Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 114
- Início
- Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem
- Capítulo 114 - Melancolicamente, Ailiss von Feuerstein… (2/2)
1º Dia
10h27
O nascer do sol, o pôr do sol. O badalar do relógio.
Seja qual for a unidade de medida que se use para estimar o tempo, tudo parecia perder sentido na imensidão que é a eternidade. Foi isso o que eu senti por todas aquelas repetições, meu desespero era tanto a ponto de render-me por completo a insanidade.
E agora não é diferente… independente da forma de medida, eu já perdi as contas de quanto tempo decorreu desde os primeiros sintomas de Mikoto.
Não demorou muito para os sintomas também chegarem a Ailiss, e provavelmente eu serei o próximo da lista. Por sermos jogadores o avanço dos sintomas do decaimento é bastante limitado, porém tanto o quadro dela quanto o de Mikoto foram se agravando lentamente ao decorrer das iterações.
Elas sabem muito bem que nós três estamos apenas esperando a nossa tortura eterna chegar e não há nada que possamos fazer a respeito.
Como prisioneiros no corredor da morte, nós apenas aguardamos o dia da nossa sentença. Todavia com um detalhe que faz toda a diferença: ao menos a pena do prisioneiro tem um fim.
Se os sintomas continuarem avançando, acabaremos apenas renascendo e caindo ao chão em agonia por uma semana e isto se repetirá infinitamente…
Estar consciente desse terrível destino somado à aceitação de que não existe nenhuma solução as fez simplesmente sentar e esperar pacientemente por suas sentenças.
Ailiss sempre se move até a sala do conselho estudantil, onde ela e Mikoto ficam escoradas uma a outra aguardando até a próxima iteração. Imagino que façam isso pois sabem que quando as duas perderem a capacidade de andar não poderão ficar juntas nunca mais.
A única certeza que terão é que dentro de alguns metros de distância, a sua amada estará sofrendo da mesma tortura.
Isto torna tudo mais horripilante… neste ponto, qualquer tipo de castigo por dor física não me amedronta mais. Poderia até mesmo cair num lago de fogo, o que não suporto é vê-las na mesma situação e não poder fazer nada.
Todo aquele tempo que lutamos foi em vão? Estávamos fadados a este desfecho desde o começo?
…
Eventualmente, quando a sanidade dá sinais de vida em minha mente, eu passo pela sala do conselho para ver como ambas estão… mas no fim sempre acabo me suicidando. Vez após vez, eu tento confrontar a Morte e por conta disto morro da forma mais agonizante possível, mas minhas pernas não param de se mover até a saída.
Não consigo aceitar este destino para elas, e sem nenhuma escapatória o meu irracional decidiu assumir o controle dos meus braços e pernas.
Sou forçado a lutar incessantemente desta forma.
…
Vez após vez, na ausência de energias, meu corpo desmorona ao chão do mesmo modo que as minhas esperanças se esvaem cada vez mais.
O meu cansaço é tanto que me permito ter alguns minutos de tranquilidade, mantenho-me imóvel enquanto encaro o azul do céu. As nuvens viajam calmamente como em um dia normal. Sim, para elas isto pode ser só mais um dia comum. A felicidade ou o sofrimento humano só tem valor para nós mesmos… A minha dor e a dor das minhas amadas só tem peso para mim, e por isso sou o único que irá se mover neste mundo estático.
Escuto passos aproximando-se, e então depois de bastante tempo posso ouvir uma serena voz.
— Tu não te cansas de morrer assim? Aonde tu pretendes chegar repetindo a mesma ação inúmeras vezes? Não importa quantas vezes tu tentes, se o método não mudar o resultado será o mesmo — indaga Mikoto.
Para ser sincero, muito. Se dependesse apenas de mim, acredito que nem sequer tentaria lutar contra a correnteza.
— Sabe de que isso que está fazendo não adianta de nada, né? — diz Ailiss.
— Estou ciente disso… mas enquanto eu conseguir me rastejar tentarei enfrentar este destino. Preciso encontrar um meio de salvá-las deste inferno custe o que custar — apoio minhas mãos para trás e me sento no chão — Sei o quão irracional estou sendo, mas por enquanto não consigo pensar em mais nada além de enfrentar a Morte cara a cara.
— Bem… faça como quiser. Todavia, dessa forma você está apenas antecipando o seu próprio inferno — Ailiss desvia o olhar.
— Johann, venha. Não há mais nada que possa ser feito, talvez devamos nos conformar com isso. Vamos descansar um pouco. Nem de longe este destino era o que nós desejávamos, entretanto podemos pelo menos ficar juntos até essa hora chegar — fala Mikoto.
Posso claramente ver o cansaço no rosto delas. Ambas também estão exaustas deste mundo, e os sintomas do decaimento ainda estão muito brandos, ou seja, o nosso inferno mal chegou.
Comparado com você, não sou nenhum perito em ler as entrelinhas. Mas de uma coisa eu tenho certeza, vocês jamais aceitariam um destino assim. Então por quê? Por que querem me fazer desistir?
Não é difícil ligar os pontos para compreender as suas intenções.
Estão me fazendo o favor de devolver a minha doce mentira, não é?
— Realmente, estas mortes são dolorosas a ponto de dizer que o inferno já chegou para mim. Mas quando eu não conseguir mais me mover, quando a degeneração do decaimento me quebrar por inteiro, só restará me lamentar por não ter tentado mais — respondo enquanto me levanto — Só restará arrependimentos de não tê-las salvado.
Caminho em direção ao portão mais uma vez.
— Ei, Johann, espera um pouco! — Mikoto tenta me alcançar, no entanto é impedida.
— Não há o que possamos fazer. Este é o caminho que ele escolheu traçar — diz Ailiss a segurando pelo ombro.
Com o canto do olho, observo as duas com os rostos cabisbaixos enquanto fitam o meu distanciar.
Não há espaço no meu coração para mais arrependimentos.
Avanço mais uma vez, o tempo congela e sou brutalmente ceifado.
…
Às vezes tenho a impressão de ficar preso num limbo de existência entre uma repetição e outra. Durante este limbo, penso e repenso sobre métodos que ainda não tentamos aplicar para encerrar o looping… porém honestamente nenhuma nova ideia me vem à mente.
Existem oito finais possíveis. Deste já decorreram sete e o looping não se encerrou: Nenhum sobrevivente, cada um de nós mortos, cada um de nós vivos. Resta apenas nós três sobrevivermos ao “jogo”.
Se existe alguma forma de encerrar o looping é assim. Mas as regras do jogo são claras, necessita-se que um jogador seja morto o que faz cair numa das condições de looping.
Caso as leis que regem este looping e as leis que regem o “jogo” não tenham nenhuma convergência, isto de fato torna-se impossível. Estamos presos numa contradição.
Para isto acabar todos precisamos sobreviver, e para sobrevivermos este jogo precisa acabar. Mas afinal, qual destes desfechos é a consequência do outro?
Avanço. Avanço. Avanço.
Ceifado. Ceifado. Ceifado.
Tentar abandonar o jogo significa pagar com a própria vida… e isto também implica numa condição de looping.
No fim eu sei que não existe solução… apenas continuo teimosamente atacando.
Ceifado.
Ceifado. Ceifado. Ceifado. Ceifado. Ceifado.
Ceifado.
Em meio a tantas mortes, começo a rememorar a forma que o jogo foi anunciado. Como eram mesmo aquelas regras? Eu ouvi tantas e tantas vezes que não posso ter esquecido.
Fecho os olhos e me concentro no passado. Naquele infinito passado.
O ressoar do alto-falante, a voz daquelas crianças… escutei aquilo por tantas vezes que ficou gravado em minha alma. As palavras que incessantemente reiniciavam o inferno que eu estava vivendo.
“Há apenas três jogadores, todavia não se preocupem, todos podem participar! E as regras também são muito simples, o jogo acaba imediatamente com a morte de um dos três jogadores.
Porém, o responsável pela morte do jogador em questão sofre uma penalidade, seja ele outro jogador ou não, terá o mesmo fim de sua vítima. Ao todo o jogo dura 150 horas contando a partir de agora.
E não menos importante, ninguém é obrigado a participar! Vocês podem simplesmente desistir saindo pelo portão principal, dessa forma terão sua alma consumida e desaparecerão. Não esqueçam: o preço para sair do jogo é uma vida. Os três jogadores, logo perceberão que são os próprios.”
Pelo que eles falaram, realmente não há como escapar. Será que devo simplesmente parar e aguardar o decaimento espiritual me consumir? Sim, desistir…
A beira de desistir, suas últimas palavras ainda ecoam na minha cabeça.
“Vocês podem simplesmente desistir saindo pelo portão principal, dessa forma terão sua alma consumida e desaparecerão. O preço para sair do jogo é uma vida”.
Já estou desistindo deste jogo há tanto tempo, mas o jogo insiste em me fazer voltar. Não há como desistir sem que eu morra no processo.
“O preço para sair do jogo é uma vida”.
Espere um pouco… o japonês não é a minha língua materna, mas não seria a própria vida?
“Uma vida”.
Se isto se referir a um sacrifício, de certa forma já ocorreu na minha tentativa de fuga em conjunto com a escola toda. O preço que eu paguei foram muitas vidas e mesmo assim não consegui sair.
Não consegui porque eles eram jogadores passivos, ou meros espectadores. Tanto eles, quanto nós jogadores, já fazemos parte do jogo e ao sairmos pagaremos com nossas próprias vidas, como as minhas tentativas de fuga e o experimento de Haruki muito bem demonstraram.
Então precisaríamos de alguma outra forma de sacrifício? De alguém externo a este ritual? Pagar uma vida à Morte pela libertação. Para salvar Ailiss e Mikoto, necessitaria de duas vidas…
O que os demônios queriam dizer com isso?
Em meio a mais uma das minhas tentativas, onde novamente sou ceifado, algo fica muito claro para mim.
Como uma luz no fim do túnel, a resposta pela qual tanto procurei materializa-se na minha frente.
O preço a pagar é uma vida.