Impuro Sangue Real - Capítulo 14
O comércio de Tântalo não passa de uma coincidência de rotas. Não é famoso e dura umas duas horas; às vezes, passam meses sem existir, o que torna tudo um pouco instável. Contudo, é antigo e tem suas próprias tradições, por isso persiste ao longo dos anos.
Enquanto ando sozinha para ver o que as barracas têm a oferecer, tenho a impressão de que serei enganada por não conhecer nada, e, para piorar, sinto que, desde que me afastei do senhor Musk Arlon e da senhorita Flinner, estou sendo seguida.
Passei a mão sobre a cabeça várias vezes, apenas para ter certeza de que as orelhas estavam presentes. Não há humanos vagando entre os feéricos. Humanos sem donos são rapidamente sequestrados; é quase como se sua existência significasse “mão de obra gratuita”. Não há leis que os protejam no Continente da Lua, e, em um mundo acabado como esse, a última preocupação seria em preservar uma espécie invasora.
O fato de estar em um comércio implicitamente ilegal não me agrada, mas… é a oportunidade que conta! E preciso superar essa agonia. Talvez esse sentimento de ser perseguida seja apenas os cidadãos da cidade me encarando com os olhos grandes e esbugalhados.
Seguindo as instruções do casal mais velho do circo, encontrei uma barraquinha com joias belíssimas da região Leste do Continente da Lua. Contudo, o que realmente me fez suspirar foram as variedades de ingredientes que o dono também vendia.
— Céus… — suspirei com um sorriso no rosto, passando os olhos em alguns produtos que pensei que nunca teria acesso. — Há palha de Hassion aqui.
Esse tipo de palha é rara; até achei que essa gramínea havia deixado de crescer no continente. A cor rosada que possui é inconfundível. É um ingrediente famoso na confecção de perfumes, mas lembro que a primeira vez que li sobre ela foi no meu grimório, na parte que ensina a fazer a famosa poção do amor.
— Hum… vejo que temos uma cozinheira aqui. — disse um velho com orelhas parecidas com as minhas, mas com um nariz redondinho que o deixava parecendo um rato de verdade.
— Não acho que ninguém se atreveria a comer nada que eu preparasse. — comentei, respondendo com um sorriso.
Os cozinheiros eram como os mestres de poções eram chamados e fico feliz pelo elogio.
— Eu me chamo Morkie. Por estar de bom humor, farei uma promoção digna — disse o senhor, apontando para os ingredientes. — O que está procurando?
Não consegui conter os pulinhos de alegria quando escutei as palavras do feérico. Então, subitamente, a emoção acabou e eu o encarei sem conseguir esconder a desconfiança no olhar.
— O que foi? — perguntou Morkie.
— Desculpe a sinceridade, mas não estou acostumada com gente boazinha do nada — respondi séria, e o senhor da feira gargalhou de maneira fofa e baixinha.
— Está certa, está certa! — Ele apontou para mim enquanto falava. — Eu só quero vender meus produtos, mas eu gostei realmente de você, estou dizendo… bem, talvez não sejamos parentes? Você lembra a mim, quando eu era mais jovem.
— Está falando isso por conta das orelhas parecidas ou por conta de outra coincidência em nossa aparência?
Procurei algo mais que a gente se assemelhasse e falhei na busca. Se a única semelhança entre nós fossem as orelhas, então era tudo falsidade, mas ele não precisava saber disso. A vantagem de usar o acessório na cabeça é que desconhecidos não sabem que estou usando algo assim.
— Eu concordo, devemos ser parentes, afinal, no quesito beleza somos bem parecidos mesmo. — Estendi a mão para o senhor Morkie, retribuindo sua gentileza, mesmo que de maneira mentirosa. — Me chamo Társila! Quem sabe o senhor não seja algum primo ou tio distante.
Ele ficou grato pelo elogio e me contou sobre os inúmeros parentes que tinha por parte de mãe, e as centenas de primos por parte de pai. Pelos cálculos, posso mesmo ser parente dele. Acho até possível que todos da feira sejam.
Então, após olhar cautelosamente ao redor da barraca, mostrei o colar de joias esverdeadas roubado. Tanto o senhor Musk quanto a senhorita Flinner mencionaram que, se eu quisesse trocar algo sem me preocupar, esse seria o lugar.
— Isso não é seu… — comentou o senhor Morkie, analisando o objeto minuciosamente.
— É meu agora — disse com certa ansiedade na fala, ficando na ponta dos pés para ver o que ele estava fazendo atrás do balcão, embora soubesse que ele estava apenas verificando a originalidade do objeto. — Importa mesmo de onde ele vem?
— Se você não perguntar como eu consegui os meus produtos, eu não pergunto dos seus — brincou o feérico quando me devolveu o colar. — Sendo sincero, acaba perdendo um pouco o valor por conta da mão de obra que vamos ter após a compra… acontece que esse colar pertence à Corte de Pinus, do Sul do Continente da Lua. Se eu deixar a amostra assim… não vai dar certo, não passará na primeira fiscalização comercial. Terei que desmontar e criar peças originais e isso é caro, mesmo que depois eu revenda…
Ele continuou falando, algo sobre gastar dos próprios recursos para fazer isso. Mas minha mente havia desligado, meus ombros aos poucos foram encolhendo, acompanhando cada notícia desagradável que saía da boca do feérico.
— Ah… Então não vale muito? — Deixei escapar um suspiro de derrota, cansada de escutar os problemas que aquela joia inútil possuía.
Markson ainda queria deixá-la exposta para todos. Os guardas da Corte de Pinus arrancariam sua cabeça em praça pública se pegassem o elfo ostentando o colar roubado. Deveria ter deixado com a joia, assim pelo menos teria um bom espetáculo.
Pensando bem, eu nem sei se o que o rato na minha frente estava falando era verdade, mas agora era tarde para fingir que sabia o que estava fazendo. Se fosse para ser enganada, pelo menos o comerciante era simpático.
— Deve valer uma miséria… ou se vale muito, eu não posso vender — concluí de maneira precipitada, bufando as palavras entre os dentes, sem esperar a resposta do feérico.
— Não disse isso… — comentou com um largo sorriso, virando de costas e separando vários produtos de sua loja. — Só que se jogar o preço tão baixo assim, não vai conseguir nada.
— Eu sei disso… mas não venha com sermões, você que me encheu com os problemas que esse colar possui. — comentei, enquanto observava curiosa as coisas que o feérico separava.
Um punhado de castanhas azuis e diferentes sementes, não consegui reconhecer quase nenhuma. Ele pegou três frascos com líquidos dos quais ainda não sabia a composição. E, para finalizar, uma porção generosa da palha que eu havia comentado também. Juntou tudo em um saco e acidentalmente deixou cair algumas outras coisinhas, fingindo ser um grande desastrado e soltando uma risada contagiosa de rato.
— Eu sabia que se irritava fácil — disse o senhor Morkie, quando se voltou para mim. — Isso é um gene da nossa família… mas fiz terapia, deveria fazer o mesmo.
— Ah, não me diga… — o tom irônico escapou da minha boca, embora eu estivesse verdadeiramente começando a acreditar que éramos parentes, ele parecia ter gostado de me irritar. O mesmo prazer que eu tenho de irritar os outros. — Isso explica muita coisa sobre mim.
— Aqui, querida. Garanto que não vai conseguir uma oferta melhor, e… — comentou o rato, entregando o saco. — Vou entregar estes dois também… aposto que vai ficar mais bonita com este, mas vai gostar mais desse.
Ele estava certo. Morkie apontou primeiro para um broche dourado em forma de cristal e depois para um livro de poções novo. Folheei rapidamente o livro; as poções pareciam mais fáceis de preparar do que as do grimório.
— Mas o broche tem seu valor também e pode até surpreender…— pontuou o rato, enquanto eu já estava ignorando o acessório de roupa.
Talvez entregasse para o Markson, embora não merecesse; ele gostava dessas coisas chamativas mais do que eu. Ou talvez apenas usasse e o exibisse em meu peito, só para ver sua cara furiosa por não ter nada parecido. Sim, isso seria engraçado.
— Olha só isso… — comentei, voltando minha atenção para o livro após guardar o objeto, folheando mais algumas páginas.
Não parecia real. Estaria sendo enganada de alguma forma? Talvez eu tivesse aceitado por menos. Não fazia ideia do valor que o colar possuía, e não podia ficar mostrando o objeto para qualquer um, afinal, ele era roubado.
Entretanto, o senhor Morkie parecia alguém realmente simpático. Vult uma vez me contou que antigamente no Continente da Lua existiam muitos seres generosos, até mesmo entre os comerciantes, mas no mundo em que vivo é difícil de acreditar nisso. Só que… quando olho mais uma vez para o ser com aparência fofinha de rato na minha frente, não consigo me sentir enganada.
— Eu queria poder presentear com mais coisas — disse o ratinho cabisbaixo. — Os negócios não andam bem, nem por aqui.
— Obrigada… muito obrigada! — escapou genuinamente da minha boca, eu queria expressar melhor o agradecimento, mas nem sei se um dia nos encontraríamos de novo. — Mas eu estou pagando por esses itens.
Esbocei um sorriso debochado ao entregar o colar para o velho rato. E, após mais alguns papos aleatórios sobre o quanto eu me pareço com uma sobrinha trambiqueira dele, me despedi do senhor Morkie.
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Hoje é um daqueles dias em que parece que tudo vai dar certo. No entanto, por algum motivo, ainda sinto os olhares sobre mim. Vasculho cada canto, procurando o elfo e a fada. Já resolvi o que precisava, agora só quero voltar para o restante do grupo, mas não os encontro.
Enquanto caminho sem rumo pela feira, que não tem o mesmo número de gente que antes e estava cada vez mais vazia, penso que talvez seja melhor esperar no acampamento.
— Ameera? — perguntou um desconhecido com quem esbarro. Seu olhar tão perdido quanto o meu.
Era um dos visitantes do início da feira, aquele que camuflava a cabeça com um capuz e o rosto com uma máscara, mas seus olhos ainda estavam visíveis.
— Do que me chamou?
Mesmo com a máscara, seus olhos revelavam muita coisa, e consigo enxergar a confusão em sua expressão, talvez porque ele simplesmente não parava de me fitar. Naquele momento, em que não consegui respostas para minha simples pergunta, senti como se uma energia estranha nos envolvesse.
— Que foi? — perguntei, recuando, mas levantando o queixo, sem me agradar do bizarro silêncio que havia nos cercado.
— Eu acho… eu acho que me confundi. — disse o rapaz, assim que levantou o olhar para as minhas orelhas e depois desceu para o restante do meu corpo. Sua expressão mudou para desinteresse.
Quando ele se virou, uma mecha de cabelo branco parecia brilhar em contraste com a escuridão que o capuz tentava proporcionar. Por impulso, segurei seu braço imediatamente, impedindo-o de se distanciar.
— Achei você! — Não consegui conter o sorriso quando percebi que estava diante do príncipe.