Devore o Exorcista - Capítulo 3
Horas mais cedo, um homem velho e asqueroso saltitava animado pelos corredores imundos de um certo lugar; um local odiado pelos humanos que ali viviam, mas apreciado por aqueles que se alimentavam desse ódio.
Uma casa de escravos.
— Que moleque idiota! Quem, em sã consciência, se oferece para ser um escravo? Bom, eu que não vou reclamar. É lucro limpo! — exclamou.
O homem se dirigiu até o cômodo de entrada do estabelecimento, ainda vazio. Ele se sentou atrás do balcão e esticou as pernas, relaxado.
Porém, depois de alguns minutos imerso em pensamentos, uma certa desconfiança surgiu em sua cabeça.
— Será que aquele garoto tá tramando algo? Talvez eu devesse dar uma checada nele…
Antes que pudesse chegar a uma conclusão, seus olhos deslizaram até o balcão. Sobre ele, repousava uma espada velha embainhada.
— Hum… Ele deixou a arma dele aqui, na verdade. — Com as mãos sujas, empunhou a espada.
A bainha desgastada e suja há muito tempo havia perdido qualquer traço de requinte. Não importando quem a olhasse, poderia facilmente reconhecê-la como uma tralha sem valor.
Quanto à lâmina, nem se fala. Além de enferrujada, possivelmente pelo sangue seco mal limpo, apresentava uma rachadura enorme em sua extensão, o que comprometia completamente o corte.
No entanto, por mais acabada que estivesse, o homem notou algo de diferente nela.
Por baixo da ferrugem, serpentes escarlate subiam e se entrelaçavam sobre o cabo negro da espada.
Com olhos atentos, podia-se notar um brilho sutil em tom avermelhado emanar da lâmina cega, escapando pela fenda no metal.
— Não é possível que… esse garoto… — Palavras de espanto saltavam de sua boca espontaneamente.
Imediatamente, ele se levantou e correu até um armário próximo. De dentro dele, retirou uma caixa preta com duas travas e um cadeado numérico.
Nunca pensou que um “presente” da associação viria a calhar algum dia.
Depois de colocar a senha, destravou a caixa e posicionou a espada velha dentro dela. Devolveu a caixa ao armário em seguida, tendo certeza de aprisionar aquele item maldito.
— Porra… — Bateu com as duas mãos no balcão, suando. — Esse merdinha é perigoso. Mas…
Um sorriso surgiu em meio ao rosto angustiado.
— Se ele deixou aquilo para trás, não deve esperar que algo aconteça hoje.
A escravidão nasce com a dominação. Os dominantes, escravizam. E os dominados, são privados de todo e qualquer direito que uma vez já tiveram. O mundo é assim.
Em um lugar onde dezenas de almas privadas de tudo suplicam por um fragmento de humanidade, o sentimento de conviver com a dor, a fome e a morte criou uma abominação que espreita na escuridão.
E tal monstruosidade encontrou outra, tão vil quanto. Porém, de pele humana.
Antes de levar a refeição para os escravos, o homem velho cuidou de espalhar narcóticos em pó sobre a comida de duas pessoas em específico. Uma, era o garoto novo. E a outra, uma prisioneira que há muito tempo esteve de olho.
E agora, essa garota estava prestes a morrer.
Ela era a última a ser usurpada. A mão humana do devorador já se aproximava de seu coração, penetrando a sua pele, sua carne e seus ossos, enquanto a jovem se debatia e relutava em desespero.
O dono da casa de escravos observava a cena com excitação. “Desde o início, você foi a mais difícil de quebrar. Enquanto todos eles enlouqueciam, privados de tudo, você continuou resistindo. Mas quem diria que seria tão fácil…”, o sorriso macabro abria em seu rosto novamente.
“Bastava que você enxergasse a morte, para que toda a sua convicção fosse estilhaçada.”
Ninguém podia fazer nada. Os dedos finos enrolaram-se ao órgão vital dela. O coração socou com força o seu peito. Até que um último grito escapou e…
Com um baque, o corpo gelado da garota despencou contra o chão, assim como todos os outros.
Os seus olhos arregalados fitavam Erick, e suas lágrimas eram como um espelho de sua alma perturbada. O rapaz teria o mesmo destino, e ele sabia disso.
Uma outra mão humana emergiu das sombras. Ela lentamente se aproximou de Erick, como se o tempo realmente não importasse. Por mais que ele tentasse se mover, seu corpo não respondia.
Porém, antes que os dedos pudessem adentrar sua carne e tocar seu coração, uma sensação estranha acometeu todos no local, incluindo o ser no breu.
Foi nesse momento que o velho percebeu. Por mais que tudo estivesse dando certo, desde o começo, o seu plano já estava arruinado. E isso tudo tinha um único motivo.
Ele escolheu a pessoa errada.
Vzssssssshhhhhhhh! Um som agudo parecia dilacerar o ar, tornando-se cada vez mais alto.
O ambiente vibrou, fazendo os olhos que observavam da escuridão tremerem em consonância. O braço prestes a tocar Erick foi decepado num instante.
Um brilho avermelhado irrompeu na penumbra e, rapidamente, a luz amarelada no ambiente foi substituída por um vermelho vívido, semelhante ao sangue que jorrava do membro decepado.
— Que porra?! — O velho caiu no chão, assustado.
Um objeto voou ao lado do homem, disparado como um míssil, até alcançar o seu alvo: a mão de um garoto deitado sobre o altar.
Erick contraiu os dedos, sentindo o relevo das serpentes entrelaçadas no cabo. A sua espada havia retornado à sua posse, de alguma forma. Porém, ela estava diferente.
A lâmina, antes enferrujada e opaca, agora havia tomado uma coloração profunda, como se absorvesse toda a luz do ambiente para si. Da ruptura no metal, uma espécie de energia rubra viva emergiu, tomando conta de toda a extensão da espada.
As serpentes no cabo pareciam se mover e, lentamente, caminhar sobre a mão de seu portador, impedindo-o de soltá-lo.
O rapaz não entendia o que estava acontecendo, mas, ao segurar aquela arma, toda a sensação de entorpecimento sumiu. As suas veias saltaram e seu coração bateu mais forte, como se todo o seu corpo estivesse em estado de alerta. E então…
Erick se ergueu.
— Como… Como isso é possível?! — O velho se arrastava para longe, batendo com as costas sobre as paredes onde seus escravos foram torturados.
O fato da espada ter se guiado por conta própria para cá e ainda por cima, ter conseguido cortar um ser intangível não podia significar outra coisa. Agora, o homem tinha certeza do que se tratava.
— A caixa nulifica maldições! Não tem como algo escapar dela! — continuou.
— Que merda você tá falando?
Lentamente, Erick caminhou na direção do homem, empunhando a arma candente.
— Sai! Sai de perto! Eu já matei todos eles! O pacto está feito! Não adianta mais fazer nada comigo!
— Fodam-se eles. Você drogou a minha comida, seu filho da puta!
Erick ergueu a espada e desceu contra o velho, que, por pouco, conseguiu rolar para o lado e escapar da lâmina.
Surpreso com a resposta do garoto e vendo-se sem saída, ele olhou para o ser imerso na escuridão.
— Ei! Eu trouxe os sacrifícios! Agora faça a porra da sua parte! — berrou.
Em resposta ao clamor, o ar vibrou novamente. Porém, dessa vez, não era fruto da espada de Erick.
As mãos que acabavam de retirar diversas vidas agora retornavam à escuridão e as centenas de olhos se fechavam. A escuridão no final do cômodo foi substituída pelo brilho avermelhado.
A entidade desapareceu.
Porém, o vendedor de escravos não parecia abalado. Na verdade, a expressão dele era estranha. Algo dizia a Erick que aqueles não eram mais os olhos de um homem desesperado.
Algo brotou dentro do velho. Uma vontade incontrolável de tomar tudo o que as pessoas têm.
Foi quando Erick viu, abaixo das pálpebras do homem, um par de olhos demoníacos abrirem-se. Íris negras sobre um branco profundo, marcado por veias pulsantes.
Os olhos de um demônio.