Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 68
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- Capítulo 68 - Assim, ele, ela e ela tomam seus rumos. (2/2)
As duas ficam em silêncio por alguns segundos até que Mikoto decide manifestar-se.
— Johann e tu mencionastes algumas vezes a respeito da tua vingança. Basicamente o que te levou a perseguir usuários de magia negra? — pausa, a fita e completa — Não precisas responder caso não queiras, afinal eu sou uma dos teus alvos, não é mesmo? — sorri levemente.
— Como cheguei até aqui é uma história um pouco longa, entretanto tudo começou com meu pai sendo assassinado por um lunático que se tornou usuário deste mesmo tipo de magia que a sua. Então posteriormente decidi acabar com todos eles por conta própria.
— Entendo. É difícil não ter uma inclinação a este posicionamento, pois o meu tio foi um sacerdote completamente sádico, para ele a conjuração tornou-se um grande entretenimento, mas tecnicamente ele não estava tão errado se for seguir a ideia original por trás da criação deste ritual. Originalmente esta conjuração foi criada como uma disputa psicológica análoga a um jogo de tabuleiro, porém com uma mecânica baseada no convencimento. E normalmente era praticado entre nobres e seus sacerdotes. Todavia, há casos de sacerdotes que seguiram outro caminho, e são nestes que tento me espelhar.
— Não duvido que o caráter mude de pessoa pra pessoa, e que inclusive existam portadores sensatos. Contudo, mais cedo ou mais tarde este poder cairá nas mãos erradas, por isso os assassinos de feiticeiros, além de matar os usuários, impedem que ela seja passada adiante. É uma ferramenta com potencial restrito à calamidade.
— Neste ponto eu discordo de ti. Não digo que possa ser usado para melhorar o mundo, todavia, pode ser pontualmente usado para algum motivo nobre. Como foi o caso da minha mãe, ela conjurou o ritual para proteger a mim e a minha família de um bandido que invadiu a nossa casa.
Apesar de algumas características opostas, acredito que possam ver o que há em comum em suas trajetórias e a partir disso criar um pouco de empatia uma com a outra.
— Entendo. Ironicamente a mesma ferramenta que levou meu pai, foi usada para salvar uma filha — solta um suspiro e olha para o teto — No fim, posso ter tomado alguns juízos um pouco simplistas a seu respeito.
— Eu nunca pensei que diria isto, mas tu és uma pessoa bastante sensata para uma assassina. Quem sabe se o nosso encontro não tivesse sido daquela forma, as coisas poderiam ter tomado um rumo um pouco diferente. Talvez um controle adequado sobre o uso desta magia negra pudesse ser um trabalho mútuo entre nós.
— De fato, poderia ter sido. Mas a primeira impressão que tive de você também não foi das melhores, pensei que você era apenas uma garota metida achando-se a rainha deste lugar. Então mesmo que não tivéssemos entrado em conflito, não sei se iríamos simpatizar uma com a outra logo de cara.
— Quem me julga desta forma é o restante do corpo discente. Não tenho qualquer controle sobre os pensamentos deles. Apenas tento fazer o meu trabalho de modo ordeiro e produtivo. Sabes, se tu estivesses no meu lugar, acredito que teria uma fama análoga à minha. Entretanto, com algumas nuances, quem sabe tu fosses encarada como uma rainha má, uma ditadora ou algo do tipo.
— Uma rainha má? — ri — A realeza não é algo muito compatível comigo. Como nos aliamos, penso que você seria a rainha e eu seria no máximo a sua general. A parte de combate faz mais a minha praia do que o setor administrativo ou ter que atender às expectativas da minha plebe.
— Ora, então sendo tu a minha general, eliminaria qualquer inimigo que a tua rainha ordenasse? Seria a minha espada contra qualquer ameaça? — ri.
Elas estão até rindo. A atmosfera que estava extremamente densa até pouco tempo dissipou-se completamente. Se alguém observasse esta cena fora de contexto, constataria que são amigas relativamente próximas conversando sem nenhuma preocupação ou intenção hostil.
A compatibilidade das duas chega a ser assustadora.
É como se já tivessem tido esta conversa milhares e milhares de vezes.
— Enquanto eu fosse adequadamente remunerada e achasse relevante tê-la como rainha. Da mesma forma que um soldado segue seus superiores por interesse de subir de cargo, eu também serviria a realeza enquanto estiver sendo beneficiada por isso.
— Entendo, vejo que tu também tens uma natureza egoísta, somos realmente semelhantes. Agora para mim fica claro, talvez pudéssemos ter nos dado bem ou quem sabe finalmente eu ter feito uma amizade — Mikoto abaixa o olhar e sorri com um traço melancólico.
— É bem possível… Mas você realmente espera que eu acredite que alguém popular assim não tem amigos? Não ficaria surpresa se o Mistkerl estivesse falando isso até porque não vejo alguém querendo interagir com alguém feito ele. Mas você? Todos nesta escola aceitariam sua amizade com o maior prazer do mundo.
Ei, Ailiss. Tudo bem que vocês estão se entrosando, mas poderia tentar me ferir um pouco menos?
— Pode parecer estranho, todavia o que eu tenho são apenas seguidores e não amigos que me veem como uma igual. Nunca houve alguém da minha idade com quem eu pudesse ter uma conversa franca desta forma. Como tu não te colocas numa posição inferior à minha, sinto que posso dialogar espontaneamente contigo. Sei que tu não falas o que falas apenas para me agradar, muitas vezes é justamente o contrário.
— Esta é outra quebra de paradigmas que estou vivenciando. Sempre estive literalmente sozinha pelo caminho pelo qual tracei. Entretanto, agora que você tocou neste ponto, acredito que não teria sido muito diferente se eu tivesse uma infância e adolescência “normal”. Provavelmente estaria isolada em algum canto e intimidando que tentasse se aproximar de mim.
— Ora, ora. E se nesta tua realidade hipotética, eu, estando tão só quanto tu neste convívio escolar, tentasse me aproximar de ti? Também irias me intimidar? Mesmo que eu implorasse a ti para sermos amigas? — ri.
— Você implorar por alguma coisa? Acho que não estamos falando da mesma pessoa. E provavelmente não tomaria a iniciativa de se aproximar de mim de qualquer forma.
— Bem, isto é algo que nunca saberemos ao certo. Todavia, eu posso vislumbrar claramente duas realidades… Numa tornaríamo-nos rivais, acho que meu ego não aceitaria de cara alguém que fosse tão boa quanto eu, ou até melhor, em alguma coisa e tentaria superá-la de qualquer forma para manter este suposto trono que vós alegais verem-me sentada. Já na outra… — a fita nos olhos — acho que eu te admiraria. Uma amizade platônica talvez?
— Por outro lado, acredito que eu evitaria contato. Mas se eventualmente nos encontrássemos a contra gosto, também acho que seria difícil eu não desenvolver certo apreço por você. De fato, amizade platônica é uma terminologia que resume bem a nossa possível relação nesta realidade hipotética.
— E então? Supondo que o tal plano de Johann dê certo, tu realmente não pensas mais em matar? Afinal vieste para o Japão somente por este motivo.
— Por mim já chega, pretendo abandonar esta missão e partir para outros alvos ao redor do mundo. O problema com que você devia se preocupar é com os outros, justamente por eu não ser a única assassina de feiticeiros do mundo. Contato que você não realize mais conjurações, acho que posso dar um jeito de ocultar a sua existência para a organização.
— Hmmm… logo posso encarar que de certa forma tu estarás me protegendo? É uma mudança bastante repentina para tomar referente à tua presa.
— Ao aparecimento deste quarto jogador, você deixou de ser minha presa. Então não é uma atitude tão surpreendente assim.
— É bom ouvir isto, o bom e velho “o inimigo do meu inimigo é meu amigo”. Vejo que posso considerar-te uma aliada a partir de agora. Ou quem sabe uma amiga? — estende a mão.
— Não vá tão rápido. Mas tudo bem, podemos dizer que sim — retribui o aperto de mão.
— Correto, podemos deixar intimidades para uma hora mais apropriada, contudo temos um inimigo em comum para derrubar agora — Mikoto fala determinada.
Acho que meu trabalho acabou por aqui. Foi até mais fácil do que planejei.
— Bem, eu vou indo. Planejo ficar de guarda para tentar fisgar alguma pista.
Elas simplesmente me ignoram e continuam a conversa. Realmente estou surpreso com a compatibilidade entre elas. Se isto fosse arquitetado, com certeza não daria tão certo.
No fundo, isto até me causa certa estranheza. Elas eram inimigas mortais até pouco tempo, como a relação delas pode ter mudado da água para o vinho com tanta facilidade? Talvez isso não seja influência minha, mas de algo muito maior?
Bobagem, preciso tirar esses pensamentos ruins da cabeça.
Bem… não há o porquê de me incomodar, meu plano foi um sucesso e é isso que importa.
6º Dia
02h00
Onde diabos eu estou?
Olho ao redor e observo apenas um nevoeiro denso a ponto de que mal consigo enxergar os meus pés.
Ah, compreendo. Novamente estou neste lugar no qual tenho acesso apenas em meus sonhos. Porém, há algo diferente. Será que é apenas impressão minha ou esta neblina está se tornando mais obscura a cada vez que venho até aqui?
Em seguida, duas silhuetas conhecidas formam-se difusamente diante de mim.
— O que foi? O que querem de mim? Por acaso, desaprovaram os meus métodos e agora se arrependeram de terem interferido neste universo? — pergunto sarcástico às crianças.
— Não, nós não fazemos juízo de valor sobre suas ações, este não é o nosso papel. São ações como a de qualquer humano, está agindo para chegar a um fim. Não estamos aqui para realizar qualquer julgamento, nossa posição está mais para meros espectadores. Vemos este mundo desta forma — alterna para o menino — Mas como tocou no assunto, imagino que tenha se enganado. Não somos nós que esboçamos algum arrependimento, mas talvez você que esteja com receio de suas decisões.
— No começo, posso dizer que sim. Valores éticos e morais estão impregnados na cabeça de qualquer humano e comigo não seria diferente, naturalmente estou preso a tais hesitações. Então só precisei quebrar estas travas mentais.
— E como você se sentiu após isso? Sentiu-se livre?
— Para falar a verdade, nem cheguei a ponderar muito sobre estes aspectos mais filosóficos. Pois não é como se eu tomaria tais ações meramente por esporte, eu estava condicionado a seguir estas decisões por um bem maior. Fiz o que precisava ser feito, simples assim, nada mais nada menos.
— Entendemos como você se sente. Porém, não chegou a se perguntar o porquê isso precisava ser feito?
— Não é óbvio que preciso salvá-las a qualquer custo? Necessito salvar a vida delas utilizando de qualquer meio disponível independente das consequências que isto acarrete… Mikoto e Ailiss precisam vencer este jogo e permanecer aliadas mesmo com a volta de suas memórias, esta é a única forma de ambas sobreviverem.
— Este não é o cerne da questão que levantamos. As duas são seres humanos como qualquer outro, não é como se o sacrifício dos estudantes dos quais você descartou hoje fosse ser ressarcido pela vida delas. Todas as vidas não teriam o mesmo peso diante do divino? E se for para o outro extremo, o materialismo, aí que há menos sentido ainda. Por que seres humanos precisam ser salvos em primeiro lugar? E por que elas especificamente precisam ser salvas?
— Se por acaso Deus existir e ele possuir tal posição, é problema exclusivamente dele. Para mim uma vida vale muito mais do que outra. No caso delas, cada uma vale infinitamente mais que todo restante da humanidade somada, incluindo eu mesmo. Isto era necessário ser feito porque eu quis que fosse assim, não preciso de qualquer justificativa racional, Ailiss e Mikoto são um fim em si mesmo para mim. Não devo satisfação nenhuma sobre isto para ninguém, nem para o divino e nem para o humanismo.
— É exatamente nestas palavras que queríamos chegar. Você não deve ou precisa salvá-las. Está fazendo isso porque quer. São coisas bastante diferentes. Trata-se da materialização dos desejos do seu ego na forma mais pura, livre de qualquer entrave metafísico.
— Que seja, use os termos que preferir, para mim não é uma questão relevante. Todavia, vocês já deviam imaginar que este seria o resultado ao cederem-me tal oportunidade, logo não há do que reclamar neste ponto.
— Para falar a verdade, estamos bastante satisfeitos com o rumo que tomou. Sempre ocorriam aqueles dois resultados, de novo, de novo e de novo, e já estávamos ficando bastante entediados com isso. Contudo, você conseguiu mudar drasticamente a linha temporal e isto não deixa de ser impressionante, merece os nossos sinceros parabéns. Sim, o mundo mudou e estamos ansiosos para vislumbrar este novo e desconhecido desfecho. Mas aparentemente não foi apenas o fluxo do tempo que mudou, não é mesmo?
Sim. As palavras de Miyu no fim estavam mesmo corretas. Se eu me olhar no espelho só me reconheceria pelas olheiras, pelos olhos azuis claros, pela cor do meu cabelo e pelas minhas feições. Pois o meu interior, a minha essência, já entrou num estado de putrefação.
Mas por elas estarei disposto a apodrecer por completo.