Lumen Saga - Capítulo 18
O dia, não, talvez a noite seja tempestuosa. Visto que as nuvens nubladas não deixam passar sequer um raio de luz, não é possível definir se é dia ou noite. O oceano era agitado, com ondas ultrapassando os vinte metros como se fosse seu dia mais calmo. E, no meio daquele oceano turbulento, estava Theo, se afogando a todo instante.
Só bastava ao garoto colocar o braço para fora da água, que as ondas o puxavam novamente. Era um ciclo eterno. Não importava se ele conseguia encostar no chão ou não, as ondas sempre o puxavam para o fundo novamente.
Em certos momentos, Theo sentia pequenos animais marinhos nadando pelos seus pés. Tubarões e enguias entrelaçavam as pernas do garoto, o que o fez entrar em um desespero momentâneo.
Fazia duas horas que Theo estava preso neste ciclo. Mesmo desistindo e deixando-se afogar para despertar, ele apenas retornava à estaca zero. Em dado momento, ele apenas desistiu de resistir completamente e ficou à mercê da tempestade.
“2897… 2898… 2899… 2900,” contou Theo. Desde que desistiu de resistir, contou exatos 2910 segundos, e não parou.
Parecia que dias haviam se passado, no entanto, foram apenas algumas horas. Três desde que ele entrou no processo de autoconhecimento, para ser mais específico. Theo não sabia mais o que fazer, apenas deixou as ondas o afogarem, os animais lhe cercarem, e, se caso tivesse de acontecer, que ele morresse. Coisa que não acontecia.
Ele foi paciente, e por isso, as horas de tempestades logo se tornaram irrelevantes. As ondas, mesmo que ainda agitadas, agora pareciam calmas pelo simples motivo de Theo ter conseguido alcançar o chão sem precisar se afogar.
Theo tentou se firmar no chão, no entanto, a areia grossa e pegajosa do fundo do oceano transmitiu uma sensação tão nojenta que sua única reação foi soltar-se e tentar boiar novamente nas ondas da tempestade.
Até que, de repente, ao passar de doze horas, uma enorme onda de trinta metros trouxe consigo um brilho âmbar que iluminou todo aquele vasto plano. Foi o suficiente para acender uma chama no núcleo de Theo. Ele despertou alegre, pensando que finalmente o sol conseguiu dissipar a tempestade. Mas o brilho de esperança logo se transformou em uma chama ansiosa. Ignorando a sensação nojenta da areia, ele lutou para se manter de pé.
A água do que restou daquela onda despencou como uma cachoeira. As pupilas de Theo dilataram, seu coração acelerou. Memórias de um luar banhado em sangue revisitaram.
‘Morte.’
Mesmo com as ondas de vinte metros, aquela besta ainda se destacava na tempestade. Tinha cerca de cinquenta metros, agora estando com sua parte superior para fora do oceano, no entanto, ainda se estendia por dentro das águas por tantos metros que nem dava para contar.
Seu corpo era humanoide, as mãos substituídas por garras que se conectam em nadadeiras. O rosto se assimilava ao de um dragão. Dois chifres circulavam seu crânio e se conectavam na nuca: de sua testa, uma faísca luminosa emitia uma luz azul intensa. Tentáculos de lula desciam de seu rosto como se fossem os fios de um bigode.
E, com um bater de suas asas demoníacas, as ondas se abriram. O impacto pareceu ignorar Theo, visto que não precisou de esforço para se manter parado. Mesmo assim, sua intuição ordenou que ele colocasse os braços frente ao rosto.
A força atmosférica conseguiu cortar a pele e carne de Theo, junto da água salina tocando nos cortes, o garoto não teve outra reação senão relaxar os braços e tentar proteger as feridas.
No fim da ventania, foi formado um círculo de duzentos metros. A cauda do demônio serviu como uma muralha: era cauda de serpente, tão enorme que circulava todo o raio mencionado anteriormente.
— Um… — Theo gaguejou com um soluço. — um… — Suas pupilas dilataram, até embaçar a visão.
— Um demônio marinho — completou uma voz, madura e imponente. Familiar, aparentando ser a própria voz de Theo.
Por um segundo, a alma do garoto deslocou do corpo e dividiu-se pela metade: uma mancha dourada que se propagou pelo espaço e foi até uma silhueta humana abaixo do demônio, caminhando em direção a Theo.
Seu rosto, largo e bem definido, logo revelou um homem alto e loiro, de olhos azuis com uma roupa militar preta. Direcionando o braço direito para trás, ele soltou um peteleco no ar que dizimou o demônio. Partindo o monstro ao meio como um perfeito golpe de espada e esmagando a cabeça, o que sobrou para o cadáver foi cair no oceano que voltou a se agitar, já que agora não tinha mais nada para segurá-lo.
Mesmo com as águas retornando para se juntarem, o homem continuou caminhando até Theo, que nada pôde fazer além de permanecer parado enquanto era afogado pela própria surpresa. Como um homem poderia matar uma criatura abissal daquela com um único ataque? Mesmo visto de longe, é perceptível que nenhum feitiço foi feito.
O oceano se regenerou, criando um ciclone no centro e puxando tudo para si, inclusive Theo. Com um simples balançar de mãos daquele mesmo homem, o oceano inteiro se acalmou gradualmente. As ondas que antes beiravam os trinta metros, não passavam de ondas das correntes de retorno.
Com o homem em sua frente, mas com as ondas e a escuridão escondendo sua aparência, Theo exclamou:
— Quem é você!? — indagou de olhos arregalados e punhos cerrados, enquanto ainda tentava manter o equilíbrio sobre as ondas agitadas.
— Eu sou você — respondeu, porém, em tom mais calmo.
As nuvens de tempestade cessaram, e as águas do oceano se tornaram rasas o suficiente para cobrir apenas as canelas. O dia, antes escuro e tempestuoso, não passava de um belo fim de semana, com o sol fazendo 36 graus num mar raso, de águas turquesas e areia fina.
Theo ficou ofegante. Seu coração acelerou, batendo forte o suficiente para que próprio garoto escutasse os batimentos cardíacos. Seus sentidos de tempo e espaço se apagaram ao vislumbrar totalmente quem era aquele homem.
O que o homem falou, em certa parte, não mentiu. Ele era Theo, porém de uma vista espiritual. Aquele à sua frente era o próprio general egoriano, Liam Mason.
— Você morreu — negou Theo.
— Morri? — debochou seu Alter-ego. — Estou bem aqui.
— Você é um fruto da minha imaginação…
— Sou? — Liam saltou os dez metros que os separavam apenas para desferir um soco no rosto de Theo. O garoto caiu sentado nas águas rasas. Se agachando, Liam indagou: — Sou realmente uma ilusão?
— Como…
— Como? Todo este mundo é um reflexo da sua própria alma. Um reflexo de você. Mas, afinal… Quem é você?
— Hã?
— Quem é você? O gato comeu sua língua?
Theo engoliu em seco. — Theo de Lawren…!
Antes que concluísse seu sobrenome, Liam chutou o garoto para longe.
— Receio não ter lhe escutado. — Liam resmungou caminhando até Theo.
— Theo de…!
O general chutou novamente o garoto, desta vez, em seu estômago.
— De quem é a alma?
— Isto importa? Abandonei você há tempos — berrou Theo, ainda sofrendo pelo chute. — Você não é mais nada além de pó nessa realidade. Não é ninguém. Sequer tem livros sobre você…
— Bom, talvez só esteja procurando no reino errado. Mas, já que não aceita, proponho revisarmos a situação. Theo De Lawrence, filho de um duque extremamente poderoso. Um moleque rico que nunca precisou passar por preocupações. De início, era antissocial, não conseguia dirigir uma palavra sequer a ninguém.
— Nesses tempos eu ainda retinha sua personalidade…
— Jamais deveria ter deixado de ser “eu”, como você afirma. Continuando, minha pessoa não seria afetada mentalmente pela morte alheia, certo? Assim como você se lembra. Já você, “Theo”, é… Michel Hansen? Acho que era esse o nome daquele senhor.
Theo fechou os punhos.
— Hilário — comentou, seguido de uma gargalhada. — “O senhor Michel morreu, então irei me tornar forte para proteger quem amo e prevenir mortes”… — Liam, novamente, não pôde segurar a risada. — Você lembra até um daqueles protagonistas adolescentes de livros dos quais tanto odiamos. Se temos algo que aprendemos após a nossa morte, idiota, é que: não importa o quão poderoso você seja, não irá escapar ou prevenir a morte!
Os olhos de Theo mudaram de um olhar de ódio para um olhar genuíno.
— O destino será o destino! Não tem como o alterar! Ele está escrito, o que te resta é apenas ler essas folhas de papel enquanto o tempo passa. Uma hora você entrará na última porta, e assim como “eu”, você vai morrer!
— Desenvolveu esse pensamento após morrer? — indagou Theo.
— Eu? Você desenvolveu. Ou ficou tanto tempo brincando de “Theo Lawrence, a criança de ouro” que esqueceu do seu verdadeiro eu? Deixe-me te lembrar, princesa. Após o cataclismo você sofreu o acidente que afetou sua mente. No que isso resultou? Numa alteração de personalidade. Você simplesmente quis ignorar quem você é para adotar uma nova identidade. Esse é o seu problema.
— Meu problema é querer deixar de ser um assassino para ser um protetor?
— Qual soldado em tempo de guerra que não é um assassino? Soldados matam a si, matam pessoas inocentes. Afinal, são apenas um bando de cachorros sendo obrigados a matar em nome da pátria ou de alguma baboseira assim. Destruição é tudo o que soldados deixam para trás. Em troca de quê? Força? Dinheiro? Poder? Do que adianta se matar por dentro em troca de baboseiras passageiras?
— Não são passageiras.
— Não são? Ora, se. Vai me dizer que herdou toda a força de Liam Mason? Ah, perdão. Se tivesse essa força, Michel Hansen e todos os outros estariam vivos agora, mas adivinha… Não estão! Você é fraco, ridículo, está doente. É somente uma máscara insegura brincando de forte e maduro. Aceite que só tem uma opção para tudo isso.
— E qual é? Aceitar que eu sempre serei você? — retrucou Theo. — Aceitar que sou um assassino que matou milhares, destruiu países a troco de nada? Que sou arrogante, orgulhoso e egoísta? Alguém que não conseguia se importar nem com a morte de quem amava?
Liam balançou a cabeça em negação enquanto gargalhava.
— Você já não está sendo orgulhoso somente ao ignorar que eu sou você? — indagou, respirando profundamente após um segundo. — Adolescentes são mais teimosos do que pensei.
Theo processou um pouco.
— Não adiantará discutir comigo mesmo… — disse Liam.
— Concordo. Então você deveria…!
Antes que Theo concluísse, Liam pôs a mão no rosto do garoto e o afogou no mar raso, que logo retornou ao oceano turbulento de antes.
— Então, eu deveria lhe mostrar a parte que decidiu ignorar…