se mantinha firme.
Quando a fera parou de se debater, a língua dela já estava pra fora, Tsezar afrouxou o golpe e soltou a criatura no chão, agora morta.
— Desculpa carinha, era você ou eu — disse ofegante.
Após a luta, ele fez o ritual básico, acender a fogueira e colocar a carcaça em uma estaca.
Infelizmente ele não tinha uma lâmina, ele precisava arrancar a carne com a mão, não que ele estivesse ligando, a fome falava mais alto.
O faminto saboreou cada centímetro daquele conjunto, coxas, costelas e principalmente o pescoço, por ser musculoso possuía pouca gordura e essa era a parte preferida do faminto cavaleiro.
Após a refeição a lua já reinava no céu, o loiro deixou as partes menos apetitosas da carcaça, como cabeça, cascos e órgãos para as criaturas locais — mesmo que ele não soubesse quais — e então mais uma vez ele repousou, desta vez com estômago cheio.
O próximo dia veio e esse dia marcaria a vida de Tsezar pra sempre.