Devore o Exorcista - Capítulo 1
“Monstros existem”, palavras que não o pertenciam ecoam em sua cabeça. “Eu sei que existem!”.
O seu corpo se movia sozinho. A esse ponto, lutar se tornou algo tão comum quanto escovar os dentes. Apesar de que ele nem se lembrava mais da última vez que sentiu o gosto de uma pasta dental.
Vush! Um tentáculo asqueroso formado por pele e carne humana passa raspando por seu rosto, causando um corte raso na bochecha. Ele acaba rolando para o lado, se levantando enquanto estalava a língua em desaprovação.
Para pessoas normais, um corte desse tipo normalmente não significaria nada, tendo em vista que se curaria em poucos dias. Abençoados eram esses malditos que tinham sangue de sobra para gastar e nutrientes o suficiente para se recuperar.
A visão dele ficou turva por um instante. O que foi isso? É a perca de sangue? Ou, talvez, mais um pico anêmico? Motivos não faltavam. O problema era que mais um ataque chegava.
Outro tentáculo avançou em sua direção, ricocheteando seu corpo com força para dentro de uma plantação. As espigas de milho atingiram suas costas como balas de fuzil, dando início a um fuzilamento que duraria pouco mais de vinte segundos.
Depois de formar um rastro de quase cinquenta metros no meio da plantação, ele se levantou. Podia sentir os ossos fraturados de suas costas rangerem como madeira podre, prestes a estilhaçar. Ele nunca foi muito resistente.
No início da plantação, conseguia enxergar o que parecia ser uma criatura de quase dois metros, formada por, nada mais, nada menos, que folhagens e alguns tipos de grãos amarelos que preenchiam todo o seu corpo.
Por mais bizarro que parecesse, aquilo tinha uma aparência semelhante a de uma espiga de milho, porém, com uma diferença grotesca: possuía membros humanos.
Na parte superior do corpo, dezenas de folhagens flutuavam e balançavam como se tivessem vida própria. E, na parte inferior, cerca de seis braços humanos o sustentavam.
Porém, essa cena não o assustava.
— O fazendeiro disse que era um “Devorador do Milharal” — murmurou. — Que coisa ridícula…
Mal conseguindo manter uma postura ereta, ele disparou na direção daquela criatura com todas as suas forças. Vencer era a única opção. Caso contrário, precisaria se contentar com o que encontrava no lixo durante mais algum tempo.
Dessa vez, todos os tentáculos chegaram simultaneamente. Os seus olhos negros se ergueram. Os dedos enrijeceram. Os músculos contraíram e…
— GYAAAAAAAAAAAAAAAAAAH! — Um grito gutural irrompeu contra os seus ouvidos.
Partidos ao meio, pedaços de palha e planta flutuaram em meio ao ar. De alguma forma, sangue jorrou, formando uma linha vermelha que perseguia a lâmina responsável pelo desmembramento.
Por um momento, o líquido se confundiu com os cabelos ruivos do garoto que continuava avançando, portando uma espada oriental imbuída em vida.
A feição inumana daquela aberração se contorceu de maneiras impossíveis, refletindo, ao mesmo tempo, toda e qualquer emoção possível. Entretanto, de todos esses sentimentos, um deles o jovem tinha certeza absoluta de ter causado…
Dor.
— UUUHHMMAA KRRRHGGGG VZRAA LKKKRRM! — Sons animalescos e horrendos escapavam de algum lugar daquela criatura.
Se ainda fosse alguém normal, esses gritos certamente sugariam toda a sua vontade de lutar, implantando o medo em sua alma. No entanto, desde muito tempo, ele aprendeu a lidar com esse sentimento.
Afinal, o medo só existe quando se tem algo a perder.
Frente a frente, um humano que nada sentia e um monstro alimentado pelos sentimentos devolviam olhares uma última vez. Até que um som metálico interrompe o momento.
O garoto saltou e a lâmina embebida em sangue o acompanhou. Assim como as folhagens, o corpo da criatura partiu-se ao meio numa fração de milésimos. Os cabelos ruivos do humano caíam sobre seus olhos ao final do corte, conforme o líquido rubro jorrava para todas as direções.
De lados diferentes, dois corpos caem. Um corpo sem alma e, do outro, um corpo sem vida.
O monstro pereceu.
— Porra… Minha espada trincou… — sussurrou na maior normalidade do mundo, após ter assassinado uma criatura com duas vezes o seu tamanho.
— Ei, garoto! Que porra é essa?! — berrou um homem de meia idade, calvo e barrigudo, que se aproximava com o término da batalha.
O homem vestia roupas típicas de um agricultor e tinha um corpo que fazia jus aos seus hectares de comida. Ele agarrou com força o jovem, que mal conseguia ficar de pé, pelo colarinho.
— Eu te disse para matar esse monstro, e não para destruir a minha plantação! — continuou, enraivecido.
— Não foi culpa minha, senhor. Ele…
— Não foi culpa sua uma ova! — Ele arremessou o rapaz para o lado, derrubando-o no chão. — Pegue as suas coisas e vá embora daqui!
— Mas e o pagamento?
— Pagamento?! Você destruiu a minha plantação e ainda quer pagamento?! Você é quem me deve uma indenização! — Ele partiu para cima de novo, mas Erick se afastou. — É melhor você sair antes que eu ligue para a associação e mande eles virem pegar um exorcistinha clandestino aqui.
Ameaçado, o garoto se levantou lentamente. Atrás do fazendeiro, numa casa de madeira, era perceptível duas mulheres espiando pela janela.
“Até pouco tempo atrás, quando aquela coisa ainda estava de pé, ele também estava escondido com o rabo entre as pernas, assim como aquelas duas. Agora que ela está morta, de repente esse velho se encheu de coragem”, pensou. “Se eu só pudesse pegar esse filho da puta e… Esquece.”
Sem dizer uma palavra, juntou sua espada do chão e balançou, espirrando o sangue dela no chão. Devolveu-a à bainha e se virou, caminhando para longe dali.
Não era nenhuma novidade esse tipo de coisa acontecer. “Eles chamam os exorcistas informais porque são muito mais baratos do que os da associação e depois arrumam uma desculpa para não pagar.”
— Eu já tô cansado dessa merda — reclamou, chutando pedras no caminho.
Após sair da propriedade, o garoto se sentou na beira de um riacho próximo e, do bolso, retirou uma espiga de milho roubada.
“De mãos vazias eu não saio. Essa vai ser a minha refeição pelos próximos três dias. Quanto menos lixo eu comer, melhor.” Calmamente, retirou a palha da espiga, dando lugar ao belo dourado do milho.
Mesmo com a imagem da criatura em sua mente, mal conseguiu conter a saliva que escorria pelo canto dos lábios.
Aproximou o milho, abriu a boca e… parou. Um milésimo antes de morder aquela verdura irresistível, uma lembrança passou por sua cabeça. Um latido.
O garoto guardou a espiga de volta ao bolso e se levantou, depois de jogar uma água no rosto para limpar o sangue. Não podia comer aquilo sozinho. Havia alguém o esperando em casa. Alguém com tanta fome quanto ele próprio.
“Ele precisa disso mais do que eu”, pensou. “Não me importo de comer lixo por mais alguns dias”.
Sem pestanejar, saiu em caminhada até a cidade que ficava a alguns quilômetros de distância. Suas costelas ainda doíam, mas suportar era algo que ele já estava habituado a fazer.
Foram quase duas horas de caminhada. Quando chegou em frente ao casebre velho de madeira, seus olhos quase brilharam. Estava tão cansado que mal podia respirar. Tão fraco que dar um passo era equivalente a subir uma colina. Com tanta dor que até um torturador teria pena.
Porém, independente de tudo isso, ele havia chegado. E atrás dessa porta, o seu único, mas fiel amigo, o esperava, balançando o rabo e pulando em suas pernas, como sempre.
Ele abriu a porta.
— Eu cheguei! — A sua voz ecoou pelo cômodo escuro, vazio e silencioso.
Não havia latidos. A única criatura que o recebia todos os dias não veio o receber desta vez. Ao invés disso, quem o deu boas vindas foi a morte.
O corpo de um cachorro estava estirado sobre o chão, em frente à janela. A luz do sol cobria o pequeno animal com seu calor, reconfortando-o com a última imagem de sua vida, mas que infelizmente não pôde ver: a chegada de seu dono.
Por um momento, Erick não teve reação. Ele chegou mais perto do seu velho amigo, esperando que ele só estivesse dormindo, ou talvez se fingindo de morto para deixá-lo preocupado, como sempre. Entretanto, o cheiro era impossível de enganar.
“Ele morreu”, pensou, encarando o cadáver. “Mas ele não estava tão velho assim. Será que foi algo que dei para ele comer? Tem sangue… Ele também estava doente?”, inúmeras dúvidas despontavam em sua cabeça, numa tentativa fútil de encontrar uma desculpa plausível para a morte.
O garoto suspirou.
“Bom, era de se esperar. Há quanto tempo nós não comíamos direito? Ele era um vira-lata, mas comer lixo não devia estar o fazendo bem. Que seja… Agora eu posso comer o milho sozinho…”
O garoto tirou o vegetal do bolso. A cor dele não era mais tão brilhante quanto antes. Com uma mordida, ele degustou. Mesmo estando há dias sem comer qualquer tipo de comida decente, aquilo não parecia nada bom.
Sem nem conseguir engolir, tudo voltou.
Ele caiu de joelhos no chão, enquanto vomitava. “Por quê… isso tá acontecendo?” O gosto de fel em sua boca era terrível.
Sem perceber, algo começou a escorrer pelo seu rosto. Sua visão ficou embaçada novamente. Porém, dessa vez era diferente, pois ele não sentia tontura. Na verdade, ele não sentia nada.
Então por que não parava de chorar?
As lágrimas caíam sem parar. Quando se deu conta, estava abraçado ao corpo imóvel do seu primeiro e, possivelmente, último amigo.
O tempo passou e, eventualmente, um novo dia chegou. Era de manhã, e suas mãos estavam completamente enlameadas. Em frente, o túmulo que cavou a madrugada inteira foi finalmente concluído.
Perto dele, uma cruz cravada no chão, feita com duas tábuas da casa, revelava uma inscrição: “Tobias & Erick”. A lápide cravava o nome de dois seres que viveram da mesma forma e da mesma forma acabariam.
Os olhos negros de Erick vislumbraram uma última vez a casa que dividiu com seu melhor amigo, antes dele virar as costas e sair para nunca mais voltar.
Na noite passada, não conseguiu comer nada. O corte em sua bochecha ainda sangrava com frequência e seus ossos raspavam um contra os outros a cada movimento. Seu único amigo havia falecido. E, mesmo assim, ele não sentia dor ou tristeza, e sim um vazio inexplicável. Um vazio que precisava ser preenchido.
Desde ontem, algo surgiu em sua cabeça. Uma decisão que não podia ser contrariada, motivada pela vontade de fugir, de sumir, de abandonar tudo e simplesmente se entregar à última opção que lhe restava.
E agora, ele se dirigia rumo ao local onde colocaria em prática tal pensamento.
Nas ruas escuras e afastadas do centro urbano, iluminadas somente pelas cores frias dos néons, um mundo de luxúria, crime e podridão se manifestava diante de seus olhos.
Em meio às ruas movimentadas, identificava os mais diversos tipos de pessoas. Dentre elas, havia aqueles portando espadas, machados, facas ou mesmo armas de fogo. Nenhum deles parecia preocupado em escondê-las, então era fácil descobrir com o que trabalhavam.
Nas paredes dos diversos estabelecimentos, pôsteres com fotos de pessoas e preços eram fáceis de encontrar. Junto ao telefone de contato, o trabalho que faziam ganhava destaque no papel: Exorcismo.
É claro que, para aquelas faces terem visibilidade e não virarem alvos, todos eles possuíam um selo grafado com um símbolo; o emblema da Associação Nacional de Exorcistas – a conhecida ANEX.
Enquanto andava, Erick podia ouvir diferentes conversas sobre demônios, dinheiro, morte e tudo que fosse relacionado a esse mundo sombrio.
Cada palavra que chegava aos seus ouvidos era como uma mosca irritante, zanzando sem parar ao redor de sua cabeça. Nesse mundo, exterminar monstros se tornou glamour e sinônimo de um prestígio que muitos buscavam alcançar. Em outras palavras, um “emprego” tão cobiçado quanto policiais, bombeiros ou médicos.
Enquanto isso, por baixo dos panos, milhares morrem para essas aberrações todos os dias, lutando porque essa é a única opção que lhes resta. A única maneira de conseguirem sobreviver.
Isso realmente o incomodava.
Entre os prostíbulos, os bares, as casas de apostas e os horrores escondidos na escuridão das vielas, Erick seguiu até o seu destino: uma construção pouco afastada das demais, porém, muito maior que qualquer outra.
Enquanto adentrava a localidade, as pessoas ao redor o encaravam com olhares desprezíveis e mal-intencionados.
— O que uma criança está fazendo aqui?
— Será que ele perdeu os pais? Por que ele está todo ensanguentado?
— Você viu onde ele entrou? Quer ir dar uma olhada? Hehe…
— Ele não vai durar muito tempo lá dentro. — Os sussurros o rodeavam, mas ele os ignorava.
Depois de alguns passos, Erick finalmente chegou ao seu destino. Um homem de aparência decrépita, com cabelos brancos cercando a calvície no centro da cabeça e olheiras profundas, na casa dos cinquenta anos, estava sentado atrás de um balcão.
Ao chegar perto, ele olhou para o garoto com desprezo, enquanto limpava o nariz com o dedo.
— O que você quer aqui, criança?
Colocando sua espada embainhada sobre o balcão, Erick encarou o velho profundamente.
— Eu quero me tornar um escravo.