Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 19
O Sol já havia ido embora há algum tempo. A Lua, sem nuvens para atrapalhar, iluminava fracamente a capital brasileira.
Um homem com binóculos observava a planície que separava a floresta do acampamento.
No horizonte, uma figura cinzenta apareceu — iluminada pelo luar. Distante demais para que sons pudessem ser ouvidos. Perto o suficiente para ser identificada: um vampiro.
— Mais um deles, sozinho. Uns duzentos e cinquenta metros… — Ao terminar a frase, tirou o equipamento do rosto e olhou para seus colegas de farda.
Os soldados do exército ao redor nem se mexeram, não ousariam dar um disparo daquela distância. Mesmo que os rifles em suas mãos, teoricamente, tivessem precisão para acertar, isso não garantia que eles tinham a habilidade necessária.
No meio dos homens fardados, um jovem de cabelos e olhos castanhos analisava a distância até a criatura. Com o canto do olho, conferiu o rifle Winchester, que repousava ao lado da cadeira em que estava sentado.
“Se dá pra ver, então dá pra acertar”, esse foi um dos ensinamentos mais objetivos de Sérgio ao seu filho mais velho — e um dos últimos.
Lucas pegou a arma e se levantou. Depois conferiu o pente de munição, pressionou a trava de segurança, deixando a arma pronta para disparar, e então mirou para frente.
Os militares ao redor, que iriam apenas esperar até que o monstro chegasse mais perto, se incomodaram com o “exibicionismo” do novato.
— O menino novo vai tentar a sorte, que piada.
— Cê tem uma arma bem bacana aí, mas ela não atira sozinha, sabia?
— Ele acha que pode gastar munição à toa, só porque recebeu uns presentinhos daquele oficial da marinha.
Lucas não gostava, mas entendia o motivo por trás das provocações. Sabia que acertar algo daquela distância não seria fácil. Ainda mais uma criatura menor que um homem adulto, correndo sobre quatro patas e a mais de duzentos metros de distância.
O Sargento no comando do grupo censurou seus subordinados e depois voltou-se para Lucas. — Ei, garoto, você parece bem confiante. Que tal uma aposta?
A expressão de estranheza do jovem entregava o quão inesperada foi essa proposta.
Lucas abaixou a mira e olhou para o homem. — Que tipo de aposta?
O Sargento sorriu, exibindo sua dentição amarelada, e respondeu: — Se você não conseguir acertar ele antes dos meus soldados, vai me dar uma lata de leite condensado.
“Leite condensado!? Realmente recebemos algumas latas depois que nos alistamos como voluntários… mas uma aposta só por isso?”
Novamente, a cara de Lucas era um livro aberto. O Sargento notou que ele não compreendia o quão importante eram os pequenos detalhes, então resolveu explicar.
— É bem difícil conseguir comida e bebida decente em um acampamento. As coisas estragam rápido e quase não tem doce nessa merda de ração militar.
— Faz sentido… Mas o que eu ganho se vencer?
O homem tateou em sua farda marrom-clara, até encontrar algo. — Se você vencer, te dou um maço fechado de cigarros — disse enquanto colocava a caixa em cima de uma cadeira.
Sem grande interesse na proposta, o primogênito dos Guerra recusou: — Não sou tão apaixonado por doces, mas também não fumo.
— Garoto, você realmente não sabe de nada. — O Sargento e seus subordinados riram. — Metade das madames naquele acampamento se entregariam para você… e ainda sobrariam cigarros para depois.
O rosto de Lucas ficou avermelhado e ele perdeu a concentração por um instante, não esperava algo assim.
Vendo o desconforto do rapaz, o veterano aproveitou para provocar um pouco mais: — Ou será que está com medo de perder a aposta?
Após o último comentário, recobrou a atenção em seu alvo: o vampiro inferior já estava a cerca de duzentos metros.
— Eu aceito a aposta. Só preciso acertar antes de vocês, certo?
— Só isso. Homens, quando ele chegar a menos de cinquenta metros, podem disparar.
“Não tem como ele acertar dessa distância, ainda mais com essa luz fraca, vai gastar toda a munição antes que chegue perto o suficiente”, pensou o Sargento.
Com a arma levantada mais uma vez, a criatura tinha o tamanho de um grão de feijão diante da mira de ferro de seu rifle. Pouca luz, sem auxílio de uma mira telescópica, contra um alvo pequeno e em movimento — tudo contribuía para que errasse os disparos.
Quando se acostumou à velocidade do alvo, moveu a mira um pouco para baixo e prendeu a respiração. Um toque suave no gatilho; um clarão iluminou a noite. Conforme a fumaça se dissipava no ar, o resultado foi exibido: o monstro cinzento parou de correr, derrubado em meio ao campo.
“Em uma única tentativa!?” O espanto do veterano foi tão grande que pegou os binóculos do seu subordinado. Pelas lentes, o que ele enxergou abalou ainda mais seus nervos. O ferimento estava bem no meio da testa da criatura.
O jovem abaixou a arma e apertou a trava de segurança. Depois removeu o cartucho de munições, guardando-o no bolso da calça, apoiou o rifle no ombro e andou até o sargento.
— Os voluntários foram chamados para uma reunião com o César, então vou indo — parou ao lado do homem e pegou o maço de cigarros de cima da cadeira. — Nos vemos amanhã, pessoal.
Alguns segundos se passaram, enquanto o jovem se afastava, e ninguém disse uma única palavra. Buscavam razões para ele conseguir ter feito isso. Já o viram atirando em alguns desses monstros antes, sua precisão era inquestionável, mas nunca dessa distância.
Quebrando o silêncio, um dos soldados resmungou: — Vai ver a arma dele atira sozinha mesmo.
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Dentro da tenda reservada ao oficial-chefe da marinha no acampamento, algumas figuras distintas aguardavam sentadas. Um homem negro com dreads, uma indígena com o rosto pintado, uma menina loira com aparência entusiasmada e um jovem de cabelos castanhos com uma bengala.
Entre os goles de seu café, o oficial em frente a eles disse: — Sempre acho cômico quando vocês estão juntos na minha tenda… Se eu não soubesse a história por trás do encontro de vocês, certamente acharia que é um tipo de piada.
— Se me dissessem que eu ficaria sentado no mesmo lugar que um militar por tanto tempo, também acharia que era piada — Aren retrucou.
César terminou sua xícara de café e respondeu: — Acredito que sua opinião sobre nós vai mudar com o tempo.
— Cê acha? Eu não acho.
Antes que alguma discussão ocorresse entre os dois, Sophia mudou o foco da conversa. — Arthur, cadê o Lucas?
Ao ser chamado, o jovem tirou seus olhos das páginas do livro e mirou a menina. — Ele estava de guarda na borda leste do acampamento, então deve estar aqui daqui a pouco.
O tecido que cobria a entrada da tenda foi aberto e todos olharam em sua direção. Lucas finalmente havia chegado.
— Desculpa o atraso, precisei derrubar um daqueles desgraçados antes de vir.
Arthur fechou o livro em suas mãos e encarou o irmão. — Está meia hora atrasado.
Lucas não respondeu e se sentou na cadeira que estava livre.
— Agora que todos estão aqui, vou compartilhar com vocês os resultados. — Depois de falar, o Capitão-Tenente pegou uma prancheta e começou a folhear os papéis presos nela.
— Desde que seguimos a sugestão de bloquear os caminhos pela mata, mantendo apenas acessos específicos, o número de civis feridos ou mortos em um ataque foi de… — fez uma pausa, olhando nos olhos de cada um.
Já fazia uma semana desde que os cinco sugeriram e depois ajudaram a pôr em execução o plano de proteção ao acampamento. A enrolação do marinheiro para falar apenas os deixava mais ansiosos.
— Desembucha logo! — reclamou Sophia.
Com um sorriso calmo, anunciou: — Zero. Não tivemos nenhum problema desde então.
O alívio e contentamento ficou estampado no rosto de todos. Finalmente pararam de perder pessoas para esses monstros.
— Boa, Arthur! — disse Lucas, dando um tapinha no ombro do irmão. — Seu plano foi um sucesso.
Envergonhado, o irmão mais novo tentou desviar o foco. — Todos ajudaram, seja com ideias ou pondo o plano em prática… essa é uma vitória nossa.
César acendeu um cigarro e observou a interação entre os membros do grupo. “Para quem perdeu quase tudo, qualquer vitória, mesmo que pequena, é uma vitória a se comemorar”, pensou.
— Não teremos mais pessoas morrendo… — tragou seu cigarro. — Pelo menos não durante os próximos dez dias.
Quando ouviram as palavras do oficial, a felicidade dos cinco rapidamente diminuiu.
Lucas se levantou de sua cadeira e perguntou para o homem à sua frente: — O que vai acontecer em dez dias?
— É quando acaba o prazo de validade deste assentamento.
— Mas… o que vai acontecer com as pessoas que tão aqui? — perguntou Sophia. A tristeza estava evidente em sua voz.
O oficial apagou o cigarro no cinzeiro em sua mesa, pegou uma folha e mostrou para a menina. Era um documento, justamente sobre a criação do acampamento para refugiados.
Ele apontou para um trecho. — Fica estabelecido o prazo de 28 dias, terminando em 2 de fevereiro… Depois disso, as pessoas voltam pras casas delas.
Ouvindo isso, Lucas elevou a voz: — Mas essas pessoas não tem como voltar pra casa! Nem eles, nem nós!
Entre suspiros, César explicou: — Originalmente, esse acampamento foi criado para alojar as pessoas que viviam perto do mar, por isso nós, da marinha, estamos aqui. Foi estimado que em até quatro semanas o litoral estaria seguro novamente.
— Mas as pessoas começaram a fugir das cidades próximas e acabaram aqui também — completou Arthur.
— Exatamente… tentamos entrar em contato com o governo, para explicar a situação e pedir que o prazo seja estendido. Porém, nenhum dos mensageiros enviados retornou.
— Cês mandaram a mensagem durante a noite? — perguntou Aren.
— Evidentemente que não. Todos eles partiram durante o dia, para evitar aquelas coisas, mas, mesmo assim, algo aconteceu.
— Por que você não usou o trem? A linha não vai até a capital? — O olhar de Arthur entregou sua descrença com as palavras do oficial, afinal, não havia motivos para não usar a linha férrea para entregar as mensagens.
Depois dessa pergunta, a expressão de César exibiu a raiva, até então contida. O desgosto preenchia suas palavras. — O exército assumiu o controle da estação. Me impediram de enviar a mensagem, porque não querem mais a presença da marinha no território deles.
— Que maravilha, hein — ironizou Aren. — E me deixa adivinhar, cê precisa que a gente entregue a mensagem.
Os dedos que batiam repetidamente na mesa entregavam a ansiedade do marinheiro. — Não exatamente… O acampamento recebeu pessoas demais e os suprimentos já estão no final, então algumas pessoas resolveram voltar para suas casas.
— E o exército não vai deixar nem os civis usarem a estação para voltarem pra casa? — perguntou Sophia, sua melancolia só aumentava.
— Não… Eu tentei várias vezes, mas o desequilíbrio entre nós e o exército está muito grande. Aquele maldito coronel ignora os meus pedidos, sabendo que não terão problemas depois.
Apertando o punho sobre a mesa, as veias de suas mãos saltavam. O sangue parecia ferver em seu corpo devido ao ódio. Para se acalmar, pegou outro cigarro e colocou na boca.
Enquanto César procurava pela caixa de fósforos, Arthur levantou sua mão esquerda. Seus olhos brilharam na cor vermelha e em seguida o cigarro do homem se acendeu.
A raiva rapidamente deu lugar a surpresa, mesmo já tendo visto esses poderes antes, ainda parecia fantástico. Depois de uma longa tragada, agradeceu: — Obrigado, garoto.
Refletindo sobre o que foi dito, o primogênito dos Guerra tateou a caixa de cigarros em seu bolso. “Ninguém merece passar por isso…”
Antes que mais alguém falasse, Lucas assumiu a conversa. — Eu vou ajudar essas pessoas a voltarem pra casa. Também vou ajudar aqueles que não tem pra onde voltar.
Todos olharam para o rapaz. Porém ninguém do grupo falou — nada precisava ser dito entre eles.
Vendo que César aguardava o restante se manifestar, Anahí declarou: — Fale de forma direta, para que as palavras atinjam o coração. — Todos se levantaram. — Se o Lucas vai, nós vamos com ele.