Jovem Senhorita - Capítulo 2
Maria queria se enfiar em um buraco e não sair mais. Ponderou se valeria a pena virar um avestruz moderno — daqueles que enfiam a cabeça até no asfalto —, mas achou melhor não. Precisava entender a sua situação e, pelo visto, as novels eram generosas demais com os protagonistas transmigrados.
“Eu não devia receber as memórias dessa Ning Xu agora?”, reclamou enquanto sentia uma serva apertar mais a faixa que envolvia a sua cintura.
Em alguns instantes, já totalmente vestida com uma roupa estilo China antiga — com direito a um véu que a impedia de ver direito —, o médico chegou para examiná-la.
Era um senhor de idade, com cabelo e barba longos e brancos. A sua presença trazia uma sensação de paz e o seu rosto marcado pelo tempo era como o de um avô preocupado com a neta.
— Jovem senhorita Ning. — cumprimentou ao entrar. — Permita-me examiná-la por um instante.
Maria olhou para ele por um momento antes de congelar.
“Médico? Eu não vou precisar tirar a roupa, né?”
A vontade de sair correndo era grande, mas ela sabia que não iria muito longe. Resignada, resolveu ouvir as palavras do velho homem e o seguiu até o que parecia ser uma pequena sala de visitas.
Ali, o velho se sentou, fez sinal para que ela o imitasse e pediu o braço para sentir o pulso. Maria observou as ações do homem com certa curiosidade. Era estranho. Como ele saberia se ela estava bem ou não só de sentir a pulsação no seu braço?
Passados alguns instantes, o médico abriu os olhos. Um traço de confusão estava presente no seu rosto quando encarou Maria por um instante.
— Ela está bem. — falou para as servas. — Vocês notaram algo de diferente ultimamente?
A líder das servas deu um passo à frente e falou: — Doutor Mu, a jovem senhorita passou mal pouco antes da sua chegada e…
O médico ergueu o braço, calando-a.
— Vocês limparam? — questionou. Com a negativa, continuou: — Mostrem-me o que você viu, Ruo’er.
A líder das servas fez uma reverência e o levou para onde Maria tinha vomitado, fazendo com que a garota corasse de vergonha novamente.
Desviando o olhar, ela pensou um pouco e teve uma ideia para ajudá-la a entender melhor o meio onde se encontrava.
“Deve dar certo, meninas ricas nessa idade costumam ter…”
Disfarçadamente, chamou umas das servas e perguntou: — Você sabe se eu tenho um diário?
A serva assentiu e correu para o quarto em que Maria estava quando acordou. Ali, embaixo do colchão, havia uma fenda, de onde a menina tirou um livro meio gasto. Em seguida, voltou para a sala com passos rápidos e entregou o volume para Maria com uma reverência.
Maria revirou os olhos com a ignorância da serva. Se ela sabia onde estava o diário deveria deixar lá mesmo, a sua mestre nunca saberia que ela sabia onde era guardado. Mas ela foi tão descarada na hora de mexer nas coisas da sua senhora que essa não pôde deixar de desconfiar.
“Pensa que eu nasci ontem, menina?”
A conversa do Doutor Mu com Luo’er acabou e o velho voltou para a sala para se despedir.
— Jovem senhorita, evite comer comida picante e muito temperada, além de alimentos que contenham energia Yin. O mal maior já passou, mas o seu corpo precisa se recuperar. Por prevenção, espere alguns dias antes de voltar a cultivar.
— Certo, certo. Valeu aí, Doc.
O médico fez uma reverência e saiu da sala com as costas retas e olhar pensativo.
Maria olhou para a figura agora mais distante e logo voltou os olhos para o diário de Ning Xu. Sentando-se em uma cadeira qualquer, começou a folhear as páginas.
As folhas eram preenchidas por caracteres chineses e alguns desenhos muito bem feitos de pessoas e lugares. Dentre as pessoas, Maria pôde identificar Ning Piao de aparência mais nova e a serva Luo’er.
“Por que tinha que estar em chinês?”, lamentou. “Melhor usar o tradutor no meu celu…”
— Meu celular! — gritou enquanto se levantava, fazendo a serva atrevida cair sentada de susto. — Cadê o meu celular?
As outras servas, ouvindo o alvoroço se aproximaram para ouvir a palavra estranha.
— Jovem senhorita, o que é um ce-celular? É uma nova técnica de cultivo?
Maria começou a sentir falta de ar. Com os lábios sem cor e as mãos trêmulas, começou a correr pelos aposentos procurando o seu amado celular. Era um modelo de última geração que ela tinha usado quase todas as suas economias para comprar; não podia suportar perdê-lo.
— Meu celular, meu amado celular… Cadê você? A mamãe tá te procurando…
— Jovem senhorita, por favor, se acalme. Nós vamos achar o seu… celular.
Maria lançou um olhar violento para Zhi, que tinha acabado de falar.
— Me acalmar? Usei cinco mil. Cinco mil reais pra comprar esse celular e você me fala pra me acalmar? Não me diga que vocês pegaram ele e resolveram vender? — Um misto de raiva e pânico estava presente no olhar da garota enquanto ela apontava o dedo para as servas trêmulas.
— Nos poupe, jovem senhorita! — falou a mais fraca delas de joelhos, não suportando a pressão que emanava do corpo da sua senhora.
Ao ver a garota desgrenhada no chão, Maria recobrou os sentidos e respirou fundo. Depois de algumas respirações, se acalmou e falou:
— Deixa pra lá, mesmo se eu achar, não tem nem internet, nem energia aqui. — Parando por um instante, continuou: — Aquele Piao lá não queria que eu fosse com ele em algum lugar? Chamem ele e digam que eu vou.
Luo’er sinalizou para a serva calada e essa fez uma reverência e saiu.
Depois de alguns instantes, Ning Piao chegou com um grande sorriso no rosto.
— Irmã Xu, vamos lá! Papai está no grande salão com os membros da família Huang. Temos que nos apressar.
Maria franziu levemente as sobrancelhas e se deixou levar pelo garoto chinês. No caminho, com o diário em mãos, começou a mostrar os desenhos para ele, que os identificava com animação.
— Esse é o papai, essa a vovó, esses aqui são os jovens mestres Ling e Xue, da família Xiao. Vocês cresceram juntos, lembra?
Pouco a pouco, Ning Xu associou rostos a nomes, mas ainda não conseguia ler nada. Até tinha tentado aprender japonês antes, mas os kanjis a confundiam e o chinês era completamente diferente.
No meio do texto, conseguia identificar apenas os símbolos numéricos e os de fogo, rio e campo. Mais nada.
Antes que pudesse se desesperar, a dupla chegou ao destino e entrou no grande salão.
— Xu’er! — A voz do homem sentado no assento principal estava preenchida de alívio e alegria por ver a sua filha de pé e na sua frente.
Maria olhou para ele por um instante e não sabia o que fazer. Então, acenou para o homem que identificou como sendo o pai e disse: — E aí…
Um silêncio sepulcral envolveu a todos os presentes. Ning Xu sempre foi uma garota muito bem educada, por que não cumprimentou a todos devidamente?
— Pessoal. — acenou para os demais, que, desconcertados, imitaram o cumprimento com a mão. — Hm! É comida? Tô com uma fome… — continuou, chegando mais perto das mesas com alguns pratos. — Ei, algum de vocês tem um garfo? Não dá pra comer com palitinho não…
Antes que ela pudesse continuar a falar, Ning Piao chegou por trás e cobriu a sua boca.
— Nobres convidados, perdoem a atitude da minha irmã. Ela esteve muito doente e acordou há pouco, mas não conseguiu ficar parada quando soube que tínhamos tão nobres convidados.
— Não se preocupe, jovem mestre Ning. Pequenas confusões podem acontecer diante de distúrbios na energia interna de alguém. Nesses casos, o melhor é equilibrar essa energia por meio da acupuntura; e, por acaso, sou especialista nessa área. — Um ancião dos Huang se levantou e fez uma leve reverência, enquanto portando expressão arrogante.
Ning Piao estava dividido entre o receio pelas consequências de aceitar a ajuda e de a rejeitar, bem como ainda desconfiado das razões que levaram o grupo até a sua família.
— Outro médico? Até parece que tô doente… — resmungou Maria, depois de tirar a mão do irmão de cima da boca. — Seu doutor, é o seguinte: a normal aqui sou eu. Vocês é que tão malucos. Olha esse cabelo aí, posso te apresentar o seu João, barbeiro da vila. Ele é muito bom com a navalha, e cobra só 10 reais o corte, uma pechincha!
O silêncio reinou no lugar, se perdendo apenas para os leves sons tossidos daqueles que se engasgaram com a comida, ao ouvir as palavras absurdas da menina. O médico Huang Ho, aquele que se levantara, estava paralisado, com o canto da boca espasmando, como se estivesse à beira de um surto.
— Por favor, doutor Ho, poderia examinar a minha irmã? — Ning Piao abaixou a cabeça, envergonhado.