Crônicas de Nuldin - Capítulo 1
— Bruxa… tá aí? Vamo olha pra cá rapidinho, temos um — uma torrente de risadas parece prestes a irromper — SACRIFÍCIO!
Risadas metálicas explodem no recinto, 5 focos no total de 6, o sexto foco de som vindo de um jovem passando por um terror silencioso. Seguem-se comentários de escárnio em relação ao jovem, falando sobre todos os métodos gráficos que a bruxa mataria ele.
O jovem continua apenas em silêncio, vez ou outra concordando com os comentários maldosos, desejando que aquela brincadeira termine logo.
— Por Magnus, deixa de ser frouxo, moleque! — Exclama o primeiro brutamontes (e provável líder do grupinho) — A Bruxa não é, nunca foi e nem vai ser perigosa pra ninguém, ela tá aqui há semanas, sem N E N H U M A resistência. Por quanto tem…
O som da porta deslizando cala todos ali, abrindo para uma presença imperiosa entrar lentamente, os passos quase não fazendo som algum até chegar bem ao lado do líder daquele grupinho.
— Sr. 729, por favor continue a… zombaria com nosso querido recruta, em outro lugar e em outra hora, já estou muito estressado lidando com a minha carga normal de trabalho, não quero ter de disciplinar cada um de vocês. Então façam o favor de levar a suas bundas preguiçosas pra fora daqui. — assim que ele fala isso, os outros vão rapidamente saindo da sala, abandonando o recruta e o líder — E NÃO ENTREM NA CELA DA BRUXA!
O novato toma essa deixa para sair e antes que o líder dos brutamontes pudesse seguir pelo mesmo caminho, o superior que a havia lhe dado uma bronca termina:
— E pegue leve com o garoto, ele é um G7, ainda não conseguiu experimentar um renascimento, mas é um corpo de primeira linha. Não. Podemos. Perdê-lo.
O som da porta se fechando marca a saída do líder agora envergonhado, e a entrada de um bruto ainda maior, seus passos pesados fazem o chão tremer e uma tênue névoa subir. A um som de engrenagens indicando a sala ter sido fechada remotamente.
Ambas as figuras na sala são muito diferentes, a presença imperiosa é esguia e alta com uma aparência que tentava ao máximo parecer “puramente” humana, mas como todos os outros, é feito de metal, circuitos, cabos e outros materiais sintéticos.
O outro é bem mais alto, uma montanha de metal. Nada do humano padrão podia ser encontrado ali, além, claro, da sua cabeça, que mais parecia seu próprio crânio exposto sem a pele. Isso claro complementava seu “Corpus” como passaram a se referir, um corpo feito para ser eficiente, uma máquina de combate mortal.
Os brutamontes anteriores têm aparências similares a este, mas muito menores e muito piores nas artes da violência humana, que parecia ter tido um desenvolvimento novo, com a chegada da nova era.
— Não vamos ficar nesse buraco muito tempo, Bo — fala o homem imperioso — já comprei nossas passagens, não precisa dessa sua cautela toda.
“Sou seu guarda-costas, é o meu trabalho” Bo réplica, não comunicando verbalmente, apenas transmitindo uma mensagem virtualmente para os olhos do seu parceiro.
— Você não precisa ficar tão preocupado, como já viu, eu selei a sala e nenhum dos donos daqui tem um corpus vigia ou um equipamento de gravação bom o suficiente para atravessar paredes. Foi um erro vir nessa empreitada, a ideia de uma arena já era imbecil por si só, mas ele passou dos limites depois do-
“Kal, cala a boca”
— Até você bo? Daquele bando desorganizado eu esperava certa indisciplina, mas de você eu esperava mais — Kal fala exagerando um tom melodramático — a partir de agora como punição, não pode mais usar o meu apelido. Para corrigir seu comportamento, claro.
“Tudo bem. kalle.” ele enfatiza a mensagem, fazendo o kalle aparecer de forma mais rápida do que o resto do texto. “Ainda vou me comunicar por aqui, prefiro durante contratos, pelo menos penetras só vão ter um lado da conversa. Agora vamos, termine o que você veio fazer, tenho longas férias que um certo contratante apostou em um negócio que claramente ia dar merda”
— Tá bom, tá bom, que tal guardar essa audácia toda em um dos seus cofres mentais? — Kalle começa a procurar algo em uma pequena tela holográfica, que só era visível a seus olhos.
“Anotado.” a mensagem aparece instantaneamente em resposta.
“Curto e grosso, é bom que certas coisas não mudam depois da morte.” pensa Kalle levianamente, apenas para jogar o pensamento fora, assim que acha o que estava procurando.
Aos olhos de Kalle há várias listas holográficas, com centenas de itens, ele clica em um deles e um pequeno brinquedo aparece em suas mãos. Um coelhinho azul robótico, com um largo sorriso no seu rosto, o que o deixava mais assustador do que amigável. Apesar de não parecer, é uma antiguidade, da era das Megacorporações e de quando ainda se arriscava crianças crescerem em ambientes inseguros, algo que não acontecia há alguns milênios.
O homem com a presença imperiosa finalmente levanta seu olhar para frente, não mais ignorando a Bruxa. Agora era o teste de ferro, ele precisa confirmar algo para ter sua saída garantida dali.
Bo nota o que estava para acontecer e fica ainda menos relaxado, pronto para qualquer tentativa contra a vida do seu parceiro.
Kalle olha diretamente para a bruxa, que estava atrás de grades de ferro, algo que foi feito pela sua situação única, já que apesar de não tentar em nenhum momento resistir aos seus captores, o mínimo de segurança foi exigido pelos donos do lugar. Por alguns segundos ele a analisa, anotando a descrição em um relatório holográfico:
“Um corpo produzido a partir de diversos metais, a cor mais presente é amarelo vibrante, agora sujo e arranhado, além de ser transpassado por linhas pretas, que não tem um padrão específico. Suas pernas e braços parecem patas animalescas robustas. A face dela está completamente exposta, sem nenhum fio de cabelo para esconder o fato de que lhe faltam olhos, maxilar e mandíbula como se ela estivesse…”
— Incompleta — Kalle sussurra, ele deleta a frase e termina o relatório em “mandíbula.”
Kalle vê o coelhinho de brinquedo uma última vez, antes de jogá-lo dentro da cela, caindo com um baque no chão. Isso ativa o robozinho, seus olhos e sorriso brilham com uma luz fraca, ele começa a movimentar os braços e pernas enquanto uma musiquinha de baixa qualidade toca.
— OLÁ, AMIGUINHO!!! Vamos brincar até a raposa che… — A Bruxa o interrompe empalando-o com uma de suas garras enferrujadas, para logo depois o jogar contra uma das paredes da cela, destruindo-o.
Kalle observa a cena chocado, como sempre quando ele vê a figura da Bruxa se movimentando de uma forma antinatural, como se as ligações do seu corpo fossem extremamente flexíveis e usando uma quantidade mínima de movimentos para realizar seus ataques, e por fim, ficar completamente imóvel como uma boneca sem vida.
“Então é ela?” Bo envia se aproximando, um pouco mais confiante, ao guardar o medo em um de seus cofres mentais.
— Si-Sim — Kalle responde de forma hesitante, sua mente enchendo de preocupações após compreender a gravidade da situação — Temos que cair fora daqui, é surpreendente que os engravatados ainda não…
Bo coloca a mão no ombro do parceiro, dando um olhar afiado, apressando-o.
— Certo, hora de pular desse barco.
Ambos saem da sala rapidamente sem olhar para trás, sem olhar para a bruxa que os encarava.
Um mar de escuridão faz-se presente onde deveriam estar os olhos, além de uma leve névoa transparente, que também sai de onde deveria estar sua boca e espalha-se pela cela.
Até que…
Duas estrelas. Distantes e embrenhadas na escuridão, mas ainda ali. Dois pontos brancos emanam luz, no local dos olhos da Bruxa.
A criatura arrasta-se pelo chão da sua cela, cada movimento calculado, para se aproximar dos destroços daquele brinquedo antigo. Procurando entre os pedaços, encontrou um quase perfeito, que caberia facilmente na sua mão fechada. Seus pensamentos são difíceis de decifrar acerca do que exatamente busca fazer com aquilo, mas claramente precisa de algo fácil de esconder.
Com um movimento rápido de suas garras, ela cria uma lâmina a partir do pedaço de metal.
Pequena. Afiada. Não muito resistente…
Levantando a arma improvisada, até onde seria a sua boca, a bruxa fecha seus olhos se concentrando. Pequenos fios saem daquele abismo e puxam a lâmina para dentro, a ocultando. A energia parece finalmente sair do seu corpo, seus olhos agora fechados imóveis.
Agora a mente indecifrável da bruxa exala um pensamento único, que não parecia ser dela:
“A mente transforma, a realidade decai.” Repetindo centenas de milhares de vezes forte o suficiente para aqueles próximos ouvirem.
O tempo passa como um borrão, a cela é limpa, incontáveis vezes os mesmos brutamontes aparecem ali e até mesmo aquele novato aparecia e desabafa com a Bruxa, mas nunca ganhou algum tipo de resposta. Isso porque a Bruxa na maior parte do tempo continuava naquele torpor, apenas acordando com certos gatilhos.
E por enquanto ela vai continuar ali, esperando por eles.