Kami - Capítulo 4
Lentamente abri meus olhos e fui recebida por uma dor infernal que estava infestando meu braço. Virando minha cabeça na direção da voz familiar, pude ver Waru sentado do outro lado da sala com um pedaço de carne assada em sua mão. Seu rosto estava cansado e vazio, seja lá o que aconteceu não foi algo bom…
—O que… Waru?
Olhando para mim com surpresa e felicidade, ele rapidamente correu em minha direção.
—Sua estúpida! — Foi o que ele disse deixando escapar um suspiro de alívio — Já basta você ter ficado em 15% após lutar contra o monstro… E ainda por cima teve aquela queda? Você foi longe demais Eliza… Depois que aquele urso enorme morreu, as terras começaram a tremer, o chão se abriu… e começou a aparecer centenas deles aí-
—Está tudo bem agora… Nós estamos vivos, não estamos?
Respirando fundo ele se sentou ao meu lado e pousou sua mão sobre minha testa.
— Você… Seja lá o que você fez naquela hora… Nunca mais utilize aquilo! O seu estado quando a encontrei… ‘Aquilo’ não se parecia com você…
—Nhoim! Está preoculpadinho com sua maravilhosa e bela amiga de infância… Uh? Será que você estaria apaixonado por mim? — Falei com um leve sorriso, enquanto via ele ferver de raiva e vergonha, antes que ele pudesse dizer qualquer palavra como sermão, eu o cortei — Eu sei, eu sei! Eu não deveria estar brincando com isso… Só estou tentando me distrair um pouco da minha atual realidade onde meu braço esquerdo está dizimado e o resto do meu corpo inteiro está doendo pra cacete, então eu posso né?
Soltando um suspiro de derrota ele assentiu com a cabeça e tirou a sua mão áspera da minha testa.
—Sabe… Que tipo de “habilidade” foi aquela? Aquela antes do monstro te atingir no ar…
—Hm? Como assim? Eu não usei habilidade nenhuma, pra ser sincera eu não tive nem mesmo um único segundo para reagir aquele ataque… — Falei enquanto um leve sorriso de vergonha escapava da minha boca.
Aconteceu alguma coisa naquele instante? Parando pra pensar, mesmo após perder a consciência… Aquela criatura não me matou, muito pelo contrário! Ela estava a vários metros de distância encarando o solo…
—Entendo… — Ele murmurou sem perceber, realmente aconteceu alguma coisa naquele momento.
—O que você viu naquela hora?
—Esquece… Não é algo que deva se preocupar, agora você precisa comer e repor energias… — Ele falou enquanto estendia o pedaço de carne na minha direção.
Sorrindo fracamente, eu peguei o enorme pedaço de carne e o mordi como uma fera faminta me esquecendo por um momento da nossa recém conversa. A textura da carne me lembrava um pedaço de borracha, porém o seu gosto era maravilhoso e muito semelhante a uma boa costela assada…
—O que é isso? — Falei com a boca cheia.
—Carne de lagarto cristalino… E pelo amor de deus, engula primeiro antes de falar…
—Ei! Eu estou morrendo de fome! — Falei enquanto mordia outro pedaço da carne — Afinal, onde estamos? No inferno?
—Se o inferno for tão frio quanto aqui, talvez seja… A verdade é que nem eu sei direito — Dando de ombros ele caminhou para perto do pedestal flamejante — O que importa agora é a recuperação do seu corpo e achar uma saída daqui…
Engolindo o resto da carne, comecei a mandar leves ondas de jihn para as áreas doloridas do meu corpo.
—Vai levar um tempinho para estar no 100%, mas acho que daqui algumas horas eu conseguirei ajudar em algumas coisas básicas… — Falei enquanto puxava o jihn de volta para as reservas — Nós temos mantimentos para sobreviver quanto tempo?
—Também não sei… Mais acho que é o suficiente — Ele disse enquanto pegava a grande placa de aço encostada no pedestal, assim que ele a virou pude ver desenhos carmesins por toda superfície da placa — Eu mapeei todas as salas que já passei e entre elas, encontrei uma fonte de água limpa não muito longe daqui… A minha meta para amanhã é te levar lá e cuidar dos cortes que foram feitos nas suas costas…
—Ei! Você por acaso me despiu?
—Não é o que pensa senhorita precipitada. Tente a si mesma encostar suas mãos nas costas — O encarando com um olhar mortal, tentei apalpar as minhas costas, sendo recebida por um choque — Você entendeu? Não é culpa minha se os cortes atravessaram sua fina armadura e deixaram sua pele à vista…
—Como… Eu não recebi nenhum ataque que fizesse isso…
—Não importa o que fez isso ou não, a questão aqui é que devemos levá-la a fonte, para que possa se limpar antes que os cortes infeccionem…
—No caminho pra lá… Teremos que enfrentar algum inimigo?
—Espero que não… — Ele respondeu enquanto apontava para uma sala marcada com um enorme X no pedaço de aço — De todas as criaturas que eu vi até agora, essa espécie é a mais perigosa… O caminho para a fonte atravessa uma passagem onde fica o covil dos phantoms.
—Phantoms?
—Pelo que entendi… — Ele falou enquanto me encarava com seus olhos âmbar — Eles são criaturas mortíferas e extremamente rápidas… Eu não pude vê-los, mas… Vi a presa deles ser degolada e devorada em segundos… Nós devemos evitar seu território a todo custo e nunca, nunca! Lutar contra eles…
Phantoms né? Me pergunto se eu estivesse no meu 100% se eu conseguiria matar um… Ou até mesmo derrotar aquele urso mais facilmente… O meu estado atual é patético, e meus inimigos só demonstram o quão fraca eu sou… Vai ser uma longa caminhada Eliza… Até eu alcançar o nível 10 e me tornar a maior exploradora de todas…
Assistindo ao crepitar do fogo, Waru colocou a placa de ferro no canto da sala e se deitou não muito distante de mim, se cobrindo com um pano negro.
—Enfim, recomendo que tire sua armadura e descanse um pouco… E se você quiser reabastecer suas reservas, recomendo que use aquilo — Apontando com seu indicador na direção do pedestal, para ser mais específico, ele apontou para a enorme chama do pedestal — Aquela coisa ali é uma espécie de fonte/gerador ou sei lá como queira chamar… O que importa é que aquilo emana jihn sem parar…
Assenti com a cabeça em resposta e ele se virou para o lado, aos poucos sua respiração foi ficando mais rítmica, até que enfim ele caiu no sono.
Observando ao nosso redor mais calmamente, percebi uma única coisa que estava diferente, a enorme porta branca agora estava fechada com palavras estranhas por toda superfície plana da madeira, provavelmente aquilo é a escrita antiga… E tenho certeza que o Waru não as escreveu ali, deve ser algum mecanismo desta sala… Interessante, muito interessante…
Voltando minha atenção ao meu corpo, destravei o bracelete de couro do meu braço esquerdo o fazendo ficar mais leve e livre. Sem perder mais tempo arranquei minha pulseira de prata do meu braço direito e meu colete de escamas negras que agora estava rasgado nas regiões das costas, ficando apenas com minha confortável blusa branca, pelo menos ela era, porque agora ela não passava de trapos manchados com sangue.
…
Após uma longa pausa para descansar, coloquei o máximo de forças no meu braço direito e nas pontas dos meus pés, e com muito esforço comecei a rastejar pelos pisos de mármore escorregadios.
Com ajuda do jihn fortalecendo meu braço consegui me sentar frente a frente com o suposto ‘fogo mágico’ respirando fundo, comecei a praticar a ‘respiração especial’, concentrando todo ar possível em um único ponto na minha frente, eu o respirando, puxando o jihn da atmosfera.
Mas dessa vez… Uma forte sensação de gastura tomou o meu corpo, eu podia sentir o jihn vibrando e tremendo de ódio enquanto ele arranhava e esticava meus pulmões ao máximo… Foco… Apenas se mantenha calma e controle-o… Faça-o aceitar que ele faz parte de você agora! Relaxando minha respiração eu pude sentir cada partícula de jihn dentro do meu corpo se juntando uma com as outras ao redor das minhas reservas, fazendo com que elas se tornassem cada vez mais fortes…
Uau, nem mesmo uma lotus de jihn mais puro teria esse efeito tão forte e revigorante, mas também nem mesmo o fio mais impuro necessita de tanto esforço e controle sobre o jihn para manipulá-lo… Que ‘espécie’ de fogo é este? E como ele possui tais afinidades com o jihn? E o pior, como posso sentir que ele está com raiva?
Beem… acho que não seria idiota fazer isso, já que é um experimento… não é?
Esticando o meu dedo indicador para dentro das chamas, pude sentir minha pele e ossos queimarem e serem rasgados pela dor.
Não! Definitivamente também tem as propriedades de um fogo comum… Ele… Sei lá! Só deve estar sob o efeito de um cristal ou qualquer outra coisa que forneça jihn.
Foi o que pensei até olhar para meu dedo, ao invés dele estar completamente carbonizado ou levemente queimado… Havia nada… Literalmente nada… Nem mesmo a cicatriz que carrego desde minha infância.
Voltando meu olhar confuso para chamas, tentei imbuir jihn diretamente no pedestal de mármore polido e depois na chama vibrante, mas nada aconteceu, nem mesmo um tremeluzir do fogo.
Observando o fogo crepitante por alguns minutos, percebi que a base da onde aquela flama surgia não havia nada, sem carvão, sem cristal de jihn, apenas a brilhante e calorosa chama carmesim em cima do pedestal… Então não era algo relacionado ao fogo em si… O pilar? Seria ele que forneceria essas características ao fogo?
Em dúvida e ainda confusa pelo que aconteceu eu acho válido tentar me queimar novamente, só pra ter certeza que esse fogo pode ‘curar’ feridas… Respirando fundo eu levantei a manga do meu braço ferido e apontei meu cotovelo na direção das chamas.
No três Eliza… Um… Dois… E assim que comecei a contagem enfiei meu cotovelo nas chamas ardentes e então uma enorme labareda fulminante surgiu se alimentando do meu braço esquerdo por completo, afetando até meus canais de jihn que estavam sendo drenados pouco a pouco pelo fogo, a dor que eu senti no meu dedo não foi nada comparado a essa…
A dor intensa estava me fazendo chorar lagrimas que em segundos eram evaporadas pelo calor, aquilo sim era uma verdadeira tortura, quanto mais eu tentava tirar meu braço das chamas pior a dor ficava.
Desesperadamente atribui jihn e minha natureza Aurus no meu braço e tentei novamente puxar meu braço do fogo, mas desta vez uma enorme pressão caiu sobre mim enquanto as brasas escaldantes giravam em alta velocidade ao redor do meu corpo, eu podia sentir meu braço e torso sendo cortados e esmagados pelas brasas.
Gastura, tontura e náusea juntas me atacaram quando as chamas penetraram minha pele, cada região do meu corpo estava sendo queimada pouco a pouco, até que finalmente meus pulmões foram afetados pelas chamas, cada partícula de jihn cada milímetro das minhas reservas, tudo estava sendo queimado cada vez mais.
Waru… Socorro… Eu tentava gritar mas não saia mais nada além da fumaça em minha boca… Eu não escutava mais nada, eu não via mais nada… Eu apenas sentia meu corpo queimar lentamente, me fazendo perder controle de cada parte dele, uma de cada vez…
…
Mas o que? Foi a primeira coisa que pensei, a escuridão me cercava por todos os lados não havia mais nada além dela.
Aos poucos, uma pequena luz começou a aparecer na minha frente… Não, não era pequena, eu que estava distante.
Tentando me mover em direção a luz nada aconteceu, eu não conseguia sentir o meu corpo e parando pra pensar eu não consigo ao menos respirar!
Onde eu estou?
‘Uma pergunta meio estúpida não’ uma doce voz rodeou a escuridão.
O que? Quem disse isso?
‘Eu, Aitséh filha de Sonorc que disse isso’ ela respondeu com autoridade e confiança ‘E quem seria você? E o que faz aqui?’
Eliza Ladres, é um prazer conhecê-la… Entidade Aitséh. Falei enquanto escolhia o termo mais apropriado para se referir a uma voz do além. E eu não sei onde raios eu estou ou como vim parar aqui.
‘Hmmm, entendo… Você estava mexendo com… Uma espécie de chama carmesim antes de vir pra cá?’
Sim? Como sabe…
‘Você ainda está fraca para herdá-lo por completo…’ murmurou Aitséh ‘Bom, daqui a pouco você irá acordar e provavelmente ficará surpresa com o que você vai ver, mas não tenha medo ok?’
Espera o que você está falando?
‘Eliza! Junte forças e me alcance’ ela falou enquanto a luz ficava mais distante de mim ‘Com o jihn suficiente… Tudo vai se esclarecer…’
Como assim? Porque a luz está se apagando e porque a sua voz está ficando mais abafada… Aitséh?!
‘Não se preocupe, nós veremos em breve… Porque sou sua nova companheira’
Após as palavras dela a luz sumiu por completo na minha visão me deixando no vasto e solitário abismo negro…