Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 117
- Início
- Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem
- Capítulo 117 - E o fim é o começo. (1/2)
23h23
Mais uma vez vejo-me deitado entre elas. Este é o modo no qual passamos boa parte do nosso tempo enquanto descontraíamos neste interminável looping. Porém, é notória a nossa diferença espiritual em relação às outras vezes. Agora, nossos corpos podem estar próximos, mas nossas mentes não estão nem um pouco sintonizadas na harmonia romântica costumeira.
O ato em si foi desprovido de emoções. O que era pra ser a representação física do nosso amor, foi algo silencioso, mecânico, opaco, monocromático e sem contraste. Não pude mais ver seus olhos brilhando em cores, o azul celeste e o vermelho pulsante desapareceram totalmente de suas íris. É quase como se fossemos apenas cascas vazias.
Espero que uma experiência desconfortável dessas não precise se repetir.
Ademais, acredito estar tudo de acordo. Fizemos o bastante para garantir que estejam prontas para o nosso escape no último dia da iteração.
Em todo este tempo, certamente não é a primeira vez que conseguimos uma ligação deste gênero, todavia sempre recorríamos ao suicídio via disparos para evitar uma lenta e dolorosa morte sendo rasgados pela lâmina da Morte. E então ao saltar para o passado, os seus corpos voltavam às circunstâncias originais.
É irônico pensar que se por acaso nós tivéssemos ignorado a dor e adotado como padrão a tentativa de fuga pelo portão da frente, poderíamos coincidentemente ter encerrado isto muito antes.
Por um lado agradeço que não tenha ocorrido, pois esta infinidade de anos foi um tempo insubstituível que passei com elas. Por outro, seria muito melhor não termos que tomar tal decisão. Se esta tragédia ocorresse naturalmente, creio que seria um peso muito mais leve que precisaríamos carregar daqui em diante. Infelizmente, precisarei seguir com este fardo nas costas de ter ativamente seguido por este caminho.
…
Nesta noite não consigo dormir, apenas observo as minhas duas amadas descansarem. Mesmo dormindo os seus rostos não deixam de expressar melancolia. Por minhas decisões egoístas terei um preço a pagar, terei de ampará-las pelo resto da vida. Assim farei com todo o prazer, é o mínimo que poderia se esperar da minha parte por submetê-las a tal sacrilégio.
Apesar de eu também ser atingido indiretamente, o vínculo delas com o pecado continua sendo muito maior. Afinal há uma ligação direta das duas com os sacrifícios, fisicamente e espiritualmente.
Ailiss abre os olhos, e apenas encara o teto.
O silêncio à nossa volta é quase absoluto. Tudo flui como se o mundo estivesse prestes a desaparecer. Cada vez mais a mentira deste mundo se torna mais evidente.
Não acho que ela queira ouvir alguma palavra de reconforto. Neste instante, a única coisa que deve querer é o próprio esquecimento. Todavia, a ignorância é uma dádiva que não pode ser mais alcançada. Haverá uma sombra que nos perseguirá até o dia da nossa morte.
Teria sido melhor fazê-las atravessar sem contá-las a respeito da minha descoberta? Talvez isso tornasse as coisas mais fáceis para mim por hora. Contudo, tenho certeza de que depois do ocorrido elas compreenderiam muito bem o que teriam perdido. E sem falar que isso seria cuspir em cima da minha jura de ser totalmente honesto com elas.
Alguns minutos depois é a vez de Mikoto despertar e, percebendo que todos já estamos acordados, decide comentar o caso em tom taciturno.
— Sempre imaginei que se algum dia como este chegasse, seria em um clima absolutamente distinto.
— Posso dizer o mesmo, se houvesse uma solução, achei que a encontraríamos e celebraríamos a nossa esperança — respondo.
— Não é sobre isto que eu estava falando. Pensei que eu poderia entregar amor e cuidados assim como minha mãe fez por mim naquela horrorosa noite — esfrega a mão sobre a própria barriga.
Entendo. Interpretei mal a sua colocação.
— Já eu sequer cogitava isso. Minha profissão jamais permitiria e ainda não consigo ver-me realizando tal papel. Acho que teria um desempenho terrível — responde Ailiss esfregando os olhos.
Ademais, esta é uma boa oportunidade para desviar um pouco a atenção delas para outro assunto. Talvez não seja o método mais sensato, mas pode distraí-las de alguma forma.
— Na minha posição, acho que compartilho da mesma autocrítica de Ailiss. Se estivéssemos no mundo externo e recebesse a notícia, acho que nem saberia como reagir. Eu acredito que não teria a maturidade necessária para arcar com essa responsabilidade. Talvez começaria buscando estabilidade financeira para fornecer conforto e me tornar um bom provedor, mas no quesito doméstico eu acredito que seria um desastre — comento.
— No fim das contas, penso que eu teria de cobrir a falta de competência de vós. Mas ao imaginar nossas vidas desta forma, não me parece ser tão ruim assim. Claramente levaríamos algum tempo para pegar o jeito, sofreríamos um pouco no começo. Mas a cada ano que se passasse, veríamos que nosso esforço teria valido a pena — pausa — Seriam o símbolo do amor que construímos por tanto tempo.
— Até consigo visualizar a cara de pavor do Mistkerl recebendo a notícia, seria bastante engraçado — Ailiss produz um sorriso amargo — Eu provavelmente também entraria em choque. Teria uma mudança drástica em minha vida, e iria precisar muito da sua ajuda nos primeiro meses, Mikoto.
— Teu caso de fato seria complicado, estando sozinha possivelmente transformaria a casa numa base de treino militar — sorri — Contudo, nós duas em conjunto certamente conseguiríamos prover uma boa educação para eles.
Não sei se teremos outra oportunidade de conversarmos de forma descontraída e verdadeira. Então este é um momento que quero guardar com todo carinho em minhas lembranças.
— Já a comida infelizmente ficaria somente em suas mãos, vimos o que aconteceu quando tentou nos passar essa tarefa — manifesto-me respondendo a Mikoto.
Ailiss me dá uma leve cotovelada.
— Então, basicamente seria eu trabalhando em turno integral. Você assumiria as tarefas domésticas e Ailiss trabalharia talvez meio período fora? — continuo.
— Acho que sim. Como tive a ausência de meus pais na infância, gostaria de fazer justamente o oposto. Então não me importaria de ficar em casa, pois iria querer dá-los toda a atenção que precisassem. Todavia, tu deverias ao menos dedicar um dia da semana a eles também, ou sentiriam a tua falta. Definitivamente a figura paterna é algo importante.
— Por mais misantropo que eu seja, acho que poderia levá-los ao zoológico ou algo assim durante os domingos. Já até consigo imaginar o estresse que seria perdê-los de vista.
— Desastroso como tu és, certamente eles se esconderiam e te fariam de bobo numa situação dessas — replica Mikoto com um suave sorriso.
— Se puxarem as mães… não duvido que seja o caso. Visto que me atormentar sempre foi a maior diversão de vocês duas.
— Neste sentido, acredito que eu também iria tirar um dia da semana para ensiná-los autodefesa, como artes marciais, esgrima e artilharia — comenta Ailiss.
— Não é um exagero? Eles não teriam a necessidade de seguir a mesma carreira que a sua — replico.
— Refiro-me a possíveis brigas na escola. Eles precisam de um treinamento militar para conseguirem se defender.
Artes marciais tudo bem… mas em que situação normal precisariam saber artilharia? Além do mais, que escola no mundo permitiria seus alunos ir para aula portando uma arma na mochila?
— Tudo indica que eles seriam bem comportados na sua presença. Pense só no medo que eles teriam de zangá-la.
— De fato… nós seriamos uma família um tanto quanto pouco usual, todavia é engraçado só de imaginar a verdadeira confusão que as nossas vidas poderiam se tornar. Teríamos muito trabalho para cuidar de tantas crianças — comenta Mikoto.
— Tantas crianças? Eu imaginava que no máximo teria um filho com cada uma de vocês. Quantas você pretendia ter?
— Boa pergunta… — levanta o rosto pensativa — acredito que no mínimo eu gostaria de ter cinco filhos. E para não ser injusta com Ailiss, ela também teria a mesma quantidade, totalizando dez filhos seus — vira-se para mim e pergunta — O que achas?
Dez?! Somente de pensar em algo assim já fico assustado. Uma criança berrando já é algo irritante, imagine um exército delas.
— No mínimo? Isto não é demais? Pensava que alguém organizada como você teria um pouco de prudência no planejamento familiar.
— É claro que eu penso neste aspecto, porém ver-te desesperado ao ter sua atenção cobrada por tantas crianças seria realmente muito engraçado. Engraçado ao ponto de eu deixar esta minha cautela de lado — ri — É uma cena que eu definitivamente gostaria de ver.
— Para ser sincera, não precisa se preocupar em ser justa comigo. Mas agora que você tocou no ponto, acredito que iria querer colaborar com você — fala Ailiss.
Entendo. Então, em última instância, o que vocês querem mesmo é rir da minha cara? Já deveria estar acostumado com isso.
Mas confesso que não seria algo tão ruim assim… Se eu fechar os olhos até consigo escutar os sons delas correndo pela casa e me atormentando.
Isto definitivamente seria algo estressante, visto que não tenho muita afinidade com barulho, energia e vitalidade. Apenas de imaginar já consigo sentir o cansaço acumulado de um longo dia trabalho somado ao fato delas não me deixarem descansar ao chegar em casa. Mas é um cansaço que valeria a pena, porque olhando um pouco mais adiante, Mikoto e Ailiss estariam ali comigo.
Estaríamos juntos como agora, dia após dia, ano após ano. A diferença é que não estaríamos mais congelados no tempo. Por um lado teríamos de nos sujeitar ao envelhecimento, mas ao mesmo tempo poderíamos ver os frutos de nosso amor florescendo.
— Bem, não é como se não pudéssemos seguir um futuro assim — comento — A priori nada nos impede.
— Não temos direito a isto — retruca Ailiss em curto tom.
Em seguida, Mikoto solta um suspiro e completa.
— Tu realmente achas que, após o que faremos, deveríamos sequer cogitar ter o direito de ter outros filhos?
— Vocês têm toda a razão…
Se fosse tão fácil assim nos recuperarmos, isto não seria um julgamento para o começo de conversa. Eles não nos deixariam viver uma vida tranquila de modo tão fácil. Este ponto foi metricamente calculado para nos abalar para sempre.
Seguro a mão das duas e mais uma vez me desculpo.
Eu juro que não queria que fosse assim. Não queria que tivessem seus futuros roubados desta forma. Mas infelizmente estas fantasias ficarão apenas nas nossas imaginações.
7º Dia
20h00
Aguardamos até o tempo limite se aproximar para ter um melhor desenvolvimento. Em seguida, abatidos caminhamos uma última vez pelos arredores da escola nos despedindo da vida que levamos até aqui.
Chegou a hora de nos libertarmos desta eterna prisão, todavia a sensação de liberdade é a última coisa que passa pela minha mente. Sinto-me cada vez mais preso em meus próprios pecados.
Fito os arredores e me lembro dos nossos tempos de diversão na neve e realizando brincadeiras infantis. São de fato memórias inesquecíveis, aqui nestas infinitas repetições, além do inferno na terra, também tive a oportunidade de reconstruir tanto a minha infância quanto viver o amor juvenil que passaria despercebido pelo colegial.
Ironicamente, neste ambiente ocorreram os piores e os melhores momentos da minha existência. E agora, depois de praticamente uma eternidade tudo será deixado para trás.
Que sensação estranha é esta? Definitivamente já senti algo assim antes, porém faz tanto tempo que meu corpo já se esqueceu.
Seria o temor pelo futuro? A incerteza? Sim, em um mundo de repetições, tanto pelo bem quanto pelo mal de uma coisa eu tinha certeza: o mundo irá se reiniciar. Não havia nada com que me preocupar, pois independente do resultado tudo voltaria para o zero. Mas a partir de agora novamente seguiremos rumo a um futuro, ao desconhecido, e não há garantia nenhuma que seja para melhor.
Nesta silenciosa noite, a nevasca se torna mais leve, e o vento para de soprar. Deixando assim o som dos nossos passos nos corredores ecoando por este ambiente deserto.
Após olharmos pela última vez o pátio da escola coberto por neve, vamos enfim ao nosso destino final, o portão principal.
Marcamos nossas últimas pegadas nesta eternidade.
— Ainda não posso acreditar que faremos isto mesmo… — murmura Mikoto observando o horizonte.
— O que mais podemos fazer? Ou fazemos isso, ou seremos pegos pelo decaimento — replica Ailiss.
Flocos de neve caem lentamente na escuridão da noite, apenas a leve iluminação da escola nos apresenta o inimigo logo à frente.
A Morte materializada espera pacientemente o prazo acabar para colher suas oferendas. Todavia, quando nos aproximamos, posso sentir algo de diferente nela. Ela provavelmente sabe a atrocidade que viemos fazer aqui.
Sim, ela sempre soube as nossas intenções.
Não há glóbulos oculares na sua face, apenas dois obscuros buracos negros, porém ainda assim é possível notar que ela foca a sua visão nas duas garotas à sua frente.
Neste silêncio perturbador, a única coisa que posso ouvir é a respiração alterada das duas. Elas claramente não se conformaram com este desfecho, mesmo que o seu racional tenha cedido a minha proposta, o lado instintivo delas tenta lutar contra isso a qualquer custo.
A neve parece cada vez cair mais lenta, não sei mais dizer se isso é influência da presença da Morte ou se é a minha percepção temporal que está alterada.
No fim consegui encontrar um meio de salvar a vida das duas, mas isto custou trazê-las para o mesmo mundo sem cor no qual eu costumava existir.
O que me faz pensar que estive enganado este tempo todo. Ao tê-las ao meu lado nunca significou que elas me salvaram, mas sim que eu as condenei a mesma pena que a minha.
— Mikoto, Ailiss. Chegou a hora, não temos muito tempo sobrando — comento.
As duas me fitam em melancolia e assentem.
Elas irão conseguir? Não queria pensar em postergar isto mais ainda…
— Podemos tentar numa próxima repetição caso acreditem não estarem preparadas — continuo.
— Precisa ser agora — fala Ailiss.
— Não acho que terei condições de passar por esta decisão mais uma vez — diz Mikoto.
Faço das suas palavras, as minhas. Não quero passar por isto nunca mais. Sinto-me imundo da cabeça aos pés pelas ações que tomei e as fiz tomarem.
Elas dão-se as mãos, e com seus dedos totalmente entrelaçados dão um primeiro passo.
Assim caminham vagarosamente rumo ao portão.
— Perdoai-me — murmura Mikoto.
Ailiss apenas cerra o punho com toda força e caminha cabisbaixa ao lado da outra.
A cada passo que eles dão em direção a Morte, mais agoniado fica meu coração. Sinto que o meu peito pode se partir ao meio em qualquer instante. Conforme a trilha deixada por suas pegadas cresce, o nó em minha garganta fica tão forte que mal consigo respirar.
Isto é tão frustrante…
Desta vez não posso sujar minhas mãos de sangue no lugar delas. Tive que deixar o papel mais doloroso de todos por sua conta e risco. Sinto-me tão impotente por não ter como amenizar de nenhuma forma este fardo.
Desculpem-me. Desculpem-me. Desculpem-me.
Colocá-las numa condição dessas é a última coisa que eu poderia querer. O quanto eu tentei… como queria poder simplesmente morrer em vez de vê-las passar por isso. Infelizmente não é possível, e estas repetições infernais fizeram-me o favor de me ensinar isso da pior forma.
Em um pico de ansiedade noto que enfim as duas colocam seus pés para fora do perímetro da escola.
Chegou a hora, agora é tudo ou nada. Nossa última esperança está nesta última jogada.
Percebo que a Morte se aproxima de um modo diferente e então fica parada na frente de ambas. Creio que esteja averiguando as oferendas que lhe foram trazidas.
Alguns segundos depois, ela estica o braço com a foice e realiza o corte na região de seus ventres.
Então desta forma Mikoto e Ailiss puderam desistir do jogo pagando o preço de uma vida, as vidas de nossos futuros filhos.
Ambas imediatamente caem no chão repleto de neve e eu corro em direção a elas ao mesmo tempo em que a Morte desaparece gradualmente.
Droga, eu deveria ter imaginado que de alguma forma isto acabaria atingindo elas. Preciso socorrê-las imediatamente!
Conforme me aproximo do local, noto que todo o cenário a minha volta começa a se desestabilizar. É como se o próprio espaço estivesse se trincando como vidro. As rachaduras crescem pelo horizonte e se estendem por todo o céu. O silêncio é tomado por um intenso barulho de vidro se rompendo incessantemente.
Enquanto a realidade sobrenatural entra em colapso, continuo correndo em direção a elas. Esta curta distância que eu deveria percorrer num instante parece cada vez mais longa. A trilha de suas pegadas não aparenta ter fim. Todavia, continuo correndo em direção ao que parece ser uma miragem, as luzes da cidade.
Deu certo. Seja para o bem ou para o mal, o meu plano funcionou. Bem, este final já nos estava reservado há uma eternidade. Portanto, não sei se pode ser interpretado como uma vitória nossa.
Esta visão assemelha-se muito com o que pude vislumbrar da criação do jogo através dos meus sonhos. Toda esta realidade sobrenatural criada artificialmente está se desmontando aos poucos. O tempo interno e externo gradualmente passam a se sincronizar, concluindo a transição de uma realidade para a outra.
Enfim, alcançamos a nossa tão aclamada “liberdade”.