Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 96
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- Capítulo 96 - E então, este sonho acabou… (2/2)
1º Dia
10h27
Conforme as iterações acontecem, fica mais claro para mim a chegada de uma sensação: tédio.
Depois do tempo equivalente a alguns meses ter decorrido, começo a perceber desânimo no comportamento alheio. Aqueles que praticavam esportes diariamente passaram a deixar seu passatempo de lado, outros mais introvertidos já terminaram de ler todos os livros de seu interesse, e a sensação de desânimo começa a florescer.
Assim como constatei, a prorrogação e criação de mais eventos escolares deixou de surtir efeito. Ao torná-los uma normalidade, perderam o seu apelo. Naturalmente, após tanto tempo confinados, ninguém mais quer saber de realizar estas atividades, todos querem voltar para as suas casas, para as suas vidas.
— Ei, o que você tem? Vamos jogar tênis?
— Deixa para outra hora, estou me sentido um pouco tonto e enjoado.
Também percebo este padrão. Antes eram somente alguns dentre milhares de estudantes que necessitavam ir a enfermaria, este fenômeno está se tornando mais comum. Sensibilidade a este mudo de repetições ou seja lá qual for a causa deste fenômeno, isto não me causa boa impressão.
Mikoto, Ailiss e eu não chegamos a nenhuma solução. Eventualmente passamos a gastar mais tempo na gestão do corpo discente do que na resolução do looping em si.
Quem aparenta não ter gostado nem um pouco da ideia é o antigo cão de Mikoto, Takashi. Até tive certa aproximação a ele durante as inúmeras repetições que precisei executar, mas não acho que nada que eu lhe diga vá acalmar seus ciúmes doentios.
A tentativa de assassinato que sofri daquela vez na enfermaria comprova isso. Jamais ele admitiria que a Mikoto desse muita atenção a outrem.
— Fique longe dela, não irei dizer isso duas vezes — diz Takashi ao me encontrar sozinho na sala do conselho.
Mal ele sabe quantas vezes passamos por um diálogo semelhante. No final acabei tomando medidas horrendas para silenciá-lo, entretanto não pretendo repetir o mesmo erro.
A partir de agora, a morte de todos eles será definitiva. Tentar poupar a vida de cada um deles ao máximo é uma forma de me redimir das insanidades cometidas por mim nos meus momentos de insanidade.
Mesmo assim…
— Não me leve a mal, mas estou apenas cumprindo as ordens que me são passadas. Se ela decidiu que eu devo realizar tal tarefa, não posso fazer nada. Se quiser reclamar com alguém, terá de reclamar com ela, todavia acredito que ela não irá gostar de uma oposição às suas opiniões, seja da minha parte, seja da sua.
Ao mesmo tempo em que não quero desenfrear num conflito, assim como já fiz, não posso simplesmente acatar as ordens dele. Se eu simplesmente obedecê-lo, estarei lhe dando certa autoridade. Não posso trocar a liberdade de Mikoto meramente por buscar conter seus impulsos psicopatas.
— Se fosse apenas isto… vocês se tornaram bastante íntimos, não é verdade? A Kaichou nunca interagiu tão intimamente quanto está com você e com a garota intercambista. O que vocês dois fizeram a ela? Acha que vai me enganar tão fácil? Eu sei que estão a manipulando — ajusta seus óculos — Então repito, afaste-se dela.
— Dentre todas as pessoas, você acha que ela seria manipulada? Estamos falando da mesma Mikoto? — suspiro e volto a falar — Vou explicar de novo e serei franco. É ela que quer passar seu tempo de lazer comigo e com Ailiss. Você não pode restringir isso, a vida é dela e ela sabe o que é melhor para si própria. Eu não quero nenhum desentendimento com você, espero que possa entender isso.
— Não… Você a enganou… você a EngaNoU! — grita com os olhos arregalados.
Ele está ficando no mesmo estado quando o provoquei daquela vez, contudo neste caso foi espontâneo, e também não me encontro numa situação vulnerável como na situação da enfermaria. O passar do tempo deve ter sido o suficiente para que a inveja o enlouquecesse.
Rapidamente sinto a hostilidade na sua expressão e me coloco em guarda.
Talvez ainda seja possível trazer um pingo de sanidade à sua mente.
— Pense bem no que irá fazer, você sabe que sou um jogador e como as regras funcionam. Se me matar, eu irei apenas renascer na próxima iteração e você irá morrer definitivamente. O que espera ganhar com isso?
— Isto é tudo uma grande mentira. Você é o culpado, você e aquela garota intercambista são os culpados. Tudo começou com a chegada dela. Quando eu der um jeito nos dois, tudo voltará ao normal. E então… e então ela irá me amar!
Droga, neste ritmo…
— Não sou eu que estou dizendo isto. Não testemunhou com seus próprios olhos o desaparecer do Asahi e do professor?
Ele para por alguns segundos para se acalmar, então volta a falar em baixo tom.
— Ei… ela também parece estar interessada em você, sem falar que ela é tão bonita quanto a Yukihara-san — enfurece-se de novo — Ela não é o suficiente?! Por que você precisa das duas?! Por quê?! Por quê?! Por quÊ?! pOr QuÊ?!
Sabia que aparecer em público com as duas nunca foi uma boa ideia. Mesmo com os meus cuidados, era uma fatalidade que isso viria abalar a inveja doentia de Takashi.
Pelo encaminhar desta conversa, não me parece que terei a mesma sorte de Mikoto e Ailiss o interromperem.
— Essa não é a questão. Agora, escute-me, este não é o caminho, o que você pretende fazer não acabará bem. Nada será resolvido, o único que irá perder com isso tudo será você.
— Cale a boca, seu merda! Você não sabe o quanto tempo eu a admiro! Por que você pode ter tudo e eu preciso aceitar isso, hein?! Tendo aquelas duas, para você é fácil falar algo assim! Você possui tudo! — arregala mais os olhos — EU NÃO TENHO NADA PARA PERDER!
Takashi parte para cima de mim aplicando um soco em direção ao meu rosto. Então cruzo os braços em frente a minha face para me proteger do impacto e em seguida agarro o seu punho para segurá-lo.
Quem diria que todo aquele treino com Ailiss serviu para alguma coisa, não estou nem aos pés daquelas duas garotas, entretanto até um zero a esquerda como eu pode dar conta disso.
Droga!
Vejo a luz refletida sobre uma superfície metálica.
Infelizmente não pude prever um fato… Ele está portando uma faca de cozinha.
— MoRrA sEu DeSgRaçADO haHahAHaHA — euforicamente profere um grito com a voz distorcida.
Não consigo me proteger do golpe seguinte, no qual com a lâmina da faca ele acerta minha barriga.
Em dor, retraio-me.
Em seguida, ele aproveita a oportunidade para atingir o próximo golpe. A faca avança em direção ao meu pescoço, tento segurar o seu braço, mas ele o desvia levantando a lâmina.
O quê?!
Inesperadamente, Takashi ataca-me nos olhos.
Sinto uma dor ardente enquanto o fio da lâmina corta meus glóbulos oculares.
Dou um urro de dor enquanto tento me orientar às cegas.
Droga, não posso ver!
Toco a parede para me estabilizar, mas logo em seguida sinto uma pancada à esquerda da minha cabeça fazendo com que eu tombe ao chão.
— Morra! — crava a lâmina no meu tórax.
— Morra! — atinge o meu abdômen.
— Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra! Morra!
A faca prossegue cortando a minha carne até o ponto de eu perder a consciência.
1º Dia
10h27
Desperto novamente na sala de aula e só então termino de processar o que aconteceu. Takashi ficou descontrolado e me matou na última iteração… Isso implica, via as regras do jogo, na morte dele. Ao que tudo indica é verdade, apenas nós três não estamos correndo o risco de desaparecer ao sermos mortos.
Ainda faltavam alguns dias para rebobinar o tempo, o que terá acontecido com os outros?
…
Vou até a sala do conselho estudantil e encontro-me com Ailiss e Mikoto, as quais me relatam sobre a situação.
— Nós encontramos o seu corpo e o de Takashi no piso da sala do conselho. Visivelmente pudemos concluir o que ocorreu — fala Ailiss.
Entendo, então depois da interferência dos demônios de Laplace, a realidade não está se reiniciando automaticamente com a nossa morte. Ademais, fico aliviado de saber que este conflito ainda não foi a público. As duas fizeram bem em abafar o caso.
— Algum sinal dele? Ele de fato não renasceu nesta iteração? — pergunto.
— A existência dele foi completamente apagada — nega com a cabeça.
Isto confirma todas as informações passadas a mim pelos demônios. Aqueles malditos não são confiáveis, mas ao que tudo indica há veracidade em todas as regras estipuladas.
Olho para Mikoto e a vejo um pouco abatida.
— Está mal por causa dele? Eu entendo, no convívio escolar ela era a pessoa mais próxima a você.
Por mais repulsiva que uma pessoa possa ser, é estranho lidar com a ausência de alguém que esteve por tanto tempo ao nosso redor.
— Não é isso. Lamentar-me sobre a morte dele seria desrespeitoso, visto que fui responsável por tê-lo assassinado um terço das vezes. No entanto, às vezes penso que eu deveria tê-lo cortado mais cedo, logo quando ele entrou no conselho estudantil há dois anos. Desta forma, talvez ele não teria ficado tão obsessivo por mim — Ela explica enquanto massageia suas têmporas.
— Convenhamos que da maneira que você sempre o tratou, estava mais do que claro que você não queria nada com ele. Não teria como ele pensar o contrário, a não ser que fosse um masoquista assim como o Mistkerl — comenta Ailiss.
O pior é que não tenho nada a dizer em minha defesa, meu subconsciente de fato prefere quando estas duas estão me maltratando. Talvez Takashi também interpretasse isso de maneira positiva. Quem diria que teríamos mais este ponto em comum?
— Pois é, eu pensava o mesmo. Mas agora vejo o quão irracionais podemos ser ao tratar de nossos sentimentos. Neste sentido, ele não é muito diferente de nós três.
Vejo que amor não é uma emoção tão bela quanto tentamos pintar. Muito pelo contrário, é a mais egoísta de todas.
— Realmente. Olhando para o passado, as medidas que precisei tomar durante as repetições até fazem o Takashi parecer alguém sensato. Na verdade, as medidas que nós três tomamos — comento.
— Deixando esta questão de lado, o real problema aqui será encobrir este incidente. Apesar do Tanaka-kun não possuir grande simpatia e popularidade com o corpo estudantil, naturalmente começarão perceber a sua ausência — explana Mikoto tocando os lábios — E quando isto ocorrer, mesmo que omitamos a tentativa de assassinato, seu simples desaparecimento provavelmente instabilizará a saúde mental dos demais estudantes.
…
As preocupações de Mikoto demonstraram-se relevantes. Takashi possivelmente era a pessoa mais desequilibrada aqui dentro, mas não era o único. Ao somar a tendência natural à insanidade com a influência da primeira vítima do looping, o comportamento alheio torna-se inquieto.
Esta escola não me lembra mais em nada do ambiente onde estavam sendo realizados múltiplos eventos escolares há alguns meses. O tom em torno deste local rapidamente tornou-se sombrio e agressivo.
Alguns já se tocaram que jamais conseguiremos sair deste mundo, gerando então violentas ações de revolta.
Brigas estouram várias vezes ao dia pelo pátio da escola, mas como ainda se trata de uma minoria, o conselho estudantil consegue pará-los com sucesso. Apesar das inconveniências, ainda é um ambiente controlado.
Até se suceder mais uma morte.
Durante uma briga, um estudante é morto. Isto é o estopim para uma série de assassinatos e suicídios em cadeia. Para dar uma acalmada nos ânimos, Mikoto e Ailiss passam então a reprimi-los à base de um regimento análogo a uma lei marcial.
Seguimos por um caminho sem volta. E a partir deste momento, este curto sonho acabou.