Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 58
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- Capítulo 58 - Por fim, Johann Geistmann desperta.
Em um piscar de olhos ela empurra minha cabeça contra o chão e pisa em mim com toda a força. Seu ataque foi tão rápido que eu sequer pude cogitar reagir.
— Como ousa a insult- — cessa a fala e para de pisar em cima de mim — Ei, esta palavra… realmente não nos conhecemos antes? De certa forma você parece-me familiar e agora com esta palavra soa ainda mais comum — Ela afasta-se alguns passos.
Ela também sente que me conhece? Imaginei que apenas eu poderia ter acesso a experiências futuras. Quem sabe todos nós estejamos suscetíveis a isso, basta encontrar o gatilho mental correto.
Pensei que este xingamento fosse o favorito dela ou algo do gênero. Infelizmente, por um lado, eu estava equivocado, o que resultou na minha cara esmagada e toda empoeirada por tê-la ofendido. Mas por outro, consegui avançar muito na minha comunicação com ela.
Tudo bem, então “Mistkerl” deve ter algum envolvimento com a minha pessoa. Dentro deste contexto, e considerando a sua personalidade tóxica, este xingamento só pode significar uma coisa.
— Acredito que esse seria o apelido que você me daria. Talvez a premonição esteja agindo em você também, mas numa escala menor. Agora acredita em mim? — pergunto enquanto me levanto.
— Não muito, ainda me parece uma explicação muito absurda. Mas confesso que estou curiosa em ouvir o que mais você tem a dizer — escora-se numa das paredes e volta o olhar afiado para mim — Então, o que quer de mim?
Ok. Estou progredindo. Agora já posso perguntá-la diretamente a respeito desta realidade.
— Como você reconheceu a informação que apenas um jogador devia conhecer, posso presumir que você também seja uma jogadora, correto?
— Não responda a minha pergunta com outra pergunta.
— Tudo bem, eu vou assumir que você seja uma jogadora. Logo, gostaria de propor uma aliança a você.
— E o que eu ganharia me aliando a você? Do meu ponto de vista você aparenta ser apenas um peso morto. No que poderia me ajudar?
Não é nada surpreendente. Uma resposta recheada de depreciação a mim. Realmente é a mesma Ailiss das minhas premonições, não poderia ser diferente. Por incrível que pareça, sinto-me tão reconfortado ao falar com ela. Mesmo em meio a tantos insultos, sinto uma forte sensação de saudosismo. Mais e mais o meu cérebro é inundado de informações e sentimentos em relação a ela.
— De fato, preciso admitir que eu não sou nada comparado a uma assassina profissional como você. Mas acredito que ter um jogador ao seu lado é no mínimo vantajoso. Não há nada a perder e quem sabe alguma de minhas previsões possa ajudá-la em algum ponto.
— Assassina profissional? Está ciente disso e ainda assim veio até mim? Vejo que estas supostas previsões realmente dão informações precisas como a minha ocupação. De fato, tudo isso que você está dizendo é muito estranho, mas colocando desta forma… Uma cooperação com você não é uma má ideia no fim das contas.
Acho que finalmente consegui convencê-la. Por hora, não devo mais estar correndo risco de vida. Aproximar-me de alguém como ela foi uma experiência um tanto apavorante, mas no fim, tudo acabou dando certo. Se eu montar um roteiro baseado nas minhas premonições e segui-lo à risca, acho que não há como dar errado.
— Então, podemos dizer que somos oficialmente aliados a partir de agora? — pergunto mais aliviado.
Ela se senta em uma mesa do depósito, cruza as pernas. Fica pensativa por alguns segundos e então responde de mau grado.
— Pode-se dizer que sim, mas preciso esclarecer alguns pontos antes disso — começa a citar suas condições contando nos dedos de um a três — Caso eu perceba qualquer tentativa de traição, eu te matarei. Se esconder qualquer informação crucial, eu te matarei. E se for conveniente abandoná-lo, não pensarei duas vezes.
Ao que tudo indica, não acabou tão bem como eu havia pensado. Esta proposta de aliança é tão imparcial que nem ao menos sei se poderia ser classificada como uma. Mas não há muito do que reclamar. Tendo ela trabalhando ao meu lado, já estou no lucro.
— Por mim está ótimo — respondo sorrindo amigavelmente.
— Vai aceitar um acordo unilateral destes tão facilmente?
— Então você também está ciente da absurdidade que está me propondo? Mas como disse, eu aceito.
— Interessante… imaginei que ao menos tentaria negociar a respeito da minha última consideração — encara-me surpresa.
Sinto que seria a atitude que normalmente eu tomaria. Todavia, esta situação é diferente. Até mesmo eu estou ciente de que estou tomando decisões infundadas, porém não consigo não me render a esta anomalia.
— E adiantaria de alguma coisa contrariá-la? — pergunto — Tenho certeza de que não flexibilizaria nem uma condição desta proposta de servidão.
— Neste quesito, você está correto. Porém, ainda me surpreende ter aceitado de tão bom grado.
— Caso eu não a “conhecesse”, com certeza iria relutar. É uma proposta no mínimo absurda. Entretanto, eu a conheço e sei que posso confiar plenamente em você.
— Se me conhecesse tão bem, iria saber que não deveria confiar cegamente em mim. Não ouviu o que falei? Basicamente, a partir de agora você é apenas uma ferramenta para mim.
Mesmo que seja o caso, eu já não me importo mais.
— Se isto fosse verdade, você provavelmente não iria se expor desta forma. E de qualquer forma, o que é benéfico para você automaticamente é para mim. O que eu mais quero é ajudá-la a escapar daqui, este é o meu objetivo.
Ela fica encarando-me seriamente por alguns segundos e então começa a rir de forma leve e comenta.
— Não sei se pisei forte demais na sua cabeça ou se é maluco mesmo. Mas de qualquer forma, Mistkerl. Você é realmente uma pessoa muito intrigante.
— Isso resolvido, eu gostaria de tratar a respeito de mais um tópico sobre a nossa aliança — aproximo-me dela.
— Já que não é sobre a sua submissão a mim, o que seria? — volta a ficar séria.
Desconfiada do jeito que é, não sei como ela vai encarar este tipo de proposta. Porém, é algo que preciso informá-la agora, pois quanto antes ela esteja ciente a respeito da presidente, melhor.
— A inserção de um terceiro membro em nossa aliança. Na verdade, é algo presente nas minhas premonições. Assim como tive a previsão de que encontraria você, também vi que ela seria a nossa aliada.
— E quem seria esta pessoa? É alguém confiável? — descansa o rosto em uma das mãos.
— Na verdade, falei poucas vezes com ela, e minhas previsões foram mais direcionadas a você. Então, gostaria de conversar um pouco com ela antes de apresentá-la. Afinal de contas, também preciso convencê-la a ajudar-nos com o jogo.
Sem falar que persuadi-la não será uma tarefa fácil.
— Tudo bem, deixarei isto por sua conta. Depois julgarei se ela é apta como aliada ou não.
Ela aceitou tão facilmente? Poderia dizer que estou surpreso. Talvez a sorte tenha começado a pender para o meu lado.
— Certo. Tentarei conversar com ela o mais rápido possível. Talvez amanhã pela manhã eu já tenha a convencido, então até o final do dia eu dou um retorno a você.
Porém, pela informação que consegui pegar do Haruki, não é tão fácil assim se aproximar da presidente. Bem, mas assim como a minha conversa com Ailiss, possivelmente a sorte novamente flua para o meu lado, pois o futuro em que nos encontraremos já foi traçado.
— Alguma instrução a mais para mim? — pergunto.
— Por hora, nada. Meus planos não constavam com a sua presença, então terei que reavaliar como iremos proceder daqui em diante. Amanhã, assim que terminar a sua outra tarefa, passarei alguma instrução para você e a tal outra aliada. Ademais está dispensado.
— Entendido, voltarei ao bloco principal e se eu descobrir mais alguma coisa através das minhas premonições a reportarei — despeço-me e volto pelo caminho de entulhos até a superfície.
21h09
— As luzes serão apagadas daqui a pouco! Tratem de estarem prontos até eu voltar! — ordena Takashi.
— Caramba, está mais cedo do que ontem. Até parece que estamos em um convênio — cochicha Shou.
— Pois é, desta forma não terminarei de ler a minha light novel a tempo — responde Manabu.
Aparentemente eles não estão nada contentes com isto, já eu acho estas normas excelentes para repousar.
Foi um dia muito produtivo. Consegui formar uma aliança com a Ailiss, o que já é meio caminho andado. Deste modo, preciso apenas descobrir quem é o terceiro jogador e tentar explicar a situação para a presidente. Acredito que o conselho estudantil possa nos ajudar nesta questão.
— Ei, Johann.
Meus ouvidos simplesmente filtram a tentativa de Manabu e Shou de chamar a minha atenção. E prossigo recapitulando as informações que obtive durante a tarde.
Esta habilidade de premonição é muito precisa. Seu rosto, olhos, cabelos, ela estava igualzinha ao meu sonho. Porém, o que mais me surpreende é a questão emocional, ao encará-la diretamente fui banhado por sentimentos que provavelmente floresceriam no futuro.
— Jocchi, você está nos ouvindo? — passa a mão sistematicamente em frente aos meus olhos.
No entanto, o que é esta sensação tomando o meu peito? A princípio o que me moveu até ela foi apenas minha curiosidade em relação a estes flashes e déjà vus. Todavia, após uma breve conversa estou me importando com a segurança dela como nunca me importei com ninguém antes, nem comigo mesmo, tanto que aceitei aquela proposta absurda sem nem ao menos hesitar. Tudo isso é de uma estranheza da qual mal consigo compreender.
Ao pensar nessa garota, que supostamente acabei de conhecer, sinto tanto carinho. Não é possível que logo eu esteja sentindo…
— Acorda, Johann! Por favor, dê algum sinal de vida — Shou corta meus pensamentos sacudindo-me intensamente.
— Pare com isto! Está maluco?! — replico.
O que esses doidos estão fazendo? Não posso nem mesmo raciocinar em paz.
— Não grite com a gente! Você estava estático, achamos que estava passando mal! — Shou responde gritando.
— Não concluam nada precipitadamente. Estava apenas concentrado em algo — respondo afastando os dois.
— Ei, que gritaria é esta?! Já não falei para se prepararem para dormir?! — Takashi entra reclamando no dormitório.
— Sinto muito — diz Shou voltando para o seu saco de dormir.
3º Dia
07h58
Ailiss.
Mikoto.
Esses dois nomes não param de fluir em meus pensamentos por um instante sequer. Cada vez mais este vínculo emotivo atemporal que possuo com elas fica mais evidente.
Desperto novamente de uma conturbada e intensa confusão mental. Objetivamente não descubro mais nada de relevante para colocar em prática. O cenário no qual eu estava com elas continua bastante nebuloso, apenas sei de que preciso reuni-las para que tenhamos alguma chance de vencer este jogo.
Dentre as minhas premonições em sonhos, visualizei apenas alguns flashes de ocorrências futuras, como a minha interação com a presidente do conselho estudantil, Yukihara Mikoto.
Obviamente o cenário de fundo é a própria sala do conselho, o que não me traz nenhuma informação nova. Logo, apenas reforço a minha tese de que preciso ir até lá para conversar com ela, assim como fiz com Ailiss ontem à tarde.
Entretanto, o ponto mais relevante que pude retirar dessa experiência de projeção futura sem dúvidas continua sendo na questão emocional. Isto é bastante confuso, é tão estranho me sentir desta forma. Não apenas por nunca ter tido este tipo de emoções, mas por terem surgido de forma tão abrupta.
É difícil crer que sem sequer ter conversado com Mikoto, através dos meus sonhos já foi possível florescer meus sentimentos por ela. Ao mesmo tempo, também fiquei mais esclarecido em relação à Ailiss.
Eu não sei exatamente qual o tipo de relação que teríamos no futuro, pois me lembro de que a chamava pelo primeiro nome em vez de seu cargo.
Porém de uma coisa tenho certeza, acabaria no decorrer do jogo pela primeira vez me apaixonando. E curiosamente por duas garotas ao mesmo tempo…
Chegou ao ponto de eu simplesmente ignorar a possibilidade de ser algo implantado em mim, o que racionalmente falando parece ser a hipótese mais provável. Como eu poderia criar sentimentos tão fortes devido a eventos futuros premeditados? Porém, se isto é falso ou legítimo tornou-se uma questão irrelevante.
— Jocchi, você está ainda mais estranho do que ontem… tem certeza de que está tudo bem? — Manabu comenta aproximando-se de mim.
Estranho? Talvez sim… estou encarando o além desde que acordei. Acredito que eu deva ocultar este novo “eu”, pois transparecer tal mudança poderá gerar uma série de implicações. Não sei até que ponto ações erradas minhas podem tirar-me do rumo das premonições que tive, e isto atrapalhará muito os meus planos.
— Já falei que não é nada disso que vocês estão imaginando. Parem de presumir que estou pensando em garotas.
— Eu nem toquei neste assunto, é você que está dizendo — Ele responde desconfiado.
De fato, já estou tão acostumado a esse ser o tipo de interrupção ocasionada por ele e por Shou, que já presumi que fosse caso.
— De qualquer forma, estou apenas pensativo. E vocês também deveriam estar… isto aqui não é um acampamento. Estamos correndo risco de vida, é uma situação muito séria. Não se lembra do que aconteceu com o Asahi e com o professor anteontem?
Sim, é preciso ter isto em mente. Estamos todos em perigo. Loucos são eles que estão relevando este gélido fato. Estou perfeitamente normal em pensar no melhor para minhas duas preciosas amadas.
— Se você está dizendo… tudo bem.
— Ah, finalmente o Johann voltou a si? — Shou entra no dormitório, para e ao me ver comenta.
Acho que devo prosseguir mantendo o meu típico padrão de respostas. Bem, é um pouco mais difícil imitar a si mesmo do que parece.
— Sempre estive perfeitamente normal. Vocês que não estão batendo bem da cabeça. Se bem que nunca foram muito sãos mesmo.
— Em todo caso, é melhor caírem fora daqui o mais rápido possível. O vice-presidente está voltando para dar uma bela mijada em qualquer um que ainda estiver no dormitório.
Verdade, quase me esqueci deste cara problemático. A sensação de que ele será um incômodo num futuro próximo salienta-se cada vez mais.
— Poxa, Shoucchi. Deveria ter me avisado antes — Manabu começa a guardar suas coisas desesperadamente.
— Que cara mala. Nem a Kaichou está agindo desta forma no dormitório feminino.
Assim como eles comentaram, mesmo sem nem um incidente ter ocorrido, a rigidez de Takashi chega a superar a de Mikoto. Isto possivelmente se dá por sua veneração a ela, o que nos torna inimigos naturais.
No entanto, há outra possível situação que me veio à mente. Takashi pode ser o terceiro jogador. Repreendendo a massa desta maneira, talvez ele ganhe em algum aspecto para ocultar sua posição dentro do jogo.
Em ambos os casos, as consequências tornam-se óbvias. Mais cedo ou mais tarde entraremos num conflito.
Como um jogador, ele precisa ser eliminado para que Ailiss e eu sobrevivemos, ao mesmo tempo em que o considero uma possível ameaça para Mikoto. Caso contrário, eu admito, terei de enfrentá-lo meramente por capricho porque não o quero mais perto dela.