Inimigo das Trevas - Capítulo 03
Igor estacou no mesmo lugar. Olhou ao redor e virou-se para trás, chegando ao que parecia ser a beirada daquele lugar. Ao olhar para baixo pôde ver o mar e a praia, só então percebeu que estavam a quilômetros de altura. Ainda não havia compreendido o que acabara de acontecer.
ㅡ Que diabos é isso?!
ㅡ É uma cidade flutuante, só não a vimos de lá de baixo porque é camuflada por magia… ㅡ explicou Alonso encarando o portão a poucos metros de distância. ㅡ Lembra que a princesa retirou a cidade do subterrâneo? Ela colocou aqui em cima…
ㅡ Isso é surreal! Ela parece bem poderosa… ㅡ exclamou Igor enquanto seguia Alonso, caminhando pelo chão pavimentado com pedras retangulares. ㅡ Que tipo de relação você teria com alguém daqui?
ㅡ Sou um conhecido da princesa… E já te disse, viemos buscar sua herança.
ㅡ Espero que essa “herança” seja, no mínimo, um milhão de reais!
ㅡ É melhor do que isso, confia.
Logo estavam de frente para o portão, onde dois guardas vestidos com armaduras de couro sobrepostas por placas metálicas faziam a segurança da entrada da cidade. Alonso tomou a frente e fez uma saudação, imediatamente os homens abriram a entrada para ele.
ㅡ Tá com moral… ㅡ Brincou o sobrinho.
O homem apenas deu um sorriso da brincadeira, se preocupando apenas em guiá-lo pelas ruas movimentadas da cidade, que não economizava em beleza, arrancando suspiros do rapaz a cada esquina que viravam.
As casas, no estilo barroco, tinham todas as estruturas metálicas feitas de ouro, dando ao lugar um ar elegante, os comércios tinham placas brilhantes douradas, e até as roupas dos habitantes do local eram repletos de detalhes feitos do precioso metal. Diversos vendedores estavam em meio à rua, anunciando os mais variados produtos a plenos pulmões.
ㅡ Oia o tapete! Os mais bonitos da cidade!
ㅡ Pode chegar, madame! Aqui na minha mão é mais barato!
ㅡ Esse lugar é incrível… ㅡ exclamou Igor.
ㅡ Não se distraia, esses vendedores estão só esperando um trouxa para extorquir. Apenas me siga ㅡ explicou Alonso enquanto desviava de um homem a vender bijuterias.
Igor assentiu e o seguiu até chegarem num castelo localizado no meio da cidade, o local era enorme e se destacava mesmo em meio a tantas outras construções. Alonso dirigiu-se até onde três homens montavam guarda e o mesmo processo se repetiu, entrando no castelo com extrema facilidade.
Um homem de meia-idade e expressão fria os recepcionou, guiando-os com extrema rapidez pelos corredores iluminados por lampiões. Segui-lo sem o perder de vista era uma tarefa quase que impossível.
ㅡ Vou levar vocês até o quarto onde passarão a noite ㅡ explicou o mordomo sério. ㅡ Desculpe, Sr. Alonso, a princesa é uma menina gentil, mas sabe o regulamento dela…
ㅡ Sem problema, Miguel. Eu pagaria a quantia que fosse só para deitar numa dessas camas de vocês novamente, e olhe só, vou dormir de graça!
O guia deixou escapar um sorriso discreto e parou em frente a uma porta de madeira avermelhada, o grupo finalmente havia chegado ao quarto onde eles ficariam. Dois carregadores que vinham com as malas dos visitantes chegaram logo atrás e posicionaram as bagagens próximas aos seus donos, saindo em seguida.
ㅡ Obrigado pela compreensão, amanhã a princesa conversa com vocês ㅡ disse o mordomo e fez uma longa pausa, continuando sua fala em seguida. ㅡ Ah, e por favor, não saiam do quarto até o amanhecer…
Eles concordaram e sem demora adentraram o quarto, se deparando com um recinto luxuoso. Igor jogou a mala num canto e caminhou até a janela mais próxima, de onde podia ver parte da cidade e o céu noturno. Em seguida se virou para o tio e indagou:
ㅡ Não podia falar com ela hoje? Não que eu esteja reclamando…
ㅡ Não depende de mim, estamos nos domínios dela, o mínimo de respeito que podemos demonstrar é obedecer suas regras.
ㅡ Se você diz… Yawh! Vou tirar um cochilo, não me acorde tão cedo! ㅡ falou e saltou sobre a imensa cama coberta com lençóis macios, afundando o rosto no travesseiro.
ㅡ Como quiser, vossa belezura! ㅡ disse Alonso rindo e se jogou na cama, adormecendo rapidamente.
******
O dia seguinte começou com um feixe de luz atravessando o pequeno espaço entres as cortinas e atingindo o rosto de Igor, fazendo-o acordar. Com um salto ele se ergueu da cama.
A última vez que dormira tão bem foi… nunca! Nunca acordara com tanta disposição na vida. Apesar de ouvir alguns ruídos estranhos, a cama confortável parecia ter sumido com todo seu cansaço acumulado.
ㅡ Aí, velho, bom… dia?! ㅡ Ele olhou para a cama ao lado, mas já estava vazia. Procurou pelo quarto, mas nada do seu tio. ㅡ Ele já saiu?! E sem mim!
Igor tomou um banho rápido e trocou de roupa, vestindo uma camiseta e uma bermuda jeans. Em seguida saiu caminhando pelos corredores, sem nem saber onde procurar Alonso.
A cada corredor que virava, o castelo mais parecia um labirinto, e nenhum empregado à vista para lhe dizer onde ficava a sala da tal princesa. Pelas paredes, hora ou outra via algum quadro ou arma, como lanças, espadas empoeiradas, escudos de pele animal; mas nunca retratos e pinturas de pessoas.
Sem saber para onde continuar, ele parou e colocou a mão sobre a cabeça, então se deparou com uma enorme porta de madeira semi-aberta.
Sem outra alternativa, entrou por ela e se viu em um salão gigantesco que, diferente do restante do castelo, tinha o chão de madeira, além disso, possuía uma arquibancada em cada lado e um tatame no meio.
ㅡ Aqui deve ser onde eles realizam espetáculos ou algo do tipo ㅡ concluiu ele.
ㅡ Não, besta… aqui é onde eles fazem tricô! ㅡ Uma voz desconhecida falou e Igor girou tentando identificar de onde ela vinha. ㅡ Aqui, cego!
Foi então que um garoto saiu de trás de uma cortina com um sorriso debochado no rosto, não devia passar dos quatorze anos de idade. Ele vestia uma calça azul, camisa social e calçava uma bota longa. Em suas mãos carregava uma pequena adaga.
ㅡ Que é que tu quer aqui, pivete? ㅡ indagou Igor, analisando o menino da cabeça aos pés. ㅡ Crianças não deviam brincar com faca, sua mãe não te ensinou?
ㅡ Não sou um pivete! E meu nome é Raoni! ㅡ falou ele e colocou a língua para fora. ㅡ E eu que te pergunto, tua mãe Kerana não te ensinou a perguntar o nome dos outros quando conhece alguém?
Igor esboçou uma cara de espanto, em seguida trincou o maxilar, em menos de dois minutos de conversa aquele moleque já havia lhe irritado mais do que seu tio em um dia inteiro. Além de zombar de sua cara, havia tocado num assunto delicado: sua família.
ㅡ Como sabe o nome da minha mãe?
ㅡ Tem quem não saiba? Todo mundo conhece a história de Kerana, a mulher que se envolveu com um demônio!
“Ele está falando do meu pai? Não pode ser, ele não era nenhum demônio, não pelo o que eu saiba…”, ele refletiu.
Igor fechou os punhos, já sem um pingo de paciência. Porém, para sua surpresa, o garoto se colocou em posição de luta, com a adaga apontada na sua direção.
ㅡ Acha que eu não sei me defender? ㅡ O menino riu e deu um passo à frente. ㅡ Vem pra cima!
Antes que tomasse qualquer atitude, passos apressados ecoaram pelo corredor e duas pessoas entraram no salão, chamando a atenção dos dois ali presentes.
ㅡ RAONI! ㅡ gritou uma voz feminina num tom de irritação, mas também carinhoso. ㅡ Estava te procurando, bonequeiro!
Igor se virou e viu o garoto correr para os braços de uma moça jovem, abraçando-a. A mulata tinha cabelos curtos e encaracolados, olhos castanhos e trajava um vestido longo e simples, sem muitos detalhes. Ao lado dela estava Alonso, que carregava algum objeto nas mãos.
ㅡ Onde estava? Nem me acordou para ir com você! ㅡ indagou Igor logo de cara.
ㅡ Ué, você disse que não queria ser acordado tão cedo, então fui sozinho…
O rapaz não acreditou nem um pouco na desculpa esfarrapada do tio, ele poderia muito bem ter lhe acordado, seus pedidos nunca foram acatados por Alonso antes. Por hora, resolveu não começar uma discussão.
ㅡ Tá certo… então já está terminado?
ㅡ Claro! E queria lhe apresentar: Vossa Majestade, Elizabete!
Igor encarou a moça mais uma vez, nem sequer notara que ela era a princesa, o ar de simplicidade que ela emanava jamais daria essa impressão. Além do que, ela era calma e simpática, diferente do que pensara. O rapaz fez uma reverência, mas logo foi interrompido por ela.
ㅡ Sem formalidades, todos nos conhecemos aqui. Prazer, Igor! Pode me chamar só de Bete!
ㅡ Nos conhecemos?
ㅡ Sim, mas foi quando tu ainda era um bebezinho, então você não deve se lembrar ㅡ explicou ela com um amável sorriso.
Bete estendeu o braço e o rapaz concluiu o aperto de mãos. Só então ele notou a aspereza nas palmas das mãos da jovem, além disso, via-se algumas escamas pelos seus braços e pescoço, misturados à sua pele.
ㅡ E aliás, aqui está… ㅡ Alonso os interrompeu, finalmente mostrando o objeto que carregava e jogando-o para o sobrinho. ㅡ Sua herança!
Igor agarrou, analisando com atenção o graveto do tamanho da sua mão, a madeira era lisa e vermelha e tinha algumas palavras talhadas em sua superfície.
ㅡ Um graveto?! O que eu vou fazer com isso?!
ㅡ Leia o que está escrito!
ㅡ Liberta quae sera tamen…
“Liberdade ainda que tardia”, o rapaz leu a tradução da frase mentalmente.
Assim que terminou de ler a frase, o graveto começou a aumentar de tamanho, tomando uma coloração metálica e mostrando sua verdadeira forma: um sabre reluzente levemente curvado e com a empunhadura de ouro. Igor encarou aquilo estupefato, podia sentir a energia que emanava da arma percorrer seu corpo.
ㅡ Pertencia ao seu pai… quando ele morreu eu a peguei e trouxe aqui, onde pedi à princesa para reforçá-lo e adicionar alguns encantos especiais ㅡ explicou Alonso com um sorriso orgulhoso no rosto. ㅡ E aí, vai testar ou não?
ㅡ Valeu, tio. ㅡ Igor agradeceu e encarou a lâmina, parecendo estar hipnotizado. ㅡ Mas contra quem eu vou lutar?
ㅡ Contra o Raoni, ora! É bom para ele também, servirá como treino ㅡ falou a princesa, sorridente. ㅡ O que acha, curumim?
ㅡ Só se for agora!
Igor encarou o indiozinho que estivera estranhamente quieto durante toda a conversa, certamente por causa da presença da princesa. O moleque agora lhe direcionava um olhar desafiador.
ㅡ Tem certeza? Não quero machucá-lo… Não vou pegar leve só por ele ser uma criança.
ㅡ E nem deve! Ele não é uma criança normal. No bom sentido… ㅡ explicou Alonso, se direcionando junto à princesa para as arquibancadas. ㅡ Ele espancou o líder de sua aldeia uma vez, e a punhos vazios…
ㅡ Não vai arregar, hein! ㅡ O garoto provocou.
ㅡ Até parece!
Sem demora, Igor seguiu o garoto até o enorme tatame. Os dois tomaram distância e colocaram-se em posição de luta. O rapaz empunhou o sabre, estendendo o braço e colocando a lâmina na vertical, era a primeira vez que usava a arma, mas sentia uma confiança enorme. O garoto sacou a adaga, segurando-a próxima ao corpo, sem tirar aquele olhar.
ㅡ Lembrem-se, é apenas um combate amistoso! ㅡ Alonso avisou da arquibancada. ㅡ Agora, COMECEM!!!