Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 93
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- Capítulo 93 - Sem sombra de dúvidas, esta falsa paz é passageira. (2/3)
Mais uma vez deparo-me com o cano de um revólver em minha testa. Já me encontrei nesta situação nostálgica por uma infinidade de vezes, mas esta ocasião se difere das outras. Agora que eu me lembro de tudo, não consigo deixar de ser levado pelas minhas emoções ao encontrá-la.
— Quem é você? Você me seguiu? Tem cinco segundos para se explicar antes de eu estourar os seus miolos — Ailiss franze as sobrancelhas e pergunta com a sua habitual voz sombria.
— Espere, por favor, não dispare, ou você irá morrer também! — levanto as mãos — Se ainda quiser atingir meus membros, tudo bem. Mas peço que me deixe conversar um pouco com você antes disso.
— Então está alegando ser um jogador, uma mentira que seria bastante conveniente para salvar sua vida… Pois bem, comece a se explicar ou irei seguir a tua própria sugestão — abaixa a arma para minha perna.
— Ailiss, primeiramente eu gostaria de me desculpar com você — suspiro — Eu sinto muito por não ter percebido antes. Deveria ter notado as suas intenções, deveria ter entendido o que lhe levou a fazer tudo aquilo. No fim, você trocou o seu futuro pelo nosso.
A terrível memória do nosso confronto, onde Natsuki a baleou, não deixa de martelar a minha cabeça.
— Hã? Não sei do que você está falando. A propósito, como sabe meu nome verdadeiro? — cerra os olhos.
— Não se lembra? Imaginei que seria o caso… — desvio o olhar para baixo com um sorriso amargo — Aparentemente vocês duas só irão se lembrar destas repetições daqui em diante, talvez até seja melhor para você que não se lembre de tanto sofrimento que precisou passar. Mas eu não irei me esquecer das infinitas vezes que você abriu mão da sua vida, da sua vingança, de tudo, de todas as vezes que você abandonou tudo por nós.
— Você… está chorando? Patético.
Levo a palma da minha mão até meu rosto e sinto que está molhado.
Volto meu olhar para ela, e então ela prossegue com a fala.
— Olha, eu não sei como conseguiu esta informação sobre a minha vingança, mas a verdade é que você sabe demais. Terei que eliminá-lo aqui e agor- — Ailiss para de falar e se afasta alguns passos.
Ela abaixa a arma, demonstra uma expressão desagradável e pressiona a palma de sua mão esquerda contra a testa.
Dor de cabeça? Será possível que ela possa recuperar suas memórias?
— Ei, você está bem? — tento ajudá-la.
Porém ela dá um tapa em minha mão e se afasta ainda mais.
O que está acontecendo?
Passado alguns segundos, ela manifesta-se novamente.
— Então é você… Mistkerl — levanta seu rosto inexpressivo.
“Mistkerl…”, a princípio parece um contrassenso, mas nunca deixo de ficar alegre ao ouvir este insulto. Não posso acreditar que suas memórias voltaram, fazia tanto tempo que não me sentia alegre.
— Por que estou aqui? Eu tenho certeza de que deveria estar morta — pausa — Então isto não acabou… achei que conseguiria finalizar isto tudo com a minha morte — Ela continua ainda um pouco tonta.
Entendo, do ponto de vista dela, estas são suas últimas lembranças. Mas não interessa até que ponto ela esteja ciente das repetições, o importante é que ela se lembra de mim e principalmente da Mikoto
— Por favor, Ailiss, não me deixe sozinho aqui novamente. Eu não suporto mais este mundo no qual apenas eu me lembro de tudo. Eu não suporto mais este inferno… eu não suporto mais… — ainda em lágrimas vou até ela e a abraço.
Eu mal posso acreditar que finalmente há alguém com quem eu possa compartilhar este tempo preso nestas eternas repetições. Eu sei que é egoísmo da minha parte, eu sei o quão sujo eu sou, mas eu preciso de você. Eu preciso de você, Ailiss.
Ao contrário de vocês duas eu sou muito fraco…
— Ei, Mistkerl. O que exatamente está acontecendo aqui? E o que há de errado com você? Está mais emotivo do que de costume.
Mantenho-me em silêncio e continuo chorando enquanto a abraço.
— Fique tranquilo com isto. Jamais abandonaria o meu fiel subordinado — muda o seu tom de voz para ríspido — Mas por hora me largue e me explique a situação.
Mergulhado em minhas emoções, após tanto tempo desamparado, não consigo pensar racionalmente e acatar suas ordens, somente continuo a abraçando enquanto choro desenfreadamente.
— Ei, Mistkerl. Não vou dizer duas vezes — continua.
Após alguns segundos caio para trás devido a um soco bem dado no meu estômago.
Seu punho continua forte como costumava ser, esta dor também é incrivelmente nostálgica.
— Eu disse para me largar — completa zangada.
— Desculpe-me — prossigo chorando como uma criança.
— Você é muito fraco mesmo… sério, o que aconteceu com você depois que eu morri? Está muito mais sensível do que naquela nossa última conversa antes do nosso confronto. Sua personalidade está totalmente distorcida, quando olho para você já não vejo mais aquele antigo e imbecil Mistkerl.
— Acredito que a minha personalidade tenha se perdido em meio a todo este tempo — enxugo o meu rosto com a manga do meu blazer.
— Recorrentemente você está mencionando isso, diga-me em detalhes pelo que você passou ou não terei como ajudá-lo. Esta não é mais uma linha temporal comum, é? — cruza os braços.
Então a conto tudo sobre este looping temporal no qual estamos inseridos, bem como a respeito da conversa que tive com os demônios. Ela me relata que também se lembra de ter conversado com eles durante as infinitas iterações nas quais periodicamente cada um de nós se sacrificava pelos outros.
— Entendo… impressiona-me que tenha suportado tanto tempo guardando suas memórias. Confesso que não sei o quão enlouquecedor isto seria para mim… você mencionou que quando você buscou a nossa ajuda, nem eu e nem Mikoto conseguimos encontrar um meio de parar o tal looping?
— Sim, vocês sempre tinham suas memórias apagadas, logo ficavam limitadas às informações cedidas por mim a cada repetição. No entanto, a nossa conclusão final foi que não havia solução.
— Aqueles malditos estavam brincando conosco na palma da mão… — cerra o seu punho — Em todo caso, e Mikoto? Onde ela está? Ela já está ciente de que este ciclo vem se repetindo?
— Ainda não fui falar com ela, depois de conversar com você pretendia me encontrá-la. Planejava persuadir vocês duas, como sempre fiz, com o intuito de evitar um conflito. Mas como você felizmente recuperou as memórias, acredito que o mesmo pode ocorrer com ela — sorrio aliviado.
— Pois bem, trate de se encontrar com a Mikoto e a ajude a estimular suas memórias assim como fez comigo — esfrega a mão na testa — Enquanto isso eu vou digerir um pouco mais toda esta informação e tentar pensar em algo, logo mais devo me juntar a vocês dois.
Assinto e acato a sua ordem.
12h45
Não há nenhum indício de que conseguiremos encerrar este looping. Minhas esperanças foram totalmente devastadas… Contudo, agora sabendo que não estarei mais sozinho neste inferno, sinto um forte alívio em meu peito.
Ao mesmo tempo em que me sinto aliviado, também percebo que isto significará no sofrimento alheio. Agora todos à minha volta terão de compartilhar da mesma dor e da mesma insanidade que venho vivenciando.
Sentir-me contente mesmo estando ciente disso é uma atitude em última análise egocêntrica.
Em especial tratando-se daquelas duas, com toda certeza seria melhor que ambas permanecessem na ignorância a respeito deste looping enquanto eu continuaria a me matar indefinidamente.
Infelizmente eu não sou forte o suficiente para isso. Eu não fui capaz de protegê-las como deveria. Então, agora que elas estão fadadas a este cruel destino, eu farei de tudo para amenizar as suas dores.
Durante o horário de almoço, aproveito que os demais membros do conselho estudantil estão no refeitório para encontrar-me com Mikoto.
Abro a porta da sala do conselho e a encaro em melancolia por alguns segundos.
Antes que eu pudesse encontrar as palavras certas para me dirigir a ela, a própria faz o favor de repreender as minhas ações.
— Nunca tiveste lições de etiqueta? Adentrar a sala do conselho estudantil desta forma e sem um horário marcado poderá resultar em uma suspensão por falta de boas maneiras.
— Mikoto, por favor, escute-me. Eu não tenho certeza de como fazer isso, mas eu preciso que você se lembre também.
— Quando te dei intimidade para me chamares pelo primeiro nome? Francamente, não faço ideia do que tu estás a dizer, todavia estou ocupada com algo mais importante. Então agora saias da minha sala — cerra os olhos.
Com Ailiss eu precisei falar a respeito das repetições na qual ela foi usada pelas entidades, talvez isso funcione como gatilho para despertar as suas memórias. Então neste caso não será diferente.
— Ao menos faça um esforço para se lembrar. Você havia me dito nesta mesma sala que seria obrigada a tomar ações que eu jamais poderia entender. Naquelas iterações de fato eu não fui capaz de perceber. Quando conversamos pela primeira vez nesta sala, acreditei que você apenas havia mentido para mim — encaro o chão — Mas agora entendo, eu sei exatamente pelo que você passou…
— Já disse que não sei do que tu estás falando, se persistires com esta conversa estranha, serei obrigada a tratá-lo como um perseguidor ou algo do gênero — suspira — Não irei alertar-te mais uma vez, saias da minha frente agora.
Ignoro o seu comentário e prossigo com a explicação.
— Desculpe-me, mas eu não posso acatar este pedido. O ritual que você conjurou entrou em looping, e eu preciso de você para me ajudar a pará-lo. Ailiss e eu precisamos de você.
— Tu sabes a respeito do ritual?! — Mikoto arregala os olhos — Neste caso devo assumir que tu sejas um dos meus adversários — pega o interfone e fala — Tanaka-kun, capture o intruso.
Ela não se lembrou?! Como?! Isto acabou de funcionar com a Ailiss! Por que com ela seria diferente?!
— Espere, não se precipite! Eu sou seu aliado! — tento me explicar.
— Eu sei, idiota… — caminha até mim e belisca minha bochecha — Na verdade, minhas memórias voltaram há alguns minutos. Então decidi brincar um pouco contigo — sorri com deboche.
Que alivio… no fim era mais uma de suas travessuras.
— Cruel… achei que você não se lembraria mais de mim. Já estava ficando assustado — respondo.
— O Tanaka-kun e os outros estão almoçando, então não teria ninguém para capturá-lo, esqueceste?
Realmente, este foi um dos pontos por eu ter aproveitado este horário para falar com ela, eu ando com a cabeça bastante confusa.
— Vejo que tu estás bastante emotivo, todavia vamos deixar para discutir isto mais tarde e vamos direto ao assunto. A última coisa que eu consigo me lembrar é do saguão em chamas no momento da minha morte, tu disseste que estamos em um looping, como exatamente isto está ocorrendo? Estaríamos saltando de um mundo para outro? — continua.
Conforme o pedido, também a conto toda a informação que eu tinha sobre as entidades e o que eles me falaram a respeito deste looping.
— Então a Ailiss já recuperou suas memórias… Acredito que as minhas tenham retornado ao mesmo tempo em que as dela. Bem que eu estava um pouco desconfiada daquele papo de estarem me dando uma oportunidade de mudar a linha temporal.
— Qual foi a forma que eles te abordaram?
— Disseram-me que eu necessitava cortar os nossos laços oriundos das outras linhas temporais, era a única forma de tu e Ailiss serdes libertos. Enfim, não vi outra solução senão seguir o plano que tu viste naquelas repetições… — cruza os braços — Em todo caso, não sei se podemos confiar plenamente nestas novas informações que eles te passaram. Afinal de contas, aquelas crianças fantasmagóricas não são nem um pouco confiáveis.
Ponderada como sempre. Creio que com seu auxílio conseguirei lidar melhor com isso daqui em diante.
— E o que faremos a respeito dos outros? Acho que esta informação irá apenas aumentar o caos. Mas em teoria se deixarmos alguém morrer, ele não retornará e de todo modo não conseguiremos encobrir isso para sempre, pois na próxima iteração todos já perceberão que tudo está se repetindo.
— Sim, isto de fato é um empecilho. A princípio, adiar o problema não me parece uma boa solução. De qualquer forma, vamos discutir mais apropriadamente com a Ailiss quais as medidas que iremos tomar daqui em diante — coloca os dedos em frente aos lábios e responde pensativa.