Lira dos Meus Vinte Anos - Capítulo 1
20 de junho, solstício de verão e inverno da minha vida.
Eu, Antônio de Azevedo, tive sete mil trezentos e cinco dias de péssimas experiências. Todos eles contados com o mais extremo desgosto e vividos com a mais acentuada preguiça.
Talvez seja o nome, quem sabe… Não sei quem o escolheu.
Ahr…
Tantos comprimidos. Agora meus pensamentos estão o caos, tão bagunçados quanto o quarto. Impuros como as manchas que maculam o branco das paredes.
No passado esse lixo todo teria feito-me desejar arrancar pescoços e estripar barrigas. Uma pequena contribuição à maldade e à ordem que reinam juntas no mundo. No momento, no entanto, só desejo paz e bondade.
Bom… Vou ligar o rádio. Talvez a voz de um estranho consiga calar os gritos ruidosos de minha consciência culpada.
— (…) Os indicies crescentes de suicídios entre jovens são a prova cabal de um grave problema social. Madrugadas regradas a álcool, drogas e sexo tiram nossas crianças dos trilhos da vida e as atiram no mais completo abismo! É por isso que precisamos de políticas voltadas a prevenção e saú…
Ziu! Pib!
Bastardo… Esse é o problema desses “especialistas” quarentões. Se acham superiores por causa de um diploma universitário, uma vida exemplar de ex-bôemio e uma ou duas temporadas na Europa.
Este em especifico é até pior: estudou nos EUA, ex-aluno de um behaviorista famoso. Mas não é behaviorista; é da Psicologia Social. Soube que até tem mestrado em ser filho da puta, talvez por isso supostamente entenda tão bem a juventude.
Filho da puta…
Quem é você para dizer como devo viver minha vida? E quem é você para dizer que não ter rumo não é, de fato, o meu próprio rumo?! Idiota…
Esse filho da puta…
Bem, onde estávamos? Ah, sim… Sobre a minha maldição.
Neto de avós odiáveis e filho de pais ingênuos, há muito estou condenado. A diferença é que não tive que morrer e ser julgado para isso. Eu já nasci no inferno.
E minha alma ardeu em chamas, todos esses dias.
Mas hoje quebrarei essas correntes. Romperei as algemas frias do autocárcere e queimarei os grilhões de aço que mantém meu corpo preso ao Tártaro.
Debruço-me sobre a mesa, afastando as pilhas de papel, cigarro e lixo.
É engraçado, suponho. Quando tinha a minha idade, meu pai deu-me a vida; vinte anos, dois meses e dois dias depois, e eu a estou tirando.
Cutuco o cinzeiro, na esperança de encontrar o que perdi. Não sei o que buscava, mas com certeza não estava lá.
Afastei-o.
A pressão caiu, mas deve demorar mais ou menos uns trinta minutos até fazer efeito. E três quartos de hora até fazer de mim desinibido o suficiente para descer ao mar.
Se alguém me julga? Podem julgar.
Entretanto, antes, respondam: Se já estou prometido ao Inferno, então o que me impede de pelo menos ir para o inferno que eu escolher?
Ahr… A quem quero enganar? Só estou tentando parecer valente nos momentos finais, como um herói romântico faria. A verdade é que morreria de qualquer forma; se não hoje, então amanhã. E, se não amanhã, daqui a dois meses então, ou dois anos… ou duas décadas… Quem sabe?
Pelo menos foi o que o médico disse.
De qualquer forma, a vida que eu vivi acabou. Já não tenho motivos, e muito menos esperança. Meu enterro foi a consulta e o prognostico, o atestado de óbito.
Olho sob a janela. Os raios piscam de volta, banhando-me com uma luz alva e opaca. O flerte de um astro…
O vento fresco do Sul adentra, inundando minhas narinas e preenchendo cada espaço de minhas entranhas mofadas. Mas que cheiro maravilhoso a Lua tem! Lembra um pouco o de mamãe.
Ainda não falei pra ela. Tadinha, provavelmente vai ser a única que se lembrará de mim com carinho. Sempre atenciosa, mamãe…
Mas e seu pai? — você pergunta.
Tsc! O velho com certeza vai enlouquecer quando descobri que peguei AIDS. Ou melhor, que peguei AIDS de “alguém”. Alguém que não era uma garota, para ser mais especifico.
É triste, contudo é uma das poucas certezas que carrego. Nada muito pesado, entretanto. Nada que ele não possa suportar.
Enfim, mais de dez por cento do tempo passou e eu ainda não contei sobre o meu passado. Ou melhor, sobre a parte do meu passado que importa. Então vamos lá.
Isso foi há exatos três anos atrás. Era época do pré-vestibular e eu estava me virando como dava, tanto em casa quanto na escola.
Em casa, meu pai tinha acabado de perder o emprego e o dono do imóvel tinha começado a nos ameaçar. Ele era amigo do meu avô, aquele velho desgraçado!
Meus avós não apoiavam meu pai com minha mãe e por isso sempre implicavam com a gente. Prefiro não dizer mais do que isso, mas já dá pra imaginar o que aconteceu.
De qualquer forma, passemos de vez para a parte importante.
Lembro que eu era o representante da turma, o melhor aluno da escola, e por isso todos cobravam bastante de mim, exceto ele: protagonista das minhas melhores memórias e dono de toda a minha felicidade.
E ainda me recordo do dia em que nos conhecemos…
— Antônio, certo?
Era uma voz doce e gentil. Na hora eu pensei que fosse alguma menina e por isso não soube como reagir. Quase cai, tropeçando de leve nas escadas.
— S-sim, sou eu. Por quê?
E a voz respondeu, enquanto me virava. De súpeto, o coração acelerou. Imaginei ter que lidar com uma garota bonita, o que sempre me deixava ansioso e sem jeito.
— Eu me chamo Charlie, é um prazer! — apresentou-se.
Ao contrário do que se possa pensar, na hora fiquei um pouco frustrado ao vê-lo em trajes masculinos. Quer dizer… Pela voz, imaginei uma menina.
Contudo logo a decepção foi embora.
Ele era baixinho. Um metro e sessenta, talvez? Seus olhos tinham o verde das árvores e seus cachos o amarelo do sol, indo até o ombro. Ele tinha uma pequena pinta no canto da boca e seu rosto era tão belo que, se não fossem as roupas, eu continuaria pensando que Charlie era uma garota.
— O prazer com certeza é meu, Charlie. Precisa de algo? — perguntei, esforçando-me para não transparecer o meu encanto por ele.
— Ah, bom, eu sou um aluno novo e, quando questionei se alguém poderia me mostrar a escola, a senhora Michelline disse que eu tinha que falar com um tal de “Antônio”, ela disse que ele é alto e bonitão.
Tive que refletir por um momento: “Senhora Michelline… Ah! Ele fala da senhorita Michelline, a coordenadora. Claro, ela me disse algo assim. Então era ele…”
Chamei Charlie e descemos junto as escadas até o pátio.
Quando chegamos ele me deu um olhar analítico e começou a mover o rosto para baixo e para cima, de forma bem calma e demorada. Nesse meio-tempo conversamos sobre o clima quente e sobre o contraste de nossas roupas. Ele vestia-se como um sulista, com roupas de frio; eu, camiseta e calça jeans.
Charlie gesticulava muito enquanto falava, o que era intrigante, mas muito fofo. E acho que ele percebeu a minha opinião.
Sorriu para mim.
— Então… Pode me mostrar a escola?
Vê-lo daquele jeito, todo alegre, esticando o rosto para frente enquanto punha as mãos para trás, fez brotar em meu coração um tipo diferente de impulso.
Provavelmente não era a intenção dele, mas aquela era uma pose muito sexy. Tanto que me convenceu na hora a ajudar.
— Cla-claro! Vamos lá!
Eu então o guiei por todos os lugares importantes dali.
Como era uma instituição de prestigio, o lugar tinha muitos anexos. Eles circundavam o prédio principal, que era o mais antigo e por consequência mais triste também.
Isso fez com que a visita demorasse um pouco. Por sorte, naquele dia tive bastante tempo para me apaixonar à primeira vista por Charlie.
— Por que você se transferiu nessa época do ano? — perguntei como quem não queria nada, enquanto andávamos pelas quadras do Anexo 3.
— Meu pai conseguiu emprego aqui. Eu e minha mãe viemos com ele.
O tom descontraído de sua voz escondia um leve sotaque anglo. Não consegui distinguir se era americano ou inglês.
— Você não é brasileiro, é?
Ele fez que não.
— Tá vendo a cor do meu cabelo? É bem loiro e lustroso né?
Enquanto falava, ele pegou uma de minhas mãos e a levou até a cabeça. Senti com os dedos o transpassar suave de seus fios e por fim tive que concordar. Pareciam serem feitos de seda.
— Minha mãe é inglesa, é por isso — Ele me respondeu, pondo fim à minha dúvida e começando um mistério, uma profusão de perguntas no meu cérebro recém-apaixonado. Do que ele gosta? O que pensa sobre o universo e a Terra? Tem religião? E, o mais importante, será que ele só gosta de meninas?
Não me lembro do que aconteceu depois. Mesmo assim, sei que foi um dos dias mais alegres da minha vida.
Aliás, essa memória seletiva é um de meus maiores males. Infelizmente, fora as brigas que meu pai travava com meu avô por telefone e as lágrimas não tão silenciosas de mamãe, não me lembro de muita coisa.
Basicamente, meu velho vivia trabalhando e fazendo bicos para nos sustentar. E não demorou até que minha mãezinha fizesse o mesmo. Ou seja, eu basicamente vivia só, meus pais chegavam tarde da noite e, exaustos, iam direto pra cama.
Cansaço e tristeza. Essas duas palavras resumiam bem a vida daquelas duas miseráveis criaturas (e ainda resumem).
Há uns seis anos acabei descobrindo o motivo disso: Eu.
Fiquei louco. Por um momento, pareceu que um tijolo socou minha cara. Não só um, mas uma dezena deles! Uma centena deles! E foi aí que precisei fugir da realidade. Convenientemente, um colega ofereceu um remédio.
Drogas? Não, isso foi depois…
— Samanta enviou um vídeo — murmurou alto o eu de quatorze anos, olhando desconcertado para o telefone.
Quando adolescente tinha o hábito de ler com a cabeça fora da cama, esticando os braços contra a luz para segurar os livros ou o celular, ou qualquer coisa que estivesse na posse de meus dedos.
Ao ler o título do vídeo, tomei um baita susto. O que foi doloroso, pois meu pescoço estava em parte fora do colchão.
— Quê?! Mas que coisa horrível essa garota me mondou! — exclamei, pulando dos lençóis e fingindo revolta.
Logo em seguida olhei para os lados disfarçadamente. Chequei as paredes, a porta e a janela do quarto. Quando vi que ainda era de tarde e não tinha ninguém em casa (como sempre), fechei as cortinas e me tranquei ali.
Percebendo o que estava fazendo, meu corpo tremeu de receio. Uma vozinha na mente dizia que aquilo era errado e que eu não deveria continuar. Todavia a curiosidade, o sofrimento e os hormônios falaram mais alto.
— Crossdressing…, é? Até que não é tão terrível assim…
Para título de curiosidade, o nome do vídeo era: “Crossdressing: brinquei com meu namorado vestido de mulher”. Sim, no final foi muito terrível. Muito terrível mesmo.
Diria que foi o destino. Uma espécie de efeito borboleta que mais tarde culminou na tragédia que vivo hoje. Contudo também foi minha porta de entrada para os jardins da felicidade, já que não teria me apaixonado por Charlie de outra maneira.
Mas não me levem a mal, por favor. Isso não aconteceu do dia pra noite e eu sofri muito durante o processo.
Lembro que na época até tentei sair com garotas, e foi bom. Nunca rolou nada além de beijos ruins e caricias estranhas, mas acho que gosto de garotas também. Não tanto quanto gosto de garotos, é claro.
Em minha opinião o ideal seria a média exata de menino e menina. O melhor dos dois mundos, por assim dizer. Ou, em outras palavras, Charlie.
Óbvio que escondi isso de meus pais. Principalmente por receio do que meu velho pensaria se soubesse. Ele já recebia a dose exata de sofrimento, não precisava de mais. Seu copo transbordaria se recebesse mais.
Voltando às minhas memórias felizes, vou contar da vez em que eu e Charlie tivemos nosso primeiro beijo.
Depois daquele primeiro dia começamos a andar juntos. E não demorou para que descobríssemos que tínhamos muitas coisas em comum. Na maior parte, por culpa dele.
Uma vez a aula acabou mais cedo e então combinamos de matar tempo. Tinha um pequeno parque na frente da escola que ambos adorávamos.
— Ei, Antônio. Posso te fazer uma perguntinha amigável?
A voz de Charlie era sempre doce e melodiosa. Nunca cansava de ouvi-lo, por mais que às vezes não prestasse tanta atenção no que estava sendo dito, mas sim no tom, nos vícios de linguagem, ou então não simples balançar de seus lábios.
Ele tinha a mania de puxar o “r” sempre que usava uma vogal temática. Como em “arco”, “errante” e “raro”. Eu me esforçava para não tirar sarro dele nesses momentos.
Na ocasião acabei não resistindo. Notei que sua voz estava um pouco manhosa e por isso o provoquei.
— Você já fez, não? Essa foi uma pergunta.
Lambi os lábios com o gosto doce da maldade. Contudo, o espertinho tinha suas contramedidas.
— Eu disse a-mi-gá-vel. Essa daí não foi amigável, então não vale.
Sorri.
— Tá bom. Você venceu, safado, pode fazer — Eu disse, me rendendo àquela criatura diabólica.
E pela cara travessa que ele fez, imaginei que teria alguma coisa a ver com o meu corpo. Charlie tinha visto enquanto eu me trocava no banheiro mais cedo, antes da educação física, e ficou me provocando o dia todo.
Mas eu estava enganado.
— Sempre venço. Hehe — disse, sorrindo jocosamente antes de continuar: — Mas o que eu quero saber é por que até hoje você não tem uma namorada?
Quase pulei de surpresa, enquanto ele completava:
— Digo, olha só pra elas! Mesmo agora a maioria dessas meninas não para de lançar esse olhar sedento em você.
Bom, aquilo era verdade. Embora fosse estranho admitir abertamente, eu percebia. E também tinha noção da minha própria aparência. Quer dizer, tinha um rosto simétrico, um cabelo arrumado e belas feições. E cuidava do meu corpo. Então, lógico, eu sabia para onde elas olhavam.
Todavia ser desejado por mulheres era irrelevante para mim. Ao menos naquela altura era, pois já tinha um amo.
Na hora eu só pensei em como explicaria isso para ele. Charlie já havia dado sinais, mas a dúvida sempre permanecia: Será?
Quer dizer… Sempre havia a possibilidade de eu ter entendido tudo errado. Mas e se ele entendesse tudo errado? O que pensaria de mim?
“Tsc! Que se dane, ele não é esse tipo de pessoa. Então acho que vou só perguntar”, pensei, chegando a uma conclusão. Depois o arrastei para um lugar reservado e contei sobre meu segredo.
Ele reagiu bem. Surpreendentemente bem, pra falar a verdade. Disse que me entendia e que eu não precisava me preocupar — típico de Charlie —, todavia o que aconteceu depois me preocupou.
Isso porque no dia seguinte ele me parou no intervalo e disse que queria contar algo. Pediu para o esperar no final da aula. Nem preciso dizer que aquilo me deixou maluco, né?
Quer dizer, eu ainda não sabia qual era a orientação sexual dele. Então fiquei pensando coisas do tipo: “Será que o que ele disse ontem era mentira?”, e: “Será que Charlie não vai mais falar comigo?”
Com demônios na mente, eu esperei por Charlie.
Quando o sinal bateu, ele veio até a mim. Nós então caminhamos juntos até uma outra pequena salinha. Ela era afastada e perfeita para conversas à sós.
O silêncio dele durante a caminhada e o fato de não olhar diretamente na minha cara aumentaram em muito a minha preocupação. A cabeça ficou um caos. O coração disparou. E, quando enfim chegamos…
— Antônio, nós precisamos conversar.
Seu olhar sempre gentil foi trocado por uma carranca séria à qual eu nunca sonharia ver; seu sorriso alegre, por uma expressão receosa.
Assenti e ele então usou as mãos para me convidar a entrar. Logo em seguida foi à janela e fechou as persianas. A porta também foi trancada.
— Vamos precisar de privacidade — explicou.
Eu já nem estava mais pensando direito quando ele disse aquilo. Só conseguia pensar no porquê de ele ter fechado tudo, no porquê de tanta privacidade para me dar um fora e no porquê as coisas não davam certo pra mim. Eram muitos por que, mas poucos porque.
Fiquei inexplicavelmente desestabilizado, a insegurança tomou conta de mim, como um diabo que desafiara a supremacia do inferno, que no caso era a minha cabeça. E ele venceu, tomou conta dos sete níveis, um por um, até chegar ao abismo que era meu coração e dele se proclamar rei.
Mas as ações seguintes de Charlie fizeram com que eu voltasse à realidade.
De súbito, lembrei que estava na presença de um anjo, para o qual nenhum demônio era páreo. Ele fez de minha vida um céu e com certeza não me atiraria de volta ao Tártaro. Ao menos era essa a minha fé, a minha única e frágil esperança.
— Antônio, venha aqui! — ordenou. E eu obedeci.
Quando me aproximei, tive uma pequena surpresa.
Charlie me pegou pelo braço e, de súbito, se aproximou de mim. Seu rosto angelical ficou muito perto da minha carranca diabólica. Tão perto que podia ouvir sua respiração e sentir sua emoção. E, cara…, como cheirava bem.
— Antônio, o que eu queria te falar é… e-eu…
Quando ele ficou nas pontas dos pés e puxou a gola da minha camisa, eu já sabia. Já sabia o que ele queria me dizer. Palavras não eram necessárias para que eu entendesse o que ele sentia.
Fui assaltado. Tive os lábios roubados por aquela língua macia e pequena.
Seu beijo era suave como a pluma, porém quente. E o gosto parecia mel. Seus movimentos caóticos e inexperientes fizeram com que eu me sentisse bem pela primeira vez na vida.
Foi naquele exato momento, naquele milionésimo de milionésimo de segundo, que tive roubado de mim algo que não imaginava que tinha, um objeto vazio e amassado que jamais imaginei ser fruto de desejo de ninguém.
Com um beijo, Charlie roubou meu coração. Ele já o havia roubado desde a primeira vez que nos vimos, e o roubou de novo e de novo, sempre que nos víamos. Dessa vez, contudo, foi diferente. Dessa vez foi de verdade. Dessa vez eu percebi e o entreguei de bom grado.
Senti que estava no paraíso enquanto aqueles lábios finos se enrolavam em mim. Meu anjo era baixinho e se chamava Charlie.
Não sei quanto tempo se passou quando nossas bocas se desenroscaram e admito queria mais. Contudo nós ainda tínhamos um assunto a tratar e o tempo que poderíamos continuar despercebidos na escola era curto. Portanto tivemos que jogar água na excitação e nós afastar um pouco.
— Sabe, Antônio, eu gostei de você desde o primeiro dia que te vi.
A confissão me deixou tímido. Tímido, porém feliz.
— Digo o mesmo pra você, docinho de mel!
Ele não entendeu. Eu então apontei para seus lábios com o indicador e o lambi.
— Ah! Isso… Eu chupei uma bala antes de te buscar. Hehe…
“Então já havia a intenção…”, pensei, meio desconcertado, e um pouco furioso — admito —, porque vi aquela insegurança toda foi muito desnecessária. Charlie, por outro lado, já viera com a certeza de um beijo.
Depois disso começamos a sair juntos e a namorar.
Tudo escondido, é claro. Afinal, nossos pais teriam um colapso mental se descobrissem. Então nós só fingíamos ser “bons amigos” na frente deles.
Em síntese, eu estava muito apaixonado por Charlie.
Mas o destino foi muito cruel com nosso romance. Logo no final daquele ano Charlie teve que voltar à Inglaterra, de onde nunca mais saiu.
Ahr…
Lembrar dessas coisas me dá muita vontade de apressar esse monologo para reencontrá-lo mais cedo, meu docinho.
Tsc! Não aguento nem mais um minuto dessa vida maldita! Aqui é só caos, desprezo, desilusão, expectativas frustradas e angustias. E, por óbvio!, sofrimento. Muito sofrimento.
Mas voltando ao que importa…
Nós até tentamos manter um relacionamento à distância. Charlie mandava mensagens, às quais eu alegremente respondia, e até nos víamos por vídeo uma vez por semana. Infelizmente não funcionou. E o errado na história fui eu.
Quando Charlie saiu, eu entrei na universidade. Lá, acabei traindo-o em algumas festas. Provavelmente foi quando também peguei a doença.
Um ano depois eu descobri que Charlie estava morrendo. Larguei tudo e fui visitá-lo uma última vez.
A culpa me corroía.
— Charlie, você…
— Não diga nada! — repreendeu-me assim que entrei na UTI. — Sua mãe já me falou que você gastou praticamente todas as suas economias pra vir me ver! Isso é tão…
Dessa vez eu o interrompi. Silenciando sua boca com um beijo longo e profundo.
Sentir aqueles lábios — outrora quentes e macios — tão secos e gelados só fez com que a minha culpa se tornasse ainda maior. Era preferível ser trucidado por uma horda de diabos a suportar tamanho peso. Ehr… Esse provavelmente será o meu destino.
Charlie nunca me perdoaria e eu sabia disso. Mesmo assim, precisava de uma palavra, qualquer uma. Mesmo que fosse uma maldição, ou um xingamento. Precisava ouvir Charlie falar.
— Charlie… eu… por favor… me… me… perdoe…
— Antônio — Ele me interrompeu, sua voz ficava cada vez mais rouca —, não importa o que você tenha feito, eu não consigo… culpar você…
A bondade dele só fez com que notasse a distância entre nós. Na hora tive consciência do abismo em que havia me enfiado. Charlie me olhava do alto, enquanto me debatia na lama infinita e escura.
E naquele momento o único desejo que superava minha vontade de morrer era o amor que eu lembrei que tinha por ele.
Apoiei-me na lateral do leito e o encarei fixamente. Algumas verdades então ficaram claras.
O amor é o fogo que arde e se vê, pois eu via as labaredas que irradiavam de Charlie. O amor é ferida que dói — dói muito! — e se sente, pois eu sinto. E é uma dor trucidante, que amacia e atormenta, que corrói por dentro e por fora; que faz o desejo de estar vivo florescer e ao mesmo tempo arranca a vida pela raiz.
O amor é místico. Sombra escura da qual vem a luz e o caos. É engraçado o que o sistema endócrino e o sistema nervoso podem fazer com o coração da gente.
Declarei meu amor em meio a soluços e choro.
— Eu também te amo… Antônio… Por favor… vi… viva… por… nós… doi…
Aquelas foram as últimas palavras que eu ouvi da boca de Charlie.
Poucos minutos depois a pressão dele caiu e uma enfermeira veio para me expulsar do quarto.
Dois dias depois, ele deixou esse mundo.
Os meses se passaram e eu então descobri que não vou poder cumprir a promessa que fiz a Charlie.
Ahr…
Fim.