Lumen Saga - Capítulo 19
— Para onde quer que eu vá? — indagou Liam, incrédulo com as palavras de Kaiser.
— Império Xin — retrucou Kaiser, sentado em sua poltrona no escritório do imperador.
— Onde é isso?
O imperador se alongou e respirou profundamente. Olhando para seu agente pessoal, respondeu: — Um novo império criado pelos desertores de Mikoto. Eles enviaram uma carta de pedido de ajuda.
— Por que ajudaríamos? São desertores. O problema é de Mikoto.
Kaiser bateu a mão em um mapa na mesa, apontando para a fronteira entre os dois impérios inimigos.
— São cerca de três mil desertores. Eles ficam nos limites da fronteira, no forte de Zang Wei. Desertaram por motivos que não mencionaram, porém, querem nossa ajuda para expandir o território deles e atingir a independência de Mikoto. Em troca, nos fornecerão informações únicas do nosso rival. Quando a carta foi enviada, estavam em confronto contra o general…
— Aparenta ser uma armadilha.
— Sim. Por isso estou mandando você. Se for realmente uma armadilha, não deixe nem pó para trás. Só não morra.
— Acha que os demônios vão me matar?
— Tome cuidado, Liam. Existem os poderosos “Kishin no Kozui.” — Kaiser coçou a garganta. Os dois se encararam enquanto o imperador segurava a risada. Levando a mão até seu rosto, Liam soltou um riso abafado e Egon caiu em gargalhadas. — Mas, sério. Tome cuidado. Envie um tradutor com você. Nos vemos.
Liam assentiu com a cabeça e se retirou da sala. Do lado de fora, James o esperava sentado em uma janela. Os dois trocaram olhares antes de caminharem pelo corredor do castelo.
— O que ele disse…
— Apenas me siga. — Liam ordenou, sem ao menos dar chance para James.
Império Xin, 867 A.E.
76 horas de viagem depois.
O novo império domina apenas uma cordilheira pequena chamada de “Tiānshān” (Cordilheira Celestial). A única cidade do império é num vale no centro da cordilheira. Tal cidade foi nomeada “Guanwei,” em referência a um dos generais que auxiliou na conspiração.
Desde que chegou, há poucos minutos, Liam pôde notar várias carroças trazendo pessoas feridas e outras acorrentadas. Ele não pôde deixar de notar o que diferencia tanto as duas raças, mesmo sendo humanas: os olhos estreitos e tão pequenos, destacando também pela pele com um tom mais amarelado.
Liam tentou entender. Se são da mesma raça, compartilham da mesma história, por que estão separados? Apenas pela cor e pelas feições? Sendo sincero, ele nunca se importou com o exterior, apenas com o interior. Por isso, para ele, pessoas que pelo menos fingem não se importarem com os sentimentos são as melhores. Pelo menos até aquele dia, essa era a mentalidade dele.
Repentinamente, o general sene um puxão em sua calça preta. Liam vira seu rosto para baixo, curioso, mas sem demonstrar alguma surpresa. Seus olhos se encontram com os de uma criança frágil. Antes que o general pudesse reagir, uma mulher coberta por trapos pega a garota e se distancia de Liam, claramente se desculpando por alguma coisa.
A boca de Liam se matem aberta, ele pensa em falar algo, mas não têm tempo. Dois soldados surgem e lhe convida até o distrito.
Ao chegarem no pequeno distrito, Liam e James foram apresentados ao general Li Minghua. Um homem alto e robusto, coberto por um hanfu. Seus cabelos são compridos e brancos, os olhos são fechados devido à cegueira do general.
Sem muita enrolação, Li Minghua explica a atual situação para Liam.
O império Mikoto, com medo de que os habitantes do império Xin vazem informações específicas sobre eles, está desesperadamente, há duas semanas, tentando dizimar um único distrito. Enquanto o império Xin, não só está conseguindo lidar com os ataques, como também resgatando os prisioneiros escravos de Mikoto.
Afinal, o império Xin nada mais é do que o povo de Zhuang. Descendentes distantes do que acreditam ser o criador de todas as coisas. O povo de Mikoto e o povo de Zhuang sempre se trataram como inimigos, justamente por terem culturas diferentes e opostas. Mesmo assim, compartilhavam território de uma forma ilegal…
O povo de Zhuang é constantemente escravizado e tratado como inferior a todos os humanos pelo povo de Mikoto. Liam ligou isso aos homens e mulheres acorrentados mais cedo, onde deduziu que seriam escravos resgatados de Mikoto.
O próprio Li Minghua pediu auxílio a Egon, o maior inimigo de Mikoto, temendo que Mikoto usasse sua maior arma contra o império Xin: os Kishin no Kozui (Os colossos de Kishin). Demônios de tamanhos colossais e extremamente poderosos. Kishin foi o primeiro deles, por isso se tornou o rei todo-poderoso.
Com isso, em troca da ajuda de Liam e James, o povo de Zhuang iria falar tudo que Egon desejasse sobre Mikoto.
— General Liam — chamou. O tradutor, que Liam trouxe consigo, traduziu o que Li Minghua falou. — Posso dar-lhe um presente?
— Depende — respondeu Liam.
— Corrija-me se estiver errado, mas… Seu reino não possui armas divinas, correto? — indagou.
— Não. Temos apenas armas comuns fortificadas por feitiços…
— Entendo. Sendo assim… Deixe-me lhe entregar uma espada que seja divina. A pele dos Kishin no Kozui é mais dura que qualquer material.
— Consigo anular isso.
— Não, não consegue — retrucou. — Para matar um Kishin, você não deve partir aquilo que é físico, mas sim do que é metafísico. A única forma de matar um Kishin é matando a alma dele primeiro. Ou seja…
— Eu mato. Não há ninguém que escape das minhas leis
Li Minghua esperou o tradutor, e ainda tentou processar a arrogância de Liam.
— Ninguém está acima das leis divinas…
— Somente aquele que está acima da magia. Perdoe-me ir contra sua crença, mas até o céu está abaixo de mim. No entanto, sim. Aceito seu presente, honrosamente o seu presente.
— Venha comigo — chamou Li Minghua, suspirando para o general.
O entardecer ilumina o pico da maior montanha na cordilheira Tiānshān. Do gume, todo o distrito e o vale no qual se localiza estão cobertos por uma névoa densa. Uma escadaria rodeia a montanha junto de vários portões torii. No topo, estava um templo feito para o senhor criador de todas as coisas: Zhuang.
A estátua de Zhuang é apenas de uma mão segurando uma singularidade, tal que seria o próprio universo.
Li Minghua se ajoelhou frente a um altar de pedra. Sobre este mesmo altar, uma espada ainda com a bainha é banhada pela luz do sol. O general Li ora para o templo, pedindo bênçãos para a espada, enquanto Liam, batendo o pé no chão, pensa o quanto aquilo é irrelevante.
— Respire fundo, general. É uma boa saída para curar a ansiedade — disse Li Minghua.
— Eu sabia que tinha algo de estranho com você. Não estava deixando sequer o Leitzke traduzir minhas palavras — reclamou Liam. — Para que esse ritual todo?
— Estou pedindo auxílio a Zhuang, o criador de todas as coisas, para que ele purifique e abençoe a lâmina de sua espada.
— Se precisa pedir ajuda a algum deus, então vocês são mais decepcionantes do que esperei.
— Hm… Liam Mason. Não acredita no Deus de Egon?
— Não. Acredito que nenhum ser atinge os requisitos para ser considerado perfeito.
— E um criador deve ser considerado perfeito, necessariamente?
— Se tratam ele como o todo-poderoso, então sim.
— Então… O que é o inferno para você? — indagou Li, levantando-se do altar.
Liam mexeu a cabeça e usou um pouco da mente para formar algo entendível para seu conceito.
— A vida. Acredito que o que trilhamos durante a vida é o nosso inferno, já que é feito de dor e sofrimento. O céu? Seria o que vem após isso. Mesmo que eu ache aquele céu cheio de anjos e pessoas boas, um conto dito pelos velhos para que ainda haja esperança, creio que até o mundo em chamas dos mortos pode ser considerado um céu para os maléficos. Porém, um céu ideal seria um descanso eterno.
— Para onde acha que irá após à morte?
— Espero que para lugar algum — retrucou.
— Você será um homem difícil de mudar…
— Posso saber por que todo esse interesse em mudar minha visão?
— Ver uma pessoa igual a você, jovem e com o poder do mundo em suas mãos assim, me agonia. Morrer com angústia e ressentimento seria um peso… Uma última pergunta, qual o valor da vida para você? — indagou com um tom suave, mas, que, no fundo, possuía ódio.
— Nenhum. A vida não tem valor algum. É algo tão complexo quanto tudo, mas tão frágil quanto vidro. Não consigo dar significado a algo tão… temporário.
— Essa fragilidade que dá um significado a vida. Mas, entendo você, Liam Mason, um homem verdadeiramente forte. Contudo, recomendo refletir suas ações e medir suas palavras. — Li Minghua começou a caminhar até Liam, com a espada em suas mãos.
— Você não é nenhum deus. E, em algum momento, a cobrança chegará. E um homem como você, não deveria partir com um pensamento tão… fictício.
— Aham.
Liam recebe a espada. Ele a puxa para fora da bainha, apenas para poder ver como será o estilo de combate. Era uma espada tradicional do povo de Zhuang: com a lâmina reta e de fio único, chegando a quase o tamanho de uma catana. Sua bainha é preta com detalhes dourados, que se estendem por toda a bainha e formam um raio de luz. A empunhadura foi feita para ser utilizada com as duas mãos. Já o guarda-mão é em formato de V, sendo detalhado por um par de mãos de cada lado.
Desembainhando a espada, o general ergue-a ao céu. A luz do alvorecer reflete diretamente na lâmina, que encandeia brevemente os olhos de Liam.
— É a graça divina. Deveria sentir-se abençoado abaixo do céu.
— Não… — Liam retrucou, ainda olhando para a lâmina. — Sou amaldiçoado demais para ter essa honra…
— Deveria dar mais valor a si.
— Onde está o Kishin? Quero matá-lo logo — reclamou desconfortado.
— Paciência é uma virtude que deveria aprender também… Enfim, lá. — Li Minghua apontou para o leste. — Nossas proteções estão fracas. As muralhas devem ser derrubadas muito em breve. A única maneira de impedir isso é…
— Matando a grande maioria, aprisionando alguns. Uma guerra. Quanto tempo para chegar até lá?
— Minutos — retrucou Li Minghua.
— Então vamos.
— Antes disso… Tenho uma pergunta. Qual o sentimento que vem à sua mente quando está lutando? Sempre temos algum. Mas… O que o mais forte lutador sente em uma luta? Amor? Ansiedade? Insanidade?
— Não sei. Nunca parei para pensar nisso.
— Quando acabar essa noite, me dê uma resposta.
Os raios laranja do entardecer iluminaram um campo banhado de sangue e corpos sem vida. Uma região dizimada, consumida pelas chamas. Para as antigas crenças, podem chamar esta visão de “inferno”. No fim, sobrou apenas Liam e o que podem chamar falsa divindade.