Ithy - Sombras de Eberus - Capítulo 4
Victoria resmungava palavras ininteligíveis, envolta em total escuridão, sem referência de onde estava ou qualquer som audível. Subitamente, uma voz feminina e suave chamou-a pelo nome, um eco distante que parecia transcender o vazio. Ao abrir os olhos, encontrou-se de volta em seu quarto no majestoso castelo da guilda.
Vestindo sua camisola azul favorita, ela se levantou e observou o ambiente familiar, onde o guarda-roupa e o espelho estavam posicionados ao lado. No entanto, algo estava fora do lugar. Vestindo seu short preto, cropped azul-marinho e o característico sobretudo preto, Victoria verificou a manga esquerda e estranhou: não estava rasgada.
Ao atravessar os corredores de pedra iluminados por tochas na base da guilda, ela testemunhou um dia que parecia comum. Criadas realizavam suas tarefas e pela janela, podia avistar jovens treinando ao ar livre no pátio.
Parada diante da porta do escritório de seu pai, Haniball, Victoria suspirou antes de entrar. Seu pai estava lá absorto em suas anotações, seus olhos azuis destacando-se contra o cabelo branco. A saudação calorosa de “Bom dia, querida” interrompeu seus pensamentos confusos.
— Bom dia, papai. — Respondeu ela ainda confusa. De repente, uma revelação a surpreendeu:
— Aliás, feliz aniversário. Lagarto preparou uma festa para você no salão hoje à noite.
O choque tomou conta dela, pois sabia que já tinha vivenciado essa conversa anteriormente. Agora, seu pai se preparava para contar sobre o presente que só chegaria no próximo mês, devido à neve.
— Eu tinha preparado um presente para você, mas devido à neve alta só chegará no próximo mês, — disse ele.
Victoria, paralisada, revivia o dia de seu aniversário de quinze anos, um evento que transformou sua vida. E, como se fosse um eco do passado, ela sentiu uma pontada aguda no pé da barriga, uma dor intensa que, embora pensasse ser cólica, não podia ser, já que não estava em seu ciclo menstrual. Antes que pudesse desvendar esse mistério, tudo se obscureceu mais uma vez.
Ela despertou em uma sala envolta em sombras desconhecidas, os contornos turvos em sua visão. Do além, surgiam vozes masculinas em diálogo, uma delas inconfundivelmente era a do seu pai, Haniball, e outra, não conseguia reconhecer.
— Você precisa fazer algo, encontrar uma solução para isso. — Haniball insistia com autoridade.
— Eu já esgotei todas as opções ao meu alcance, Haniball.
— Mas deve haver mais alguma coisa que possa fazer!
— Se quer e realmente deseja ajudar sua filha, a única pessoa que conheço capaz de lidar com uma maldição desse tipo é ele.
— Quem? — Haniball questionou, apreensivo.
— O feiticeiro conhecido como Corvo. Encontrá-lo é quase impossível, mas se conseguir, acredito que ele terá a resposta. Dizem que possui conhecimentos profundos das runas antigas.
A conversa prosseguiu em murmúrios, mas a fraqueza abateu Victoria e ela se deixou levar pelo sono mais uma vez, as palavras dos dois homens se distanciado até se perderem na penumbra.
Ouviu passos, uma suave brisa acariciou seu rosto, e então, mais uma vez, abriu os olhos. Diante dela, os cabelos castanhos e o rosto amistoso de Samuel, que ocupava o assento ao lado da cama.
— Olá — cumprimentou ele.
Victoria percebeu que não vestia mais suas vestimentas usuais e notou a maciez do tecido contra sua pele. Suas bochechas coraram ao encarar o rapaz, sozinho com ela no quarto.
A porta se abriu, revelando uma moça com grandes olhos amarelos e penas cinzas adornando seus cabelos. Uma beleza peculiar, exalando uma aura meiga.
— Ela acordou! — Exclamou a garota com entusiasmo.
Ainda buscando entender sua situação, Victoria observou o ambiente luxuoso ao seu redor. Um quarto com mobiliário refinado indicava que estava na residência de alguém de boas condições financeiras.
— Como está se sentindo? — Perguntou Samuel.
— Confusa.
— Se lembra de alguma coisa?
— Algumas coisas — confirmou ela, embora sua memória estivesse turva, recordando apenas a perseguição a uma carruagem. Sua mente ainda era um emaranhado de pensamentos.
— Querido, não a incomode com perguntas, ela ainda precisa descansar — interveio a moça, puxando Samuel pela manga da camisa o tirando da cadeira.
— Mas… eu… — tentou argumentar, interrompido pela criada que adentrou o quarto. Visivelmente mais velha que os quatro.
— Senhor Samuel, obedeça a sua noiva, vá e deixe a moça descansar em paz. — Ordenou a senhora, empurrando-o para fora e fechando a porta.
— Olá, eu me chamo Lavine Hikma e muito obrigada por salvar o teimoso do meu noivo — disse a moça, sorrindo, sentando-se na cadeira onde Samuel estava.
O nome Hikma acendeu uma luz na mente de Victoria. Lembranças do motivo que a levou a salvar o nobre jovem, revisitaram.
— Como está se sentindo? Acredito que esteja melhor, poderia me dizer seu nome?
— Você disse que seu nome é Hikma? Pensei que ele fosse um Hikma — disse Victoria.
Lavine e a criada trocaram olhares significativos.
— Então você tem interesse em particular em nós.
Victoria, ainda processando sua situação, sentou-se na beirada da cama. O piso de madeira estava gelado, mas não mais do que o da mansão em que cresceu.
— Não se esforce, você ainda não se recuperou cem por cento, — reprendeu a criada.
— Quanto tempo eu fiquei desacordada?
— Um dia, — respondeu Lavine.
— Droga! Obrigado por cuidarem de mim, mas preciso conversar com o chefe da família Hikma agora — disse Victoria, levantando-se.
— Calma, calma, por que precisa falar com meu pai? O que é tão urgente assim que não pode esperar? — Indagava Lavine, tentando impedir Victoria de procurar suas roupas pelo quarto.
— Senhoritas, por favor, basta! — Berrou a criada.
As duas pararam, de frente ao armário, discutindo, Victoria pelejando para puxar seu short da mão de Lavine.
— Você trate de deitar para se recuperar direito. Não me importa quem seja ou o que faz, continua sob meus cuidados. Só levantará dessa cama depois que eu disser que está totalmente recuperada. — Impôs a criada, indo até elas e tomando a roupa das mãos de ambas.
— Quem você pensa que é para…
— Eu sou a governanta desta casa e não vou aceitar insolência de uma jovenzinha. Agora, já para a cama e espere eu servir sua refeição, — ordenou a criada, empurrando-as para longe do armário.
Victoria poderia tê-la derrotado facilmente, sim, poderia, mas sentiu uma fraqueza percorrer seu corpo. A mulher tinha razão, não estava curada, fosse lá o que tivesse. Ela lembrava sua babá, feroz como um urso e protetora como uma loba.
Lavine parecia sem expressão durante a bronca. Victoria obedeceu, mas não sem mostrar uma expressão de desaprovação.
— Vá e informe o senhor Baykus, — Deliberou a empregada para Lavine, que saiu sem dizer uma palavra.
— O que aconteceu comigo? — Perguntou Victoria.
— Você foi envenenada pelo feitiço que atingiu seu braço. — Explicou a governanta.
Victoria observou o braço, cuidadosamente enfaixado.
— Você é bem destemida para uma dama. Posso saber suas intenções com o senhor Hikma?
— Me perdoe, não me entenda mal. Ele é o único que pode ajudar a encontrar alguém importante para mim.
A mulher pegou uma bandeja com torradas e um pouco de leite amanteigado em cima da mesa e trouxe para Victoria na cama.
— Coma, você precisa recuperar suas energias. Assim que estiver completamente recuperada, o Senhor Baykus falará com você de forma apropriada e não quase nua em um quarto.
Victoria sentiu-se envergonhada ao perceber que estava usando apenas uma camisola rosa-claro que mal chegava em suas coxas.
A criada parou na porta e disse:
— E por gentileza, me chame de senhora Marri a partir de agora.
Com a porta fechada, Victoria encontrou-se sozinha no quarto. Ao saborear um pedaço da torrada, percebeu a quão deliciosa estava. Um gole do leite proporcionou uma sensação reconfortante, e por alguns minutos, ela permitiu-se esquecer os problemas.