Devore o Exorcista - Capítulo 2
Ao ouvir a declaração do garoto, o homem atrás do balcão arqueou uma das sobrancelhas.
— Como é?
— Eu quero me tornar um es…
— Eu entendi essa parte! — exclamou, batendo com as mãos no balcão e olhando curiosamente para Erick. — Mas não é bem assim que as coisas funcionam…
— Como não?
— Você não… vira escravo por vontade própria. Alguém tem que te trazer aqui e negociar um preço comigo.
— Eu não tenho dinheiro.
— Então como você espera que eu… — Antes de terminar a sua fala, o velho percebe algo. — Calma, se você quer ser um escravo por vontade própria, então eu não preciso pagar por você, não é?
Erick pensou por alguns segundos e concluiu:
— Não.
Um sorriso quase banguela surgiu na face do homem. Ele se levantou da cadeira com um pulo e, apalpando as mãos numa postura completamente diferente da anterior, ele disse:
— Então venha por aqui, meu jovem. Permita-me mostrar o seu quarto.
Estranhando a gentileza repentina do velho, Erick hesitou por um momento, mas agora não era hora de voltar em sua decisão. Ele seguiu dentre um corredor escuro, acompanhado pelo homem.
Não demorou para jaulas apertadas surgirem em seu campo de visão, distribuídas em ambos os lados. Havia todo tipo de gente naquelas celas. Alguns estavam num estado tão degradante que sequer pareciam humanos.
— Você vai ficar nesta aqui — disse, apontando para uma cela vazia.
Sem objeções, Erick entrou naquele cômodo minúsculo, sentindo um cheiro semelhante a enxofre permear seu nariz.
Assim que ele pôs os pés para dentro do local, o homem rapidamente fechou a jaula, com receio de que ele viesse a mudar de ideia.
— Você vai ter uma refeição por dia. Em nenhum momento você pode sair, por isso, faça suas necessidades ali — O velho apontou para um balde sujo no canto. Toda aquela gentileza se esvaiu num piscar de olhos. — É bom fazer negócios com você…
Exibindo um sorriso malicioso, o velho trancou a jaula e voltou saltitando pelo corredor. Erick apenas se sentou no chão frio sem se importar muito.
“Aquele merda deve achar que sou idiota”, pensou. “Mas o maior idiota aqui é ele. Eu vou comer todo dia, vou ter um lugar pra me abrigar da chuva, não vou precisar me preocupar com dinheiro, nem com ninguém. Eu vou viver o melhor momento da minha vida aqui dentro, e depois eu que sou o idiota?”.
Erick ajeitou suas costas na parede molhada pela umidade. Todo o seu corpo ainda doía, mas, agora, sabendo que tudo iria melhorar, seus olhos puderam, finalmente, descansar um pouco.
Até um baque atingir seu peito.
— GAH! — Sangue se espalhou pelo chão.
Quando se deu conta, o líquido vermelho escorria de seu nariz e boca. “Porra… Merda…”, ele sabia exatamente o que estava acontecendo.
“Eu ainda tenho um mês… Eu ainda tenho um mês…”, repetiu consigo mesmo, tentando suportar a sensação de beirar a morte.
Já faziam dois anos desde que isso começou. Desde que descobriu que estava morrendo aos poucos.
Ele não sabia de onde isso havia surgido, nem como. Em um dia, de repente, começou a ter esse tipo de surto. O médico sugeriu que pudesse ser hereditário, mas nem isso conseguiu comprovar. A única coisa que ele tinha certeza era que Erick possuía, na melhor das hipóteses, 25 meses de vida.
Ou seja, pouco mais de dois anos.
E agora, esse prazo estava cada vez mais próximo de expirar. Sua própria condição revelava isso.
Durante alguns minutos, Erick suportou a dor, até que ela finalmente se esvaiu e, com ela, também foi sua consciência.
Seria ótimo se esse inferno tivesse finalmente acabado, mas, depois de algumas horas, o garoto acordou novamente com um som de metal.
O mesmo homem de mais cedo batia nas barras de cada uma das jaulas no corredor depois de deslizar, por uma pequena fresta na parte de baixo delas, uma bandeja de comida.
Uma pasta marrom com pedaços esverdeados escorria pelo recipiente, junto de um caldo que cheirava a ovo podre. A única coisa que realmente reconhecível eram as duas patas de frango no canto da bandeja.
Erick sentou com as pernas cruzadas no chão e, com uma colher de plástico, começou a degustar a refeição. A cada mordida, sua expressão mantinha-se a mesma. Depois de tanto comer coisas que nem deveriam ser comestíveis, o seu paladar já estava anestesiado.
Diferente dele, a pessoa na cela da frente não parecia ter o mesmo dom. A garota regurgitava tudo.
Depois de terminar, ela ergueu a cabeça e percebeu Erick encarando-a enquanto comia tranquilamente.
— Eu sei como é. Eu também vomitei mais cedo.
A jovem retirou os cabelos pretos desgrenhados da frente do rosto e olhou para ele com suas íris castanhas. Suas roupas estavam encardidas e seu corpo exclamava desnutrição, mas, para os padrões do garoto, até que ela era bonita.
— Por que está comendo isso?
— Porque, se não, eu morro — concluiu Erick. — Quer dizer, eu já estou morrendo, mas dizem que morrer de fome é uma das formas mais dolorosas de bater as botas, então prefiro evitar.
A garota arregalou os olhos.
Sua visão foi até o vômito no chão e, dele, até a comida. De repente, ela pegou a bandeja e colocou sobre o colo. A colher em sua mão tremia, mas, com força de vontade, ela conseguiu enchê-la com a pasta marrom e dirigir até a boca.
Depois da colherada, sua expressão se contraiu. Erick podia jurar que ela vomitaria de novo, mas isso não aconteceu. Duas, três, quatro colheradas vieram em seguida, até que a sua bandeja estivesse quase limpa.
Ela largou tudo no chão e se forçou a engolir. Assim que a comida desceu por sua garganta, uma expressão de alívio surgiu em sua face. E, então, sons de palmas ecoaram.
— Mandou bem. — Erick se sentiu orgulhoso dela por algum motivo. — Mas não precisava ter se forçado. Eu podia comer para você.
— Eu não quero morrer — disse, limpando a boca com uma expressão séria.
Aquelas palavras perfuraram o seu corpo como lanças afiadas. De alguma forma, sentia que já tinha as ouvido antes. Porém, uma sensação infeliz o impediu de pensar mais a respeito.
— Então está no lugar errado.
Erick suspirou e largou a bandeja vazia no chão. Ele se deitou no chão frio e fechou os olhos. “Chega de conversa fiada por hoje”, pensou. “Eu vou dormir até a próxima refeição”.
Porém, uma voz interrompeu o seu sono.
— Não é escolha minha estar aqui! — gritou a garota.
— Eu sei que não, mas será que dá pra calar a boca e me deixar dormir?
— Você já ficou roncando por quatro horas e eu não disse nada, seu arrombado!
— Do que você me chamou? — Erick se levantou.
— Além de burro, é surdo?
Por trás das grades, os dois se encaravam vorazmente.
“Qual é a dessa mina?”
“Qual é a dessa cara?”, ambos pensavam em sincronia.
— Ei, que gritaria é essa?! — O velhote de mais cedo apareceu. — Fiquem quietos, os dois!
Mesmo com a chegada do suposto dono do estabelecimento, nenhum dos dois pareceu preocupado. Até que, eventualmente, ambos desviaram o olhar ao mesmo tempo, bufando e seguindo para o fundo das celas.
O homem simplesmente suspirou em desânimo e voltou pelo corredor.
“Que saco.” Erick se deitou novamente. “Eu não vim pra cá para ficar ouvindo uma mulher louca gritar no meu ouvido”.
Na outra cela, a garota se sentava contra a parede. “Quem esse moleque pensa que é? Só porque consegue comer aquela merda, acha que é melhor que eu?”
Depois de muito reclamarem em suas mentes, eventualmente, ambos acabam caindo no sono.
Até Erick finalmente despertar, horas mais tarde.
Quando abriu os olhos, ainda estava deitado, mas, por algum motivo, o teto parecia se mover. Seria efeito da sonolência?
Um incômodo duradouro percorria suas costas, mas não era fruto dos ossos quebrados. Conforme o tempo passava, a situação ficava cada vez mais estranha. Por que não estava sentindo o seu corpo?
Até que ele finalmente percebeu: não era o teto, e sim ele mesmo quem se movia!
— Mas… que caralhos…? — Nem a sua voz saía como deveria.
Seus sentidos estavam entorpecidos, fazendo com que tudo parecesse um sonho confuso. Ou melhor, um pesadelo. Afinal, quando ergueu a cabeça, conseguiu ver uma silhueta baixa arrastá-lo pelo chão em meio a um corredor escuro.
“Quem é… esse? Onde… está me levando? Que merda… está acontecendo?”, dezenas de perguntas surgiam em sua cabeça, mas nenhuma parecia ter resposta.
Passo por passo, ele foi levado até uma escada, onde desceu da mesma forma. Porém, o fato de suas costas não terem doído ao colidir contra os degraus trouxe uma dúvida ainda mais cruel: “Eu fui… drogado?”
Uma luz amarela chegou aos seus olhos. O sujeito que o carregava parecia ter acendido uma espécie de tocha, antes de adentrar em uma sala completamente escura.
Um cheiro de ferrugem chegou às narinas de Erick. Era um odor familiar, mas o seu olfato não cooperava para distinguí-lo. Sem conseguir enxergar nada além do clarão do fogo, ele foi levantado e colocado sobre uma superfície rígida.
Quando seus olhos finalmente encontraram o rosto do sujeito que o sequestrou, uma feição de desprezo emergiu espontaneamente.
Fios de cabelos brancos cercando a calvície, rugas protuberantes e olheiras profundas podiam ser vistas. O dono da casa de escravos estava de pé ao seu lado.
— Esse é o último que faltava — O seu semblante sorridente transbordava uma felicidade arrepiante.
Assim que a sua voz ressoou, luzes amareladas clareiam o ambiente em resposta. Uma a uma, tochas se acendiam nas paredes por conta própria, finalmente revelando a origem do cheiro que tanto incomodava o nariz de Erick.
Sangue.
Correntes caíam pelas paredes e, na extremidade delas, estacas de metal estavam cravadas sobre a palma das mãos daquelas pobres almas.
Cinco pessoas estavam presas, caídas contra a parede. A aparência de cada uma delas era terrível. Seus ossos eram visíveis por baixo da pele, indicando um estágio grave de desnutrição. Todo tipo de excremento humano podia ser percebido em meio às roupas encardidas e rasgadas.
Mesmo atordoado, Erick conseguiu deduzir que, para estarem em uma situação tão precária, elas deveriam estar presas ali há muito tempo, mantendo-se vivas por um milagre.
De canto de olho, uma figura familiar apareceu em seu campo de visão. Era a mesma garota de antes, aquela com a qual brigou. A fisionomia dela também estava prejudicada, mas não tanto quanto os demais. “Ela foi trazida para cá antes de mim?”, pensou.
Aos poucos, seus sentidos pareciam se reestabelecer. A droga estava perdendo efeito. No entanto, o que veio a seguir estava muito além do que sua mente conseguia compreender.
No fundo da sala, a luz das tochas parecia ser consumida, como se um buraco negro a impedisse de seguir em frente. E, em meio à escuridão, Erick viu.
Centenas de olhos surgiram. Íris negras estavam imersas em um branco profundo, marcado por veias vermelhas, como se um aglomerado de predadores estivesse à espreita. Porém, o que estava em sua frente não eram animais.
Dentes afiados cresceram abaixo de todos os olhos, curvando-se em um sorriso demoníaco que percorreu toda a extensão da parede. Pela primeira vez em sua vida, Erick sentiu o seu corpo congelar.
Aquilo não era um mero monstro igual aos que estavam acostumado a enfrentar. Estava muito além disso.
Essa era a verdadeira forma de um demônio.
— Eu vim concluir o pacto, Devorador da Privação — continuou o homem.
Foi quando Erick finalmente se deu conta: a superfície dura a qual estava deitado não era o chão. E sim, um altar.
— Ես սպասում էի քեզ. — Uma voz distorcida escapou por dentre os milhares de dentes pontudos.
Diferente dos grunhidos selvagens que outros devoradores emitiam, tal entidade parecia realmente dizer palavras, contudo, em uma linguagem desconhecida.
— Eu lhe trouxe cinco sacrifícios, como o prometido. — Ele parecia compreender o que dizia. — E, claro, um exorcista.
Os olhos do garoto arregalaram. “Como ele descobriu? Foi o sangue nas minhas roupas? O corte no meu rosto? Não, espera…”, até que ele finalmente se deu conta. “A minha espada!”
— Շատ լավ. Պայմանագիրը կատարված է.
— Claro, aproveite. — Com tais palavras, a discussão pareceu ter se encerrado.
Um senso de urgência cresceu dentro de Erick. Algo horrendo estava prestes a acontecer. Ele tentou se mover, mas, mesmo que sua consciência estivesse se acostumando aos efeitos da droga, seu corpo ainda não respondia.
De repente, cinco braços humanos emergiram da escuridão e, como minhocas, cresceram e avançaram em pleno ar na direção das pessoas aprisionadas.
Um berro agonizante irrompeu no ambiente. Uma das mãos atravessou o peito de um homem caído, fazendo-o se revirar no chão com a dor lancinante. Sentia como se seu coração estivesse sendo esmagado por aqueles dedos frios.
Os demais ao seu redor começaram a acordar com os gritos e, notando o que se aproximava, também suplicaram por socorro, em completo desespero.
Porém, não importando o quanto gritassem ou se esperneassem, o destino de todos foi o mesmo. Um por um, seus corações eram espremidos com uma força descomunal, até que caíssem estáticos no solo.
Logo, a vez da garota de cabelos pretos chegou.
— Não… Por favor, não… — Lágrimas escorriam pela feição aterrorizada, limpando a sujeira de seu rosto. — Eu não quero morrer…
A mesma frase de antes, mas com uma entonação completamente diferente. Ao invés da confiança que sustentavam suas palavras da outra vez, agora, somente desespero podia ser percebido em sua voz.
E isso fez algo despertar.