Isekai Corrupt - Capítulo 54
7º Dia do Oitavo Mês do Ano – 12:15
Ao chegar em casa, avistou de longe os empregados dedicados a seus afazeres diários, movendo-se pelo espaço em um ciclo rotineiro, quase coreografado.
Para eles, cada tarefa era uma parte essencial do ritmo daquela casa; para ele, era apenas o ruído habitual que pouco ou nada o afetava. Com passos firmes, passou pelos corredores sem dirigir uma palavra, ignorando os olhares atentos e indiferentes dos criados.
Era reservado, um hábito seu que logo fora interpretado pelos outros como sinal de arrogância. Mas o que os outros pensavam nunca o preocupou. Ele não ansiava por afeto ou aprovação — a opinião dos outros era um eco distante.
Um raio de sol atravessou uma das janelas do corredor e lançou um brilho tênue nas paredes.
Ele parou, sentindo a luz e o calor em seu rosto, deixando que o instante se prolongasse.
Fechou os olhos, absorvendo o toque do sol na pele, e suspirou profundamente. O dia fora exaustivo, mas ele sabia que ainda não poderia se entregar ao descanso.
Depois de um último instante na luz, abriu os olhos e retomou o caminho, desta vez com a atenção fixada na porta à sua frente: seu escritório.
O ambiente estava impecável, cada canto meticulosamente limpo, mas, ao contrário dos outros cômodos, ali a entrada era restrita. Somente uma pessoa tinha autorização para limpar aquele espaço.
Dentro do escritório, a jovem responsável por esse privilégio finalizava o arranjo dos materiais sobre a mesa.
Raikel, uma Demi-Humana de vinte e três anos, deixara para trás sua vida como aventureira alguns anos antes. Depois de inúmeras missões perigosas e arriscadas, a rotina de empregada parecia quase um retiro pacífico. Afinal, tudo o que lhe era exigido agora era manter o escritório em ordem e assegurar que mais ninguém pisasse ali.
Ela notou sua presença e, como de costume, adotou um tom leve e provocador.
— Senhor, vejo que está de bom humor — comentou com um sorriso atrevido, revelando o típico humor irreverente de quem já conhecia bem seu jeito.
Ele olhou para ela com a mesma expressão imutável de sempre.
— Parece que já terminou por aqui. Peço que deixe o recinto — respondeu, seco e direto, o tom impassível.
Raikel soltou uma risada quase inaudível e deu de ombros.
— Certo, certo. Está tudo em seu devido lugar. Aproveite.
Ela se inclinou em uma breve reverência, pegou seus pertences e, com um último olhar, saiu, fechando a porta silenciosamente atrás de si.
No Reino de Xellivia, onde a convivência entre raças era aceita, embora com certas reservas, raramente se via não-humanos em trabalhos domésticos.
As capacidades físicas dos Demi-Humanos — naturalmente mais robustas que as dos humanos comuns — os tornavam escolhas óbvias para funções de trabalho braçal e proteção, ou, no caso de alguns, para a vida de aventureiro.
Contudo, algumas exceções ocorriam, como no caso de Raikel.
Ela fora selecionada não apenas para manter o escritório do homem em ordem, mas também para defendê-lo, se necessário, com a própria vida.
O homem adentrou seu escritório com um leve bufar, apoiou a bengala em um canto da mesa e se acomodou na cadeira.
Ao sentar, pousou a mão sobre a perna direita, relembrando de forma involuntária um passado distante. Em raros momentos, ainda conseguia evocar vislumbres de quando era criança, um tempo em que seus movimentos eram livres e vigorosos, antes de precisar do apoio constante da bengala.
Para qualquer um que o conhecera então, ele era uma criança perfeitamente saudável, mas o tempo e a realidade se revelaram implacáveis.
De uma das gavetas, ele retirou um pequeno espelho adornado com finos entalhes de prata que formavam nuvens detalhadas, esculpidas com uma precisão quase etérea.
Já está na hora
Abriu um pequeno frasco de vidro de onde puxou um único fio dourado. Era um cabelo, um elo. Com cuidado, depositou o fio sobre o espelho.
— Contatar — disse, num tom grave.
Ao comando, o fio de cabelo ardeu em chamas sutis, desaparecendo em uma leve fumaça.
A superfície do espelho ondulou e transformou-se, revelando outra cena. Através dele, ele vislumbrou um ambiente rodeado de árvores densas. Três túmulos cavados surgiam entre as sombras, e de uma das covas saía uma pá cheia de terra, atirada para fora a intervalos regulares. O som do metal contra o solo ecoava suavemente.
— Lua, consegue me ouvir? — ele disse, sua voz atravessando a ligação.
No mesmo instante, o som e o movimento cessaram. Do buraco, uma mulher loira emergiu em um salto, um sorriso radiante iluminando seu rosto ao avistar o espelho.
— Senhor! — exclamou Lua, pegando seu espelho de contato com a alegria despreocupada de uma criança. Rodopiou com o objeto nas mãos, como se estivesse dançando, rindo com uma felicidade genuína.
— Pare com isso, Lua. Não vá quebrar o espelho de contato — ele a repreendeu, o tom severo..
— Ah! — ela parou de girar imediatamente, fazendo uma careta. — Já pedi desculpas pela última vez, senhor… Não precisa ficar lembrando disso…
— Então seja mais responsável com as coisas que lhe dou — replicou ele, num tom que soava menos como bronca e mais como conselho.
Lua apenas fez um biquinho, parecendo uma criança sendo advertida, mas sem perder o brilho nos olhos.
— Como havia prometido, ligaria após alguns dias. Como está indo a investigação?
Ele sabia que havia enviado a pessoa certa para a tarefa.
Embora Lua tivesse o jeito despreocupado e alegre de uma criança, suas habilidades em espionagem e coleta de informações eram inigualáveis em Xellivia.
Lua não era apenas uma espiã qualquer; ela era a principal informante de sua família, um nome conhecido em círculos da alta nobreza, alguém cujas habilidades de infiltração e observação haviam sido testadas e aprovadas inúmeras vezes.
Mesmo assim, ao ver as covas no local onde Lua estava, um pressentimento amargo o assolou. Talvez ela tivesse encontrado oposição, ou pior, talvez tivesse confirmado seus temores mais profundos.
— Sim! Consegui algumas informações, senhor! — Lua respondeu com sua habitual vivacidade, mas havia algo de pesado em sua expressão que ele não pôde ignorar.
— Ótimo. Então me diga, sem rodeios. — Seu tom firme deixava claro que ela deveria falar sem restrições, fosse qual fosse a gravidade da notícia.
Lua hesitou por um momento, um brilho de tristeza escapou em seu olhar antes de finalmente revelar o que ele já temia.
— O Joe está morto, senhor.
Ele engoliu seco.
Por mais que tivesse suspeitado disso, a confirmação era um golpe que o atingiu como um soco.
Esperança, aquela tênue faísca que ainda mantinha acesa dentro de si, se apagava lentamente, dando lugar ao vazio. Mesmo assim, seu rosto se manteve inabalável, uma máscara fria e impenetrável.
— Entendo — murmurou, a voz baixa. Sua expressão permanecia rígida, mas algo sombrio brilhou em seus olhos. Ele ergueu a cabeça, encarando Lua com um foco intenso. — Lua…
— S-sim, senhor? — respondeu ela, um pouco receosa.
— Quem fez isso? Quem matou meu irmãozinho?
Joe era um espírito livre, um nobre por sangue, mas um aventureiro por escolha.
Este era o quinto ano desde que ele deixara a casa da família, abdicando de sua posição e fortuna para viver da própria habilidade e força.
Quando jovem, o pai deles era um homem frio e implacável, alguém que jamais se deixava impressionar.
Joe sempre quis provar algo a ele, talvez fazer com que se arrependesse das palavras de desprezo que um dia lançara sobre o filho, palavras impregnadas de desgosto e arrependimento.
Mas mesmo depois que o velho falecera, Joe não retornou. Não queria aceitar nada da fortuna que ele tanto desdenhava, recusando qualquer vínculo com aquele que, em vida, o amaldiçoara.
Apesar de entender e respeitar a decisão do irmão, ele insistira em manter algum contato.
Sem Joe, tudo ao redor parecia insípido e distante. Na presença do irmão, ele sentia uma liberdade que raramente experimentava, e os dois combinavam de se comunicar ao menos uma vez por semana.
Mas há meses Joe deixou de enviar notícias. A preocupação logo se tornou urgência, e ele decidiu enviar Lua para descobrir o paradeiro do irmão.
Agora, enquanto Lua entregava a informação, uma raiva fria começava a se enraizar dentro dele, como brasas inflamando de maneira constante e intensa.
— Pelas informações que consegui, foi obra de uma organização criminosa chamada Corrupt — explicou Lua.
— Corrupt? — Ele franziu o cenho.
Havia um responsável, um culpado, alguém que havia tirado a vida de seu irmão.
Ele apertou as mãos com força, tentando conter o turbilhão de emoções que o tomava.
— Parece que seu irmão encontrou uma relíquia de alto rank em uma de suas aventuras. A Corrupt soube disso e matou Joe para ficar com a relíquia.
O silêncio pesava entre eles, até que ele finalmente quebrou a tensão.
— Se você tem toda essa informação, então também tem um nome, certo? — perguntou, o olhar frio como gelo.
Lua assentiu, tentando medir o impacto de suas próximas palavras.
— Sim. O nome do homem que matou seu irmão é Zero. Ao menos, ele estava lá no momento do incidente.
A menção desse nome o fez travar. Zero. O mesmo nome mencionado há poucos meses, em um evento promovido pelo próprio Rei de Xellivia. Era óbvio que havia algo maior em jogo, algo que transcendia meras disputas de poder.
— Como obteve essas informações? — perguntou, sua voz fria, mas curiosa.
— Passei alguns dias na cidade onde Joe foi visto pela última vez. Essa cidade fica próxima de uma floresta habitada por uma comunidade de feras, que recentemente assinou um tratado de paz com a cidade central Uruan. Ouvi relatos de que Zero havia se unido temporariamente aos habitantes da floresta para exterminar uma cobra gigante que ameaçava Uruan. As pessoas ainda falam sobre esse dia, como um evento marcante.
Ele franziu o cenho.
Então, foi uma manobra calculada. A Corrupt queria ser notada, espalhar rumores e fazer com que as pessoas os mencionassem. Inclusive, parece que as informações foram liberadas de maneira estratégica para alimentar o interesse do público.
A confirmação trazia mais perguntas do que respostas. Ele compreendia que a morte de Joe não era um evento isolado; fazia parte de uma teia de intrigas e disputas de poder maior do que se poderia ter imaginado inicialmente.
E agora, tinha em mãos um objetivo claro: caçar cada um dos responsáveis e erradicá-los da face da terra.
— A cidade das feras impõe alguma restrição de entrada?
Lua balançou a cabeça em negativa antes de responder:
— Não, senhor. Desde que o tratado de paz foi firmado entre a cidade das feras e a cidade central de Uruan, as pessoas têm acesso livre à cidade das feras, e de certa forma, elas encontraram uma maneira de coexistir pacificamente.
O simples fato de as feras terem arriscado suas vidas para proteger a cidade central já mudou a percepção que as pessoas poderiam ter sobre elas. Isso não apenas dissipou o receio que muitos tinham, mas também começou a gerar um sentimento de segurança entre os habitantes. As pessoas passam a acreditar que, com essas criaturas poderosas vivendo ao lado delas como aliadas, estão mais protegidas.
Dessa maneira, a sensação de proteção vai se enraizando, e não vai demorar para que se torne algo mais profundo. Uma dependência emocional.
— Então, se quisesse, poderia entrar? — ele perguntou, pensativo, com a mão repousando sobre o queixo.
— S-sim, não vejo motivo para que não consiga. O senhor deseja que eu entre e tente conseguir informações de dentro?
Ele refletiu por um momento. Por mais que estivesse ansioso para saber mais sobre a cidade das feras, hesitava em mandar alguém tão valioso para um território que, talvez, fosse inimigo. A questão o deixava no escuro, especialmente considerando as informações até então divulgadas: Zero teria feito um acordo para obter a relíquia do estômago da cobra e ajudou as feras a se livrarem da criatura.
Ainda assim, ele sabia que não podia considerar esses dados como uma verdade incontestável. Afinal, a organização em questão não passava de um grupo de ladrões e assassinos. Não tinha o luxo de assumir que tudo o que ouviu era absolutamente verdadeiro. E se, na realidade, os animais da floresta estivessem conspirando com a Corrupt? Ou, pior ainda, se fossem parte dela?
Enviar Lua para dentro daquele local poderia colocá-la em grave perigo. Ele confiava em suas habilidades, sem dúvida, mas perdê-la por um excesso de ambição na coleta de informações seria um erro desastroso.
— Faça isso, entre no local e tente obter informações.
Era uma jogada arriscada, mas, se hesitasse, continuaria no mesmo ponto, estagnado. Às vezes, a situação exige que se arrisque, mesmo que as chances sejam baixas.
— Entendido, senhor.
— Retornarei todo dia 1 de cada mês. Não faça nada imprudente, apenas observe os movimentos deles à distância e evite atrair atenção desnecessária.
— Certo.
A conversa se estendeu por mais alguns minutos. Ele deu instruções detalhadas sobre como ela deveria agir e o que poderia fazer, e, logo após isso, a conexão foi encerrada.