Entre Neve e Cinzas, As Memórias Daquele Amor Doentio Permanecem - Capítulo 100
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- Capítulo 100 - Enfim, Yoshida Miyu e Matsumoto Manabu estão livres. (1/2)
— Kobayashi-san, você viu onde está o Tomoya-kun? — pergunta Miyu.
— Ele não está repousando na enfermaria? O caso dele estava bem grave — replica Keiko.
— Não… será que ele saiu de novo? Parece que eles não entendem que precisam repousar.
De fato, todos já estão cientes de que não irão se recuperar e por isso alguns tendem abandonar o repouso para inspirar um último suspiro de liberdade. Mas não me parece ser o caso do rapaz em questão. A situação dele estava tão grave que creio que teria dificuldades até para caminhar.
— Continuem tratando dos demais enfermos, eu irei procurar por ele — manifesto-me.
— Oh, seria de grande ajuda, Johann-kun.
Caminhando pelo pátio, vejo um rastro que nada se parece com pegadas. Está mais para como se algo tivesse sido arrastado. A princípio não é o que busco, mas como não há nada mais suspeito do que isso, decido segui-lo.
Enquanto persigo o rastro na neve, percebo que o próprio leva em direção ao portão da escola.
Enfim, deparo-me com Haruki concentrado puxando um saco de lixo.
Observo seus passos lentamente o conduzindo para fora.
O que ele tem na cabeça?
Ao se aproximar mais do portão, vislumbro então uma escuridão sem fim se materializando diante dele e então tomando aquela velha forma humanoide encapuzada. Ela o espera pacientemente para ceifá-lo assim que colocar os pés para fora do portão.
— Haruki, o que pensa que está fazendo? Os resíduos não são despejados por aqui.
— Ah, Johann-san — vira-se em minha direção — Então você me pegou, acho que não adiantará de nada tentar enrolá-lo.
Uma atitude suspeita destas e um estudante desaparecido. Não é muito difícil ligar os pontos.
Desvio meu olhar para baixo e pergunto.
— O que tem dentro desse saco?
— O que você acha que há?
Como eu imaginei.
Mantenho-me em silêncio enquanto o encaro. Então ele volta a se manifestar enquanto abre o saco lentamente.
— Perspicaz como sempre, achei que se eu resolvesse isso rapidamente, não seria pego — mostra o rapaz dentro do saco.
Para estar se livrando de um cadáver de uma forma nada convencional e sem avisar previamente ninguém, o natural é que seja o responsável pela sua morte.
Caminho até ele para darmos prosseguimento à conversa.
— Bem, antes de mais nada, eu vou lhe dar o benefício da dúvida. Gostaria de escutar o que você tem a dizer em sua defesa.
— Se eu falar que ele faleceu e por preguiça de enterrá-lo pretendo jogá-lo para fora da escola, e assim fazer seu corpo desaparecer… você acreditaria?
— Nem um pouco, somente seres vivos desaparecem, um cadáver ficaria intacto lá fora, tais como as roupas dos que tentaram escapar.
A verdade é que eles não simplesmente desaparecem, mas têm suas almas ceifadas pela foice da Morte. Se for somente um defunto, nada ocorrerá, será tratado somente como matéria inanimada.
— Imaginei que não acreditaria, mas você está enganado sobre um ponto — fecha os olhos, pausa sua fala por alguns segundos, os abre e então completa — Tomoya-kun ainda está vivo.
Volto a minha visão para o saco e noto que de fato ele está respirando. Ao que tudo indica está somente em coma.
Se ele não o matou, então qual o significado disso? Por que estaria tentando se livrar dos vestígios de um crime que sequer cometeu? Ou ele também acredita que a morte seja a melhor forma de livrar seus companheiros da dor?
— O que pretendia fazer com isso? Pois saiba que esta seria a pior forma de aplicar uma eutanásia nele.
— Este é outro ponto que você presumiu erroneamente. Eu não estou fazendo isso por ele.
A conversa que tive com Haruki em uma das realidades vêm a minha mente. Hasegawa Haruki não provava o alimento pensando no bem coletivo, ele experimentava pensando nas consequências positivas sobre sua imagem.
— Está fazendo isso por você?
Ele solta um leve suspiro e sorri.
— Estamos presos aqui há quanto tempo? Uns cinco anos? Eu nem sei mais. Eu só quero ir embora deste lugar. No começo eu até tinha certa esperança de que este inferno fosse acabar, mas veja a que ponto chegamos…
Entendo, então ele não está se livrando dos indícios de seu crime. Ele está prestes a cometer o crime em questão.
— E acha que fazendo isso irá escapar?
— Quem sabe? Ou eu faço isso, ou aguardo o meu corpo chegar no mesmo estado dele — volta seu olhar para o rapaz em coma por um instante e então volta a falar — Você se lembra bem das regras que foram proferidas pelos alto-falantes?
Mas o quê?
Estas palavras estranhamente me soam pesadas. É como se momentaneamente estivesse escutando aquele bizarro anúncio de novo. Mais uma vez me sinto sobre uma pressão colossal.
Recupero-me desta terrível sensação e volto a ponderar sobre seu relato.
Bem… do que ele está falando? Mikoto e eu explicamos a todos os alunos que nenhum plano nosso referente a isso deu certo, tentamos burlar estas regras inúmeras vezes, falhamos em todas. Haruki por fazer parte do conselho estudantil não poderia ter se esquecido disso.
— Pensei que você estava ciente de que eu já tentei algo similar. Não com uma pessoa, mas com todo o corpo estudantil. Por que achou que com você isso será diferente?
— Eu tenho uma ideia um pouco diferente do que você relatou. Para ser sincero, não sei se funcionará, mas é como eu disse… não há nada a perder. Se você tivesse duas escolhas, o que escolheria entre a vitória extremamente improvável ou a certeza da derrota?
As memórias dos meus experimentos onde confinei Mikoto e Ailiss, onde metralhei a todos, voltam lentamente a corromper a minha mente.
Neste ponto, não tenho como me colocar no papel de um honrado herói com discursos sobre moralidade, pois o que eu fiz e estaria disposto a fazer para salvá-las seria muito pior.
— Se é isto que você quer, eu não vou impedi-lo. Mas pense bem antes, não aja no impulso. Depois que cruzar a linha de saída da escola, não terá como voltar atrás.
Não sei o que estou falando, são meras palavras vazias. Tanto ele quanto eu sabemos que o dia em que seremos libertados deste jogo jamais ocorrerá. Então por que estou me apegando a essas velhas expressões de valorização da vida desprovidas de qualquer sentido?
Será que estou contando essa mentira para ele ou para mim mesmo?
— Pensei que você iria tentar me impedir para salvá-lo.
— É como você disse… este rapaz está prestes a morrer de qualquer forma. A única coisa que irá mudar é que ele passará por muito mais dor ao morrer.
— Justamente por isso, diferente de mim, pelo que me descreveu fez de tudo pela Kaichou e pela Ailiss-san.
— Vejo que você também tem uma visão errônea sobre mim. De fato, fiz por elas, mas não faria por mais ninguém. E parando para pensar, caso o seu experimento dê certo, eu posso fazer o mesmo para salvá-las. Então, vá em frente.
Haruki arregala os olhos, suspira, ergue sua cabeça enquanto visualiza o céu e responde.
— Entendo… então neste mundo realmente não há santos. Ainda assim somos muitos diferentes… pois você se preocupa com elas. Por outro lado, se fosse me ofertada a possibilidade de fugir, mesmo que isso custasse deixar a todos para trás, inclusive Keiko, faria isso sem hesitar. Faria isso, mesmo agora pois sou muito egoísta — ri amargamente — Mas, ao menos, pode dá-la um adeus por mim?
— Tudo bem.
Realmente, este mundo de repetições serve para apodrecer qualquer um… o tempo pode destruir qualquer coisa, até os seus desejos mais íntimos. Pode varrer com todos os nossos valores.
No entanto, Haruki se engana a respeito da nobreza do meu sacrifício por elas. O meu amor doentio por elas não deixa de ter uma natureza egoísta. Isso ficou muito claro para mim na vez que as confinei.
Ele então volta a caminhar em direção ao portão parando logo diante da assombrosa entidade.
Em seguida, retira o rapaz de dentro do saco e o levanta o apoiando contra o seu próprio corpo.
Enfim, puxa uma faca de seu bolso e o esfaqueia na barriga.
— Por favor, aceite este sacrifício e em troca dê-me a minha liberdade! — profere seu grito de desespero e o joga para o ser encapuzado a sua frente.
Haruki não é capaz de enxergá-la, mas eu consigo ver claramente a Morte ceifando a sua oferenda.
Após vê-lo desaparecer, ele corre em direção ao exterior da escola e assim como a sua vítima também tem a sua alma consumida.
No fim, como o premeditado, um grande fracasso. Haruki deveria ter percebido uma obviedade muito antes. Por que a Morte negociaria a vida de um terceiro com você se ela pode simplesmente levar a alma de ambos? Os dois sempre foram os seus reféns.
De fato, foi algo que não havia tentado, mas observar o experimento dele não me serviu de nada, e pelo visto continuarei às cegas sem encontrar um método de libertar Mikoto e Ailiss deste inferno.
Ao que tudo indica, assim um por um irá desaparecer… é um fim inevitável.
…
As repetições continuam incessantemente até o número de sobreviventes cair pela metade, dez alunos.
Desta vez a maior parte das vítimas decorreu dos sintomas do decaimento e é exatamente o que está atingindo Keiko neste momento.
— Kobayashi-san, por favor, mantenha-se deitada. Você precisa descansar o máximo possível — alerta Miyu.
A situação de Keiko se agravou bastante de algumas iterações até a atual, de apenas tosses evoluiu para uma fraqueza total.
O desaparecimento de Haruki teve um forte impacto emocional, teria isto lhe enfraquecido espiritualmente?
— Não se preocupe comigo, eu vou ficar b- — tem uma crise de tosse e tampa sua boca com a mão.
A mão dela fica coberta de sangue. Ao que parece seus órgãos internos já devem estar começando a falhar. Assim como ocorreu com os outros, ela deve ter chegado ao limite da exposição a esta realidade sobrenatural.
Miyu e Manabu se demonstram os mais resistentes entre os que foram designados como meros participantes passivos a este jogo. Então são eles que estão cuidando dos demais enfermos.
Além de mim, Ailiss, Mikoto, Miyu, Manabu e Keiko. Ainda há mais quatro sobreviventes. Apesar da situação deles não estar tão perigosa quanto a de Keiko, também não estão nas melhores condições, e precisam de assistência médica constante.
Sendo sincero, não os vejo durar muito. Assim como Keiko, é só uma questão de tempo para serem varridos por esta maldição.
— Miyucchi, eu esquentei a sopa que você fez — Manabu chega com um prato em mãos.
— Obrigada, Manabu-kun — volta-se a Keiko — Vamos, tente comer um pouco. Está bem saborosa, com certeza você vai se sentir um pouco melhor — estende a colher.
— Miyu-san, você já fez o bastante por mim — nega com a cabeça e diz com a voz fraquejando.
Miyu solta o prato de sopa e tenta reanimar Keiko.
— Ainda não, por favor… não vá — pressiona o peito da amiga — Não nos deixe sozinhos… um por um, nossos amigos um por um foram sumindo, você não pode ir também — começa a lacrimejar.
— Sinto muito, Miyu-san. Eu realmente sinto muito. Mas para mim está… tudo bem. Agora finalmente irei descansar… — Keiko fecha os olhos lentamente para nunca mais abri-los.
Desta forma mais uma amiga se parte. Nossos números não param de decair. Com mais esta perda restam apenas nove, e neste ritmo em breve não sobrará mais ninguém.
— Não! Kobayashi-san! Abra os olhos! — chora Miyu — Por favor! Por favor…
— Você fez o que podia, ela com certeza partiu feliz por ter uma amiga como você — diz Manabu.
— Eu sei… — enxuga as lágrimas — mas por que as coisas precisam ser assim? Nunca seremos livres desta desgraça? Nunca poderemos simplesmente viver?
Temo informá-la, mas tudo indica que sim. Por definição, em um inferno o sofrimento não pode ter fim. Está muito claro que eles não irão nos deixar descansar, e para isso precisam atormentar-nos o máximo possível.
Enquanto vejo Miyu em prantos pela partida definitiva de sua amiga, não consigo sentir nada. O que me faz pensar que naquelas repetições a morte se tornou para mim uma condição mais natural do que a vida em si.
Deixo a sala, deparo-me com Mikoto e Ailiss no corredor. Abaixo o rosto dando a entender o que aconteceu.
— Compreendo… — diz Mikoto.
Parece que sobrou apenas você. Dos membros que originalmente formavam o conselho ainda restava Keiko que acaba de falecer.
Mikoto tenta parecer forte, assim como uma líder deve ser, porém é inegável que ela acabe sentindo com a perda de colegas que passaram tanto tempo com ela. Acredito que mesmo quando ela precisou os matar, deve ter passado por momentos de hesitação, tanto que Takashi realizou a maior parte desses serviços por ela.
Vou até a janela e fito o céu estrelado.
Pergunto-me onde estão os demônios de Laplace…a todo momento eles acompanharam as minhas repetições neste horrendo ritual.
Ninguém mais está enlouquecendo e batalhando entre si, não vejo quais os motivos os levam para nos manter nestas eternas repetições.
De qualquer forma, o que vocês pretendem fazer quando todos se forem? Pois deste modo, literalmente não terá mais nenhuma forma de entretenimento para nos condicionar.