Impuro Sangue Real - Capítulo 2
Com um simples feitiço, por trás das cortinas, é possível ver o público, mesmo que elas estejam fechadas. Todo mundo sabe fazer esse, todos menos eu.
― Está lotado! ― exclamou a voz animada de uma criaturinha menor que a palma da minha mão, voando ao meu redor e puxando alguns fios soltos da roupa que eu usava. ― Não precisa ficar nervosa.
O nome dessa pequena criatura é Triket. Ela é uma fada, com a pele naturalmente cintilante em um tom bronzeado muito bonito, com brilhos dourados que escapam pelo ar, mas quase não dava para ver seu rosto, pois estava sempre em movimento. Embora eu soubesse que o contorno de seu corpo era semelhante ao de uma boneca de cera sem vestes, mostrando apenas sua silhueta. Fadas pequenas, como ela, não ligavam para isso e, apenas ocasionalmente, vestiam roupas para se enfeitar.
― Eu não estou nervosa ― respondi rapidamente, procurando acompanhar o movimento da fadinha de luz. Não havia outra maneira de descrevê-la, era como um ponto de luz veloz que passava de lá para cá, praticamente impossível de se acompanhar. Sou a prova disso, já tentei esmagar aquele ser irritante como um inseto algumas vezes antes de continuar a falar. ― Você é quem está me estressando!
― Ah, por favor. Você sempre quer me matar. ― Ela voou certeiramente e bateu em meu rosto. A fadinha não tinha força, mas espalhou um pó pelo meu nariz e eu não contive o espirro quando ela se afastou. ― Eu só estou aqui para te ajudar, sua ingrata!
― É que eu não consigo me conter… sempre tive vontade de experimentar uma fada, dizem que tem um gosto ótimo ― falei enquanto me preparava para pegar a pequena criatura.
Pela primeira vez hoje, consegui ver seu rosto, os olhos verdes mais claros que os meus piscavam confusos em meio à informação que eu acabara de inventar. Se ela ficasse um pouco mais parada, eu finalmente conseguirei pegá-la.
― Fora as propriedades mágicas que possuem, já pensou que podem ser absorvidas a partir de uma bela sopa? ― Saltei em direção a ela e não consegui pegá-la por um triz. ― Ou um cozido.
― Que louca! ― seu grito era fino, ela disparou voando entre minhas pernas, quase me fazendo cair. ― Que louca, que louca! ― repetia, voando para longe, e eu não consegui conter a risada.
Aqui, todos os seres vivos, desde fadas, duendes, diabretes até plantas e animais, possuíam magia. Contudo, embora eu tivesse certeza de que pertencia a esse mundo, não importa o quanto tentasse, não conseguia produzir nada de incomum. Então, fazer uma sopa de fada para tentar absorver a magia de seu corpo… não era uma ideia absurda. Eu só precisava de uma fada para tentar essa minha ideia.
― Você usará suas orelhas? ― perguntou o elfo se aproximando, seu tom sério e o olhar de soberba não me impressionavam nem um pouco. Esse era Markson, filho do dono de tudo em que estou pisando, o Sr. Musk Arlon. Um Elfo animado que estava do outro lado das cortinas, fazendo sua apresentação.
O filho, que era apenas sessenta anos mais velho do que eu, consideravelmente jovem em comparação aos outros seres deste lugar, tinha tanto a aparência quanto o comportamento de um adolescente mimado. Nariz empinado, o topete loiro mais ensebado do que os pratos da cozinha, tão armado que entregava ao elfo facilmente três centímetros de altura, o que era de suma importância para o seu ego.
Markson era baixo, não chegava nem a um metro e meio de altura. Já eu, com meu pequeno salto preto, ultrapassava pelo menos quinze centímetros da altura dele. Talvez por isso ele não gostasse de mim.
― E o que importa? ― questionei, ignorando-o, enquanto me olhava no espelho. Arrumando a tiara mágica em minha cabeça. O acessório camuflava as minhas orelhas mundanas e as transformava em algo mais encantado. Um par enorme de orelhas de rato descansava no topo da cabeça. Eu queria escolher as orelhas pontudas de elfos e feéricos de alta classe, as fofinhas de coelhos e cachorros, ou as estilosas de raposas e gatos. No entanto, essas opções são caras, então já deveria agradecer por ter um acessório desses.
O mundo mágico não é como os contos de fadas descrevem em nossa infância; é repleto de maldade e deslealdade para os mais fracos. Quando chegamos aqui, a primeira coisa que ouvimos é “esconda-se“, não seja percebido ou notado. Não seja diferente… humanos são diferentes, e, quando não têm poder, como as bruxas ou os feiticeiros, só sobrevivem no mundo mágico caso sejam escravos ou criados. Então não se pareça com eles, é mais fácil assim.
― Sempre fico impressionado do quanto elas combinam com você ― falou Markson em um tom arrogante, fitando-me de cima a baixo. ― Ratinha.
Não consigo evitar fazer careta. Eu nem sequer me dei o trabalho de encará-lo, observava tudo pelo reflexo do espelho e antes de responder ao garoto, dei um pequeno giro, satisfeita com minha aparência. Minha roupa entregava sem nenhum pingo de sutileza três tons: vermelho, preto e branco. A única peça realmente bonita era o espartilho preto que usava na cintura; as mangas da minha blusa eram bufantes, tudo para combinar com o short no mesmo estilo espalhafatoso. A meia calça ia até a metade da coxa e era de duas cores, uma totalmente vermelha e outra completamente preta.
― Também me impressiono pelo fato de tudo ficar bonito em mim ― respondi, arrumando mais uma vez o colarinho branco em volta do meu pescoço. ― E desta vez nem estou fazendo graça.
― Hunf… ― Ele soltou seu ar insolente próximo a mim. Mais uma vez, uma careta transpareceu em meu rosto. ― Estou aqui porque papai disse para você tentar segurar por mais trinta segundos.
― TRINTA SEGUNDOS? ― gritei, espantada. ― O que ele acha que eu sou? Diga a ele que será o tempo de sempre.
― Estamos com a casa lotada, é uma oportunidade rara.
― Conta outra.
― Tem gente nobre na plateia ― murmurou e minhas orelhas mexeram entusiasmadas. ― No canto direito, olhe.
Ele disse e encarei o tecido velho e vermelho, sem enxergar nada do outro lado.
― No topo da plateia, um nobre, um cavalheiro e seus guardas, cinco no total ― disse Markson, percebendo minha confusão.
― Será difícil… ― comentei, estalando a língua. Os guardas podem ser mais suscetíveis, mas os cavalheiros são mais vigilantes. ― Se eles perceberem, estaremos ferrados! Seremos mortos pelo novo rei.
― O novo rei tem novas preocupações ― comentou Markson com um ar risonho. Desde que o novo rei assumira o trono, tudo estava um desastre.
O continente da Lua era o mais rico entre os cinco continentes que compõem o mundo mágico. Até então, era considerado um único reino com diversas cortes e cruzava a terra mágica em ambos os hemisférios, norte e sul. No entanto, o clima parecia estar se deteriorando, empobrecendo cada vez mais.
O novo rei Zilo parecia um péssimo administrador. Ele não se importava com o povo distante da capital, assim como nós. Mesmo após cinco anos da conquista da terra, vivíamos em constante guerra, com lugares inabitados e ataques de outros continentes. Zilo era poderoso, mas seu poder ainda era instável; não era possível prever até quando isso permanecerá assim.
― Faça o seu melhor, quero o colar que ele está usando ― disse Markson, apontando para o topo, como se eu pudesse enxergar através da cortina. ― A réplica está até pronta.
― Me deixe examinar o colar antes de vender, se for um item mágico, eu posso extrair a magia.
― Não pode nada, é mais fácil fazer a sopa com a Triket. ― Ele sorriu sarcástico, cruzando os braços.
Não queria responder à sua implicância, mas precisava dizer algo para que ele se afastasse.
― Quem disse isso? ― perguntei, procurando por algo que estivesse à minha altura, já que precisava abaixar a cabeça para falar com o pequeno.
― Sua ridícula ― resmungou com raiva, distanciando-se. Ele odiava quando o chamavam de baixinho, mas eu não estava me referindo a ele assim… Pelo menos não diretamente.
Soltei um suspiro e voltei minha atenção novamente para o espelho. Era verdade, estou tentando há anos extrair magia para mim e não consigo fazer nada parecido. Aparentemente, não tenho poder algum. Mas sei que não sou humana, vivi com os humanos e tudo o que sei é que não sou parecida com eles. Sou um ser mágico, mas não consigo praticar nada que envolve magia, nem mesmo os feitiços mais simples que uma criança desse mundo conseguiria fazer. Já vi humanos bruxos mais poderosos do que eu, e qualquer um de fora poderia me julgar com certo preconceito, se não fossem as minhas orelhas.
Humanos não possuem a mesma imunidade que eu à maioria dos feitiços naturais. Eu só não consigo usar magia… algo que, por mais que tente, não consigo explicar. Há dez anos, acordei em um buraco. Quando finalmente consegui sair, descobri que estava em uma casa abandonada, caindo aos pedaços no meio de uma floresta.
No mundo dos humanos, sou uma estranha; a magia no mundo mundano é sempre disfarçada, há criaturas mágicas nele, mas se você é uma simples humana, não deveria conseguir enxergar nada disso. O problema é que, mesmo após ser encontrada e levada para o mundo mágico, eu ainda me sentia uma estranha. Tudo porque não sei quem sou e os únicos objetos que me trazem a lembrança de quem sou são meu colar, com o nome talhado a ouro, e um livro de poções, que só eu consigo ler… ou conseguia. Hoje, o livro está tão rabiscado que qualquer um que o pegue consegue identificar e fazer uma poção.
― Espere, espere, espere!!! ― exclamou o Sr. Fixer, um homem baixinho e gordo, de pele tão rosada que parecia um chiclete. Ele era o responsável pelos figurinos de todos e, embora sempre parecesse estressado, procurava dar o seu melhor em qualquer pedido que fizéssemos. ― Com esse colarinho, você ficará parecendo uma palhaça. Não está certo, querida.
O colarinho era tão grande que seria mais discreto usar uma melancia no pescoço. Cheio de babados, mal podia ver meus pés se olhasse para baixo. Contudo, a intenção do espetáculo era chamar a atenção e eu pensei que corresponderia.
― Quando eu pegar a Triket, eu realmente vou devorá-la ― concluí. A fada nunca me ajudou; eu deveria ter desconfiado quando ela se ofereceu para arrumar as roupas.
ㅡ Esse é o correto! Bem mais delicado, viu? ᅳ perguntou enquanto me ajudava a colocar a peça fina no pescoço, amarrando a gravata que dava uma elegância estranha para a roupa chamativa. ㅡ Para a próxima apresentação, vou desenhar um vestido para você… alguma sugestão?
ㅡ Hum… ㅡ Um sorriso sapeca surgiu no meu rosto enquanto pensava. ㅡ Por favor, faça algo que chame atenção, mas não seja ridiculamente espalhafatoso, como esta aqui.
ㅡ Oh, sua pestinha, está chamando minha criação de ridícula?
ㅡ E espalhafatosa. ㅡ Completei, mas antes dele conseguir me bater, escutei meu nome sendo chamado. Chegou a hora da minha apresentação.
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Antes de começar, soltei um suspiro. Sentia o coração acelerar, mesmo sem estar nervosa. Ficava animada sempre que estava prestes a entrar no palco. Então, abri um grande sorriso e entrei com o pé direito no centro daquele enorme circo. Eu não precisava falar alto, não precisava de microfone, tampouco de intérpretes. A magia intrínseca ao ambiente desempenhava seu papel de maneira impecável.
ㅡ Senhoras e senhores, agradeço imensamente por chegarem até aqui ㅡ enquanto proferia as palavras, contornei o espaço, marcando a minha presença elegantemente e acenando em resposta aos aplausos respeitosos que ecoavam. ㅡ Sou a Társi e serei eu a conduzir o espetáculo.