Guerra, o Legado no Sangue - Capítulo 14
Diante do marinheiro ofegante, Lucas pulou da cama e começou a se arrumar; rapidamente calçou as botas, pegou o revólver e prendeu a bainha do sabre na cintura.
Arthur e Sophia também levantaram e começaram a se preparar.
— Eu queria dormir! — resmungou a menina, colocando um vestido por cima do pijama.
Lucas e o soldado da marinha aguardavam na entrada da tenda os membros mais novos. O homem estava visivelmente nervoso, pois, até alguns dias atrás, era mais um marujo responsável apenas em manter os navios funcionando.
Com exceção dos fuzileiros — que tinham esse nome justamente por causa das armas — os demais praças da marinha sequer tinham treinamento de tiro; porém, tornou-se necessário impedir as ameaças no nosso país.
Com instruções precárias e apressadas, a maior parte do efetivo das forças armadas agora era composta por pessoas com pouca prática de tiro e nenhuma experiência em combate real.
Uma bengala afastou um dos panos que cobriam a entrada da tenda e logo em seguida Arthur e Sophia apareceram.
— Para onde vamos? — perguntou o mais novo dos irmãos Guerra.
O marinheiro apertou o cabo de seu rifle, exibiu uma expressão de desgosto e depois respondeu de forma grosseira.
— O Capitão só mandou buscar vocês. Outra coisa, eu não sou um dos seus amigos da fazenda, então me chame de senhor! Agora vamos de uma vez porque eu não sou babá de criança nem vou limpar o ranho de quem começar a chorar.
Lucas apenas arqueou uma das sobrancelhas e permaneceu em silêncio, enquanto fazia um gesto para que o irmão ignorasse a provocação. Apesar da resposta deselegante, o rapaz não deixou de notar que as pernas do militar tremiam levemente.
Após alguns instantes caminhando entre as tendas, gritos e disparos se tornaram audíveis. Junto com o barulho, pouco a pouco o soldado exibia mais sinais de nervosismo.
“A ansiedade sufocante frente ao desconhecido e o pavor da morte… Me pergunto quando me acostumei com essa sensação,” pensou o primogênito dos Guerra.
Lucas olhou para seu irmão mais novo e reparou que suas pupilas exibiam um brilho vermelho. Aproximou-se dele e falou em voz baixa, para que somente Arthur e Sophia ouvissem.
— Não dá pra confiar neles ainda, então escondam os truques de vocês. Usem somente se um de nós estiver correndo risco de vida.
— Só nós?… Mas e as outras pessoas? — perguntou a menina de cachos dourados.
O jovem ficou em silêncio por um breve momento e depois apontou com o olhar. Na direção indicada, quase completamente oculto pelas sombras, havia alguém os observando.
Um calafrio percorreu o corpo da garota. Ela tentou falar: — É uma daquelas coi…— Porém logo foi interrompida por Lucas.
— É só uma pessoa. Tem um grupo nos seguindo desde que esse marinheiro nos chamou.
Discretamente, Arthur fez um gesto com as mãos e aumentou a chama de uma lamparina próxima ao perseguidor.
A luminosidade não foi suficiente para revelar o rosto do indivíduo, porém foi o bastante para que o menino enxergasse o crucifixo pendurado em seu pescoço.
— A igreja está nos observando… — sussurrou Arthur.
Diversos pensamentos passaram pela mente dos três, porém Lucas não conseguia deixar de refletir sobre uma coisa.
“Por que a igreja se daria ao trabalho de nos vigiar, enquanto vampiros atacam o acampamento?”, pensou e pensou; porém não conseguiu encontrar uma resposta naquele momento.
— A tenda do capitão tá logo ali. Só mais um pouco e vocês não vão mais ser problema meu, então tentem não morrer até a gente chegar lá — falou o marujo.
Lucas revirou os olhos e depois respondeu: — Você é tão agradável quanto um chute no saco.
O tom provocativo enfureceu o soldado, que se virou para reclamar: — Você e seus amiguinhos caipiras não fazem a menor ideia da situação, então cala a boca e faz o que eu mando!
Quando o homem terminou de falar, Lucas sacou o revólver da cintura e o engatilhou. O soldado tremeu diante do jovem puxando a arma em sua direção. Enquanto o marujo pensava em apontar seu fuzil, o rapaz fez um um disparo.
O clarão da pólvora revelou o susto no rosto do militar. A bala passou por cima do seu ombro e um barulho de carne sendo atingida chegou aos seus ouvidos.
Ao olhar para trás, viu uma criatura cinza, com olhos negros e coberta de um liquido verde. Ela se contorcia no chão enquanto engasgava com o próprio sangue.
O sabre de Lucas cortou a garganta do monstro e deu um fim a sua vida amaldiçoada. O corpo se transformou em fumaça e uma pequena pedra vermelha sobrou no chão. O jovem abaixou-se e pegou o objeto.
— Arthur, pensa rápido — disse enquanto jogava o misterioso cristal para seu irmão.
O menino apanhou o item e guardou em um dos bolsos da calça.
Para o marinheiro, tudo aconteceu em um piscar de olhos. Não conseguiu ouvir nada, ver nada e muito menos reagir a tempo de fazer qualquer coisa. Imerso em confusão, o homem apenas olhava de um lado para o outro, tentando entender o que estava acontecendo.
Lucas colocou mais uma bala no revólver e depois provocou: — Ele quase arrancou o seu pescoço. Ainda bem que estamos aos seus cuidados, senhor.
As palavras que o tiraram do transe também machucaram seu orgulho; porém o homem apenas permaneceu em silêncio e voltou a seguir em direção ao local onde seu capitão esperava.
Contudo, agora a arma permanecia levantada e seu olhar varreu a escuridão entre as barracas — procurando pela ameaça que antes deixou passar.
O breu de uma noite sem lua era preenchido com os sons de disparos e gritos, humanos e animalescos, que ecoavam por todo o acampamento. Com exceção daqueles que perseguiam o grupo, ocultos na mesma escuridão dos monstros, nenhuma outra pessoa apareceu.
A concentração do soldado foi quebrada, quando o rapaz com o revólver perguntou: — Cadê todas as pessoas que deveriam estar aqui?
A fala surpreendeu o militar, não por ser uma pergunta estranha, mas devido àquele que perguntou. Com um rosto sério e determinado, sem um único pingo de dúvida no olhar, o rapaz não parecia preocupado com a situação.
— Devem ter corrido pra se esconder na igreja. As paredes de pedra não são frágeis como essas barracas de pano.
As palavras do marujo fizeram o trio lembrar da cena que viram ao chegar. O homem crucificado no telhado, pessoas com feridas que imitavam os machucados de Cristo, o cardeal discursando para o público e o desespero da população.
— Cabe tanta gente naquela igrejinha? — perguntou Sophia.
— Eu acho difícil. Provavelmente a maioria vai acabar do lado de fora — respondeu Arthur, que silenciosamente analisava os arredores.
Os olhos do menino emitiam um leve brilho e Sophia acabou notando isso. A menina se aproximou do amigo e o repreendeu: — O que ocê vai fazer? O seu irmão pediu pra manter segredo!
O menino exibiu um leve sorriso e explicou: — Quando eu concentro a energia nos olhos, consigo enxergar bem até no escuro. Tenta você também.
A menina fez uma expressão de dúvida, mas em seguida fez o que Arthur sugeriu. Em poucos instantes, a escuridão da noite sumiu e tudo ao redor ficou claro como o dia. Sophia virou-se para o menino e notou que o brilho em seus olhos agora era ainda mais intenso.
O brilho carmesim nos olhos de Arthur encontrou o brilho esverdeado nos olhos de Sophia e ambos ficaram se observando por um instante
— Parabéns, Sophia. Você conseguiu — elogiou o menino, surpreso com a velocidade que ela aprendeu o truque, pois ele precisou de alguns dias para conseguir.
A menina desviou seu rosto, vermelho de vergonha, e cochichou: — Obrigada, Arthur.
Na frente deles, Lucas ouvia tudo em silêncio e pensava: “Que inveja desses dois. Eu queria poder enxergar no escuro também! Espero não dar um tiro em um cachorro sem querer…”
Após alguns instantes caminhando, notaram que não havia mais ninguém os seguindo; porém ruídos macabros tornaram-se audíveis. Mesmo sem enxergar a origem dos barulhos, o trio sabia o que os causava.
Com a visão melhorada pela energia em seus olhos, Arthur logo encontrou a origem do som. O menino apertou o cabo da bengala e falou: — Em uns quinze metros adiante tem um grupo de vampiros comendo o que sobrou de alguns soldados.
— Vampiros!? Você diz os demônios? Quantos? — questionou o marinheiro, visivelmente nervoso.
— Vejo cinco.
— Tenho seis balas no revólver e mais cinco no bolso. Eu cuido deles — completou Lucas.
O marujo fez uma expressão de raiva e levantou a mira do fuzil. Enquanto buscava alvos na escuridão entre as tendas, reclamou: — Você deu sorte antes. Não tem como alguém acertar todos os tiros no meio da confusão. Não pense que vai funcionar sempre!
O primogênito não disse nada, porém o silêncio apenas irritou ainda mais o militar, que em seguida disparou com sua arma; porém, diferente de Arthur e Sophia, o homem não conseguia enxergar seus alvos.
O barulho apenas chamou a atenção dos vampiros, que pararam de comer suas vítimas e correram na direção do grupo. Arthur sutilmente aumentou a intensidade das poucas chamas que iluminavam o estreito corredor entre as barracas e revelou o grupo de monstros.
Mais um disparo e mais um erro. O suor começou a escorrer pela testa do marinheiro, que tremia cada vez mais ao ver os vampiros correndo em sua direção. Perto o suficiente para dar o bote, uma das criaturas saltou na direção do seu rosto.
Contudo, antes de alcançá-lo, um disparo atingiu a lateral da cabeça do monstro. Seu corpo morto caiu sobre o militar, que foi ao chão logo em seguida. Tremendo, e com o cadáver ensanguentado por cima dele, o homem largou sua arma e apenas observou a cena que veio a seguir.
Diversos vampiros tentavam alcançar o jovem ao seu lado, porém todos foram recebidos da mesma forma. Um disparo entre os olhos foi o destino de todos que se aproximaram demais.
Se movendo apenas para desviar das mordidas e dos corpos que caíam em sua direção, Lucas rapidamente matou os outros quatro monstros que correram na direção do grupo.
— E ainda sobrou uma bala — disse enquanto exibia um sorriso despretensioso em direção ao homem caído no chão.
— Tem mais vindo — avisou Arthur.
— Puta merda, parece que vai ser mais uma noite daquelas…
Vindos da mesma direção que o grupo anterior, mais cinco criaturas apareceram. Lucas ainda tinha cinco balas consigo, mas não teria tempo para recarregar o revólver. Sem tempo e com poucas opções, disparou naquela que corria na frente — e a única que ele conseguia enxergar direito.
O tiro acertou o olho esquerdo do monstro, que morreu instantaneamente. Enquanto o corpo da fera rolava na areia, Lucas abaixou-se e pegou o rifle do militar.
— Me empresta isso daí! Tem quantas balas sobrando?
— E-eu não… — O homem não conseguia dar uma resposta clara, porém Lucas não podia perder tempo esperando.
“Não sei quantas balas tem aqui, mas preciso acertar todas enquanto houver alguma”, pensou enquanto levantava a mira da arma.
Quando as outras criaturas ficaram visíveis, o jovem já estava às esperando. Sentindo a grande diferença no peso da carabina Kropatschek em comparação a um revólver, o rapaz lembrou: “Vamos lá, pai… Apontar, prender a respiração, estabilizar a mira e então pressionar o gatilho”.
Assim que a cabeça de um dos monstros se alinhou com a mira, o mundo, aos olhos de Lucas, ficou devagar. O suave toque no gatilho era a única forma de lembrá-lo que ainda havia movimento… Um clarão! A fumaça subiu e um baque soou em seguida — restava apenas o monstro caído, com o cérebro espalhado pelo chão.
Quando a criatura morreu, Lucas puxou o pino, ejetou a cápsula disparada e preparou a próxima bala na câmara do rifle.
O marinheiro, ainda no chão, estava de boca aberta enquanto olhava para a cena inacreditável à sua frente. A única coisa que conseguia pensar era: “Como ele está tão calmo? O que aconteceu com esse menino pra ficar desse jeito?”
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Carabina Kropatschek