Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 20
O Capitão-Tenente César Cândido fumava um cigarro, enquanto conversava com um subordinado carregando uma bolsa.
— Essas nuvens estão me deixando incomodado… talvez seja melhor a caravana partir amanhã.
— Já está quente de manhã cedo, me parece difícil ficar melhor que isso, senhor — respondeu um jovem vestido em um uniforme parecido com o de César, com diferenças apenas nos símbolos que representavam a sua patente de guarda-marinha, uma patente dedicada àqueles que estavam se preparando para virar oficiais.
Mesmo após a fala de seu auxiliar, o oficial continuava encarando o céu em direção ao Rio de Janeiro. Uma faixa cinzenta de nuvens, carregadas pela brisa marítima, se estendia pelo horizonte visível.
Após uma profunda tragada, apontou para as árvores. — Os pássaros já se recolheram, eles sabem quando vai chover.
O suboficial, recém saído da academia e com recém-feitos 20 anos, ficou refletindo após o comentário. Existiam coisas que só se aprendiam na prática — e isso fazia toda a diferença, principalmente prevendo uma tempestade em alto-mar.
— A última carroça tá pronta! — Um marinheiro negro gritou do final da extensa fila de carruagens, cavalos e pessoas que aguardavam para sair do acampamento.
Havia doze veículos, levando pelo menos oito passageiros em cada, totalizando mais de cem indivíduos. Diferente do convencional, essas carroças eram bem grandes e contavam com bancos relativamente confortáveis e uma cobertura para os passageiros.
O fato de que a maioria dos acampados previstos na criação do lugar eram pessoas com dinheiro, vindas de famílias importantes e com conexões na política, garantiu que as condições em geral fossem bem melhores que o padrão
Devido ao perigo, César pediu para que o grupo se dividisse entre a primeira e a última posições da fila, então decidiram entre eles que Lucas iria na frente.
O Capitão-Tenente jogou seu cigarro no chão e pisou para apagar a brasa.
— Acho que agora não temos mais escolha. Garanta que a mensagem chegue até a cúpula de comando da Marinha, Guarda-Marinha Nicolas.
O jovem assumiu a posição de sentido e prestou continência, César devolveu a saudação e dispensou seu subordinado, que partiu para a primeira carruagem da fila.
Na primeira posição da caravana, dois cavalos de pelo negro aguardavam amarrados a uma carruagem de madeira escura. Uma tenda branca cobria o espaço destinado aos passageiros e suas bagagens.
O Suboficial parou ao lado dos cavalos e olhou para o rapaz de cabelo castanho sentado no banco do cocheiro, ao lado dele um Winchester 1907.
— Cadê o responsável pela condução? — Nicolas olhou para o sabre preso na cintura da figura à sua frente e complementou: — Você deve ser o tal do Lucas, correto?
— Eu mesmo. O César pediu para assumir a dianteira já que eu tenho experiência com cavalos.
O rosto do Guarda-Marinha se contorceu, o incômodo dele era visível para qualquer um que olhasse. — Acredito que o lugar à direita na condução seja meu, já que sou seu superior.
Cruzando as pernas, Lucas respondeu secamente: — Eu me voluntariei pra ajudar no acampamento, mas não sou um membro da marinha.
“Esse é o problema, desgraçado. Anda por aí com um sabre de oficial, que eu sequer tenho permissão de ter, carregando um rifle municiado e até assumindo a primeira posição da caravana… parece até que se acha melhor que eu.”
Enquanto Nicolas pensava nas formas de agredir Lucas, um homem de cabelos grisalhos desceu da parte de trás da carroça e reclamou com o suboficial
— Já estamos há quase duas horas esperando nesse lugar. Quanto tempo mais vamos ficar aqui?
— Logo iremos partir, senhor…
— Doutor! Doutor Herzollen. Preciso voltar a atender meus pacientes na capital o quanto antes. Pessoas importantes não gostam de esperar, sabe, rapaz.
O marinheiro não conseguiu conter a vontade de revirar os olhos, mas concordou mesmo assim. — Sim, se… doutor, iremos partir em breve.
Após obter o que queria, o médico se despediu e subiu novamente na parte interna da carruagem.
— Não sei o que você fez para o Capitão-Tenente te proteger. Mas, dessa vez, vou deixar passar para não atrasarmos.
O marinheiro subiu na condução, sentou em seu lugar e colocou a bolsa com a mensagem de César em frente aos seus pés. — Hora de ir, temos três horas de viagem pela frente.
─── ❖ ── ✦ ── ❖ ───
Na última carroça do comboio, os outros membros do grupo observavam o acampamento ficando para trás. Porém uma das pessoas presentes tinha uma expressão de incerteza em seu rosto.
Aren foi o primeiro a notar o olhar confuso da companheira, então perguntou: — Cê tá com algum problema, Anahí?
A menina olhou para o homem de dreads, enquanto escolhia as palavras. — Eu nunca fui tão longe da floresta… Como é essa capital?
Um dos outros passageiros ouviu a pergunta e se enfiou no meio da conversa. — É um lugar fantástico, incomparável! Desde construções históricas até prédios modernos, hotéis de luxo na beira do mar e ruas apinhadas de gente em todo canto.
O homem continuou falando incessantemente, sem notar que diminuía cada vez mais a vontade que a indígena poderia ter de visitar a cidade.
Sophia, que estava ao lado dela, riu da situação e cochichou no ouvido da amiga: — Também tem muitos parques e lugares tranquilos, além da praia.
— Talvez não dê para ver nenhuma dessas coisas. Se o mensageiro conseguir entregar a mensagem até o começo da tarde, voltamos pro acampamento hoje mesmo.
Com o balde de água fria que Arthur jogou, Sophia fez uma expressão emburrada. — Que sem graça…
O menino levou a mão à boca e coçou a garganta. — Bem, talvez outro dia possamos dar uma volta. A gente morava aqui antes, então eu conheço alguns lugares legais, tem várias bibliotecas e livrarias com muitos livros raros.
— Livrarias e bibliotecas? — A loira cruzou as pernas, cuidando para não se expor muito em seu vestido, e levou a mão até o queixo. — É bem a sua cara mesmo, Arthur.
Enquanto o menino ficava vermelho de vergonha e a garota ria dele, Aren aproveitou a deixa: — Eu queria perguntar isso antes, mas por que vocês, que são filhos de um marinheiro, estavam tão longe do mar?
Antes mesmo da resposta, a face do jovem ficou soturna. — O pai geralmente ficava bem ocupado com as obrigações da Marinha, então, quando nossa mãe morreu há uns anos, ele decidiu vender a casa e nós fomos morar com nossos avós no interior.
A melancolia em sua voz, e o fato de que todos ali perderam alguém, fez até mesmo o passageiro barulhento ficar em silêncio. Quem oferece consolo, quando todos precisam ser consolados?
Essa questão nas mentes dos viajantes fez o percurso tornar-se quase mudo. E permaneceu assim por algum tempo, até que Anahí fez um comentário.
— Parece que a caravana tem uma cauda. — Seu olhar fixo no caminho por onde vieram.
Entre risos, Sophia perguntou: — O que cê quer dizer com isso?
— Tenho essa sensação há algum tempo… estamos sendo seguidos.
Os outros passageiros, que ficaram no acampamento apenas para fugir dos monstros do litoral, sentiram um calafrio percorrer suas espinhas.
— Moça, não são aqueles monstros, né? — perguntou uma criança que estava no colo da mãe.
— Duvido muito! Eles não saem no Sol, mas se forem aquelas coisas… — Aren apontou para a lança acomodada no espaço entre os bancos. — Não vão ter nem chance.
A conversa no interior da carruagem continuou, até que, sem nenhum aviso, uma brisa quente fluiu pelas frestas das carroças e a luz no exterior diminuiu drasticamente — como se o Sol tivesse desaparecido.
Quando ficou tão escuro que já não era possível continuar lendo seu livro, o passageiros de uma das carruagens tentou acender uma vela. No instante seguinte ao que a chama iluminou o interior da condução, o fogo se apagou com o vento.
A brisa morna tornou-se uma ventania, que era possível de sentir mesmo do lado de dentro. Contudo, apenas aqueles que guiavam os cavalos conseguiam enxergar a causa disso tudo.
As nuvens, que antes eram cinzentas e distantes, agora cobriam todo o céu em uma escuridão intensa como a noite. A tempestade irremediável foi anunciada.
— Tsc, era só o que faltava.
— Com medo de se molhar? É só uma chuvinha de verão, logo passa.
Lucas ignorou o tom provocativo do suboficial e respondeu: — O que você acha que vai acontecer quando essa estrada de terra virar um mar de lama?
— Não seria o fim do mundo, saímos cedo e temos uma boa margem de tempo para ir e voltar.
— Esse é um dos problemas, mas não é o maior deles. Quantos mensageiros foram enviados antes de você e sumiram? O que você acha que aconteceu com eles?
Com um olhar levemente zangado, Nicolas respondeu: — Essas coisas só atacam de noite e todos sumiram durante o dia. Aposto que foram aqueles desgraçados do exército.
O olhar do primogênito dos Guerra deixou o horizonte tempestuoso. Enquanto trazia seu Winchester para perto, disse: — Pode ser. Agora, outra pergunta… Se essas coisas não atacam durante o dia, o que acontece quando as nuvens tapam o Sol desse jeito?
A expressão, antes calma, do Guarda-Marinha agora exibia traços de nervosismo. Ele pôs a mão direita sobre o cabo de seu revólver e tentou falar algo, porém foi interrompido pelo estrondo de um trovão.
O som da natureza em fúria reverberou por todo o local por vários segundos. Aqueles que antes estavam desatentos levaram um grande susto com a proporção do barulho.
Depois de recobrar os sentidos, Nicolas apoiou-se na beirada da carroça e berrou para todos que vinham atrás: — Vamos aumentar a velocidade! — Em seguida olhou para Lucas.
O primogênito dos Guerra moveu as rédeas e os cavalos aceleraram. Forçar os cavalos iria provocar um grande cansaço, e até matá-los de exaustão dependendo da situação, porém o perigo de um ataque era muito maior.
Alguns minutos depois que a caravana passou a ir mais rápido, começou a verdadeira tempestade. A primeira gota de chuva caiu silenciosamente, porém, em um piscar de olhos, milhares delas se juntaram em uma sinfonia cacofônica.
O ruído do céu despencando era ensurdecedor, e todos aqueles que conduziam os cavalos ficaram encharcados em poucos instantes. A escuridão vez ou outra era aliviada pelo clarão dos relâmpagos no céu, acompanhados do som poderoso dos trovões.
Mesmo que todas as conduções tivessem uma cobertura para quem estava atrás, devido a intensidade da chuva, não eram completamente efetivas em impedir as pessoas de se molharem.
A intensidade do vento aumentou junto com a chuva, levando a uma das piores situações possíveis: Uma árvore tombou bem em frente a caravana. Galhos e lama voaram em todas as direções .
Com um puxão abrupto das rédeas, Lucas impediu os cavalos de baterem no tronco e parou a carroça. Os cavalos recuaram alguns passos, enquanto o veículo se movia levemente para trás.
Para piorar a situação, uma das rodas traseiras estava começando a afundar no lamaçal que a estrada se tornou. Além disso, o espaço no trajeto era insuficiente para que as carroças dessem a volta, então a caravana inteira agora estava presa nesse lugar.
— Temos que tirar o tronco do caminho.
Lucas apenas revirou os olhos e provocou: — Não me diga!? — Enquanto o suboficial pensava em reclamar, continuou — Melhor ir pedir ajuda antes que algo nos alcance.
Mordendo os lábios em raiva, Nicolas desceu da carroça e correu para chamar os marinheiros que estavam atrás.
Enquanto isso, Lucas também desceu e andou até o tronco. Cada passo afundava suas botas na lama e ele botou as mãos acima dos olhos para evitar a forte chuva que atingia seu rosto. Quando chegou perto, sentiu que havia algo errado.
O som alto da chuva ocultou os ruídos da floresta; o cheiro da terra encharcada disfarçou o odor de carniça; e a atenção roubada pelo tronco no caminho ocupou as pessoas de observar os arredores.
No mesmo instante que o primogênito dos Guerra percebeu as marcas de garra na base do tronco, o grito de um homem alertou toda a caravana.
— Monstros!!!
Era uma armadilha.
Dezenas de vampiros saltaram de ambos os lados da estrada.
As criaturas planejaram o ataque, porém não foram as primeiras a fazer vítimas.
Com o rifle preparado com antecedência, Lucas alinhou sua mira com um dos inimigos em uma fração de segundos. A criatura mais perto da primeira carroça já estava no alvo!
Bang!
O projétil acertou em cheio a lateral do vampiro.
O jovem se aproximou da criatura cinzenta que se contorcia em agonia na lama, coberta de sujeira e sangue esverdeado, porém ainda capaz de machucar alguém.
Lucas chutou o torso do monstro e depois pisou em suas costas, pressionando seus corpo contra o barro. Empurrou o cano contra a nuca da fera e pressionou o gatilho uma segunda vez.
Uma bagunça repleta de massa cinzenta, sangue verde e lama negra se espalhou ao redor dele, porém isso não importava.
— O primeiro já foi.