Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 105
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- Capítulo 105 - Definitivamente, Ailiss von Feuerstein deve ficar longe da cozinha. (2/2)
14h49
Ficamos brincando de nos esconder por muito tempo e devido a isso o nosso almoço atrasa por algumas horas. São quase três horas da tarde e por causa disso Ailiss e eu nos disponibilizamos a ajudar Mikoto para terminarmos mais rápido.
— Como o preparo da comida que eu planejava fazer era bem rápido, pensei que onze da manhã era muito cedo para começar a cozinhar. Mas devido à irresponsabilidade de certa pessoa, estamos totalmente atrasados — comenta Mikoto pressionando seus dedos contra a testa.
De praxe, a responsabilidade das decisões que dão errado sempre recai sobre a minha pessoa. Já deveria estar mais acostumado com isso.
— Eu só sugeri a brincadeira, quem postergou a duração dela foram vocês duas — me defendo.
— Nós estávamos jogando novas rodadas para que tu ao menos fosse capaz de vencer uma única partida, no entanto, tu mostraste-te totalmente incompetente para isso. Deverias agradecer a nossa boa intenção ao menos.
Quanta mentira, vocês duas apenas se empolgaram em me humilhar sistematicamente. É tão difícil admitir isso?
Antes que eu pudesse contra argumentar, a outra garota se manifesta.
— A culpa foi sua — insiste Ailiss com um olhar mortal.
Tudo bem, então a culpa foi minha. Eu realmente preciso de um sistema judiciário para me proteger do autoritarismo dessas duas garotas.
— Antes de começarmos e passar-vos as tarefas, gostaria de me certificar de algo. Qual a experiência de vós na cozinha? Sabeis preparar algum tipo de prato? — pergunta Mikoto enquanto organiza os ingredientes.
Nunca me preocupei muito em aprender a cozinhar decentemente. Acho mais prático comprar comida congelada. Ainda assim, acredito que possa auxiliá-la com o básico.
— Apenas aprendi pratos simples como ovo cozido e comida pré-pronta para a minha própria subsistência quando fico sozinho em casa — respondo.
— Certo… não esperava uma resposta muito diferente, ademais é melhor do que nada — Mikoto suspira e olha para Ailiss — E quanto a ti?
— A maioria das vezes que usei a cozinha foi para a fabricação de venenos que usei em assassinatos, bem como para o envenenamento do alimento que já estava pronto — responde Ailiss.
Naturalmente esta resposta causaria espanto. Contudo, agora que estou acostumado com ela, me assustaria com uma resposta menos sombria do que essa.
— Falando nisso, eu praticamente não a vi no refeitório durante todas as repetições. Como você sobreviveu por uma semana sem se alimentar? — pergunto.
— Eu tenho um estoque enorme de carne seca na minha mochila para essas ocasiões.
Mikoto e eu nos entreolhamos e nos conformamos com a resposta.
— Neste caso, acho interessante que Ailiss aprenda a preparar algum prato. Cozinhar é um dos atributos indispensáveis, pois é essencial para a própria subsistência. Vejamos o que eu posso te ensinar… — para pensativa e vira-se para ela — Que tal curry? Acredito que não há muito o que dar errado, e o Johann pode ajudar-te picando os ingredientes.
— Não há necessidade. Devido a treinamentos de sobrevivência, eu sei fazer comida, mais especificamente ração militar. Só não posso garantir qualidade no gosto, porém nutricionalmente falando, é bastante adequada. No fim das contas, esta é a função da comida.
Até que faz sentido o que ela falou, mas convenhamos que tipo de vida esta garota decidiu trilhar?
— Eu concordo contigo neste aspecto funcional, em condições normais isto seria o suficiente para ti. Mas isto é um problema na tua situação atual, Ailiss. O gosto do alimento pode ser um fator decisivo em alguns aspectos. Não achas que desta forma tu ficarás numa tremenda desvantagem em relação a mim? — sorri em deboche e levanta um dedo para seguir com a explicação — Na hora de escolher uma esposa, o Johann com toda certeza também levará em conta a culinária.
Quê?! Este tipo de piada só irritará a Ailis e como sempre a sua irritação será descontada exclusivamente para cima de mim.
Ela me fita por alguns segundos e então replica a Mikoto.
— Olhando por este lado, você tem razão — toca em seu queixo de forma pensativa.
Não é possível. Não, esta não pode ser a mesma Ailiss demoníaca que eu conheço.
— E-ei, do que vocês estão falando? — gaguejo e pergunto.
— Era apenas uma piada. Não percebeu? — responde Ailiss indiferente.
Para falar a verdade, uma piada não é o tipo de coisa que espero vinda de você, logo estou surpreso da mesma forma.
— Em todo caso, acho que vale a tentativa — Ela completa.
Mikoto e eu começamos a picar os ingredientes para agilizar as coisas para ela.
Percebo que Mikoto se aproxima dela e cochicha algo no seu ouvido.
O que esta garota está tramando? Sempre que esta travessa começa a agir, coisa boa não vem para o meu lado.
Ignoro este fato, logo em seguida volto a cortar as carnes e os legumes como se não tivesse percebido o ocorrido.
Desde a manhã estou com a impressão que estas duas estão tramando algo, e ao decorrer do dia esta minha desconfiança só aumenta.
Como se a minha desconfiança não pudesse ficar pior, Mikoto para a minha frente com uma proposição um tanto quanto estranha.
— Johann, diga “Ah…” — segura uma pequena rodela dos legumes que estava cortando.
— O-O que é isso? — afasto-me desajeitado.
— Idiota, só faças o que eu estou te mandando — franze o olhar e replica com o seu tom de voz gélido.
Que mudança de humor foi essa? Voltou a ser a rainha gelada assim do nada?
Devo acreditar nela? Isto já está o cúmulo do suspeito. De qualquer forma, acho que não tenho escolhas senão acatar suas ordens, do contrário só conseguirei uma garota manipuladora zangada comigo.
Abro a boca e ela larga o pedaço em minha boca, e em seguida o como.
— E então? O que achaste? — sorri.
— Bom… eu acho.
É só um ingrediente base, não há muito o que eu elogiar, nem que eu me esforce mentalmente para tecer alguma consideração. E a verdade é que não sou nem um pouco chegado em vegetais.
Passados alguns segundos, ela novamente volta-se para mim e reclama.
— Insensível… tu não irás fazer o mesmo por mim?
Está incomodada com algo assim? Isto está ficando muito estranho… No fim, provavelmente ela só está fazendo o seu teatro de sempre. Contudo, quais são suas intenções? Envergonhar-me mesmo que não tenhamos uma plateia?
Novamente acato suas ordens. Pego um pedaço de legume cortado e coloco na frente da boca dela.
Honestamente, este tipo de situação é bastante embaraçosa e ela sabe muito bem o quão envergonhado fico com estas coisas. Isto sem dúvidas faz-me lembrar da Mikoto que me provocou tantas vezes durante as repetições nas quais fomos aliados.
Quando eu vou soltar o legume em sua boca, ela segura minha mão. E além de comer o alimento faz questão de passar sua língua gentilmente entre meus dedos.
— O que você está f-fazendo? — gaguejo envergonhado.
Ela conseguiu superar minhas expectativas em quão constrangedora foi esta cena.
— Nada demais. Apenas experimentei. Não sei do que tu estás a falar — me encara com um olhar sensual.
Como eu sinto pena do meu coração nessas horas… quanta coisa pela qual preciso fazer você passar…
Ela então se afasta de mim e se dirige até a mesa onde a outra garota está.
— Ailiss, nós já terminamos os preparativos por aqui. Tu já podes misturar tudo e então cuidares da panela como te expliquei mais cedo — avisa Mikoto.
Em resposta, ela consente com a cabeça.
— Vou dar uma saída e deixarei que vós finalizeis o almoço. Caso tu precises de ajuda, não hesite em pedir auxílio ao Johann.
— Será que é uma boa ideia deixar-nos sozinhos? Como já falei, cozinhar está longe de ser a minha especialidade. Só sei o básico e consigo quebrar um galho — comento.
— Fica tranquilo, não há o que dar errado. De qualquer forma, eu preciso sair pra resolver alguns assuntos — pisca para Ailiss.
É claro que eu vi este sinal. Não há como não ficar preocupado com o que isso pode significar.
Além do mais, que assuntos? Não há nada para resolvermos, estamos presos nesta realidade sem nenhum compromisso. Ainda assim, prefiro não retrucar a sua desculpa esfarrapada.
Ela então sai da cozinha e deixa apenas nós dois para finalizarmos o curry.
— Está certa de que entendeu realmente como faz isso? — pergunto.
— Tenha mais respeito com quem está falando. Para alguém como eu, instruções básicas como essas não são nada — responde de mau humor.
Conforme as palavras de Ailiss, tudo parece fluir tranquilamente, ela manuseia os instrumentos e o fogão com certa destreza, chegando até parecer uma chefe de cozinha profissional perante aos olhos de um amador. De fato, chega a ser impressionante saber que ela não tinha nenhum conhecimento prévio. Poderia ser classificada como uma prodígio tal como Mikoto?
Entretanto, quando desvio minha visão por alguns segundos e volto a focar na panela percebo que a comida tomou uma cor diferente. A princípio me parece um pouco esquisita, mas não tenho gabarito para julgar se algum ingrediente ou tempero adicional podem causar este aspecto na comida.
— O que você colocou?
— Nada.
Nada? Acho que isso não devia acontecer… será que devo me preocupar? Devo chamar a Mikoto?
Aos poucos noto que a textura também mudou, o molho ficou borbulhante. Parece algo radioativo, mas sem dúvidas, o que causa mais repulsa é o cheiro. A mistura em questão exala um odor que passa a sensação de morte.
— Mistkerl, diga “Ah” — segura uma colherada do curry à minha frente.
Ela está tentando imitá-la? Já posso ligar os pontos, foi sobre isso que Mikoto comentou com ela naquela hora. Entendo, ela estava somente passando os ensinamentos básicos de como me constranger para a Ailiss.
Por mais embaraçoso que seja a situação, este nem de longe é o problema. Já preciso lidar com o constrangimento de modo recorrente graças a Mikoto, a verdadeira questão é a comida em si. Meus instintos estão em estado de alerta em relação à letalidade desta coisa.
Com a colher próxima ao meu rosto, o cheiro mortal torna-se ainda mais evidente.
Se eu recusar, ao que tudo indica sofrerei sendo espancado por Ailiss eternamente. Por outro lado, se eu aceitar, no pior dos casos eu irei morrer lentamente devido a ingestão, e na próxima iteração estarei com o organismo limpo.
Então irei provar…
No fim das contas são os mesmos ingredientes, logo posso estar exagerando… não há como ter ficado tão ruim.
Tomo coragem e abro a boca.
Ledo engano.
Ailiss coloca agressivamente a colherada na minha boca e como o esperado o gosto é terrível. Minha língua acaba de ser assassinada com tamanha podridão, acho que só irei acordar na próxima iteração, pois esta comida é definitivamente mortal.
Levo as duas mãos até a garganta e caio ao chão tentando vomitar o veneno que acabo de consumir.
Eu definitivamente estou à beira de morrer!
Vendo-me passar mal, Ailiss toca a ponta do indicador na panela de curry e leva até a boca.
— Realmente não está bom. Imaginei que acabaria assim.
— Como? Como você fez isso ficar tão ruim sem mudar os ingredientes? — pergunto ainda mal.
— Meu instrutor de confecção de venenos sempre me elogiou por conseguir preparar misturas mortais com qualquer tipo de substância base. É um talento involuntário que tenho para essas coisas.
Talvez realmente seja um dom de assassina. Qualquer coisa que esta garota toca vira algo mortífero. Talvez sofra da mesma maldição do Rei Midas, no entanto para venenos. Poderíamos aproveitar o restante da comida para utilizar como arma contra a própria Morte.
Mikoto chega à cozinha, vê o meu estado, sente o cheiro da panela e rapidamente liga os pontos.
— Talvez apenas eu deva ficar como responsável pelo almoço daqui em diante… — Mikoto comenta com preocupação.
Tanto eu quanto Ailiss assentimos imediatamente.
— Por favor… — suplico num tom quase morto.
— Por hora, leva o Johann para algum lugar para descansar. Eu irei preparar algo para tu comeres mais tarde — diz a Ailiss e volta-se para o curry com os olhos arregalados — Como isto é possível? O que aconteceu aqui?
Eu também queria saber como.
— Vamos — Ailiss puxa a minha gravata e me leva arrastado pelo chão para fora da cozinha.
Acho que os nossos planos de diversão não estão dando tão certo assim.