Chamas Carmesim - Capítulo 2
Assim que abriu os olhos, lembrou-se do ocorrido. Feena apagara por várias horas, e o sol forte já sumia por detrás das árvores. O vento frio gelava seu corpo ainda dormente, e sua garganta estava bastante seca. Ficou a imaginar como sobrevivera a tamanha queda, mas isso perdeu a importância assim que reparou aquela aranha enorme a a observá-la do topo da árvore.
— Ela vai pular em mim. Com certeza vai pular em mim. — Dizia a si mesma, tentando levantar-se.
Sentiu forte dor em todo o corpo, e percebeu a realidade assim que olhou para seu braço esquerdo, torcido de forma horrível. A dormência causada pelo fruto agira como anestésico, mas ainda doía.
— Não podes fugir? – disse uma fina voz, aguda como vento.
— Quem está aí? Ajude-me! — suplicou Feena
— Não podes fugir. És minha agora. Tchssss…
Não era uma pessoa, e sim a própria aranha, sussurrando de cima da árvore. Era ela quem falava.
— Nosso veneno é forte. Tcshhhh… Não podes correr muito menos resistir.
Feena não havia sido envenenada pelo fruto, mas pelo insípido veneno que cobria o tronco daquela grande árvore. Cortou-se tantas vezes durante a subida, que não demorou a sentir os efeitos. Era perfeito; uma verdadeira armadilha. Percebera seu erro quando trocou palavras com a criatura, mas era tarde demais.
— Por favor, deixe-me ir. Nenhum mal lhe causei, tampouco permanecerei em seu território. Deixes me ir e não mais a perturbarei.
— Toda comida suplica pela vida…. tchssss… mas você parece diferente. Não é Kal-hasiana. Tchssss…
— Sim, isso. Deixe-me ir. Eu imploro.
Num rápido pulo, a aracne já estava sobre ela. Gotas de veneno escorriam por suas quelíceras, e seus olhos permaneciam fixos em sua presa.
— Servirás de presente para nossa rainha. Tchhhhsss.
Com seus pedipalpos agarrou o corpo mole de Feena, e começou a arrastá-la.
— Ah tchhhsssss comida…. você encontrou comida, tchhhhsssss. — disse uma segunda aracne que se aproximava de Feena.
— Não, precisamos levá-la para nossa rainha, tchhhsss.
— Mas ela parece tão… tchsssss.. apetitosa. Não é Kal-hasiana.
— Afastchhhhsssse de minha presa, Likchá. Ou eu a partirei em pedaçossssss.
— Dê-me um pedaço, apenassss, Lutzichhhhhhssss. Apenas um pouco da pele, tchhhssss.
— Parem… por favor… — Feena não tinha forças para resistir.
As duas Aracnes discutiam o destino da garota, e outras começavam a surgir das sombras das árvores. As criaturas cheias de pernas aglomeravam-se ao redor de Feena, e Lutzich continuava a ameaçar qualquer uma que tentava tocar sua presa.
As horas passavam rápidas como vento, e a dormência causada pelo veneno continuava a surtir efeito. Imóvel, a garota desistira de tentar argumentar com Lutzich, pois ela a mantia a salvo das outras criaturas.
— Vamos comê-la!
— Quero suassssstchhhh víceras.
— Apenas os braçosssss.
— Ninguém a tocará! Rebatia Lutzich.
À medida em que anoitecia, a garota era arrastada aos poucos pelo chão da floresta, e dezenas de Aracnes a seguiam de perto. Gritou, no entanto, quando percebeu que seria carregada para dentro de um buraco escuro, logo abaixo de raízes de uma grande árvore.
— Não! Deixe-me ir! — Suplicou.
Assim que Lutzich adentrou o túnel, algo agarrara a perna da garota, jogando-a para longe da entrada. Apesar do veneno, Feena sentiu forte dor quando sua cabeça se chocou contra o tronco de uma árvore.
— Ela é minha presa! — gritou uma voz já conhecida pela garota.
A fada puxou Lutzich por uma das pernas e arremessou-a também para longe da entrada.
— Tchhhhhsssss! Uma faaadaaaa…! — disse Likchá levantando suas patas dianteiras.
O sol havia se escondido, e a fada, que durante todo o dia permaneceu no encalço de sua presa, escondendo-se nas sombras, tinha agora total mobilidade. Abaixada em posição de combate, e com suas garras prontas, posicionou-se no meio das Aracnes.
— Ninguém leva minha presa. Ninguém. — O olhar de ódio da fada fazia nova aparição.
Feena, caída de lado e ainda imóvel, permanecia em silêncio, apenas observando a cena. Torceu para que aquela situação possibilitasse uma tentativa de fuga.
Num pulo, Likchá investiu contra a criatura alada, mas esta saltou para trás ao mesmo tempo em que decepou as patas dianteiras de sua adversária. As garras de uma fada caída eram afiadas como lâminas de alta qualidade, e eram bastante temidas por guerreiros Kal-Hasianos.
As outras Aracnes, assustadas pelo grito agudo de Likchá, pulavam contra sua adversária, que apenas desviava de um lado para o outro, girando o corpo como se estivesse dançando.
— Uma, duas, três, quatro, cinco, seis… — A fada contava com voz de deboche as patas aracnídeas que decepava. — Sete, oito, nove, dez, onze patinhas peludas. — riu.
— Mateeeem TCHSSSSSSS! — urrou Lutzich que até então apenas observava a batalha.
Encorajadas pelo brado de Lutzich, as Aracnes não mais atacavam assustadas, mas pareciam mais coordenadas e viciosas do que antes.
— Opa, opa. As pobres aranhas estão irritadas. Tadinha da dona aranha. — Debochou saltando para cima de um alto galho.
Não mais intimidadas, as Aracnes escalaram com voracidade o tronco da árvore em busca de sua adversária. A fada, sagáz, saltou rente ao tronco, e como uma guilhotina, dilacerou quatro delas antes mesmo de chegar ao chão.
— Pobre dona aranha. — Lambeu a ponta de suas garras.
— Eu messsssma… acabarei com você tchssssss!
Lutzich era bastante rápida para uma Aracne, definitivamente superior às outras. Não pulava cegamente sobre a fada como suas companheiras, mas dava rápidos botes com suas presas, mantendo-se sempre a uma distância segura. Evitando cortes profundos em suas patas e pedipalpos, logo conseguiu aproximar-se o bastante para cravar suas presas na sádica criatura.
— A dona aranha é forte. Sim, ela é! — disse a Fada ao segurar com suas mãos ambas as quelíceras de Lutzich.
Pressionada, e forçada a recuar alguns passos, sentiu suas costas e asas baterem contra um tronco. Utilizava de toda sua força para afastar as presas de sua adversária aracnídea.
Feena, que permanecia em silêncio observando o combate, sentiu a dormência deixar seu corpo, e mesmo que ainda mole e dolorida, conseguia se arrastar pelo chão. A batalha violenta entre a fada e as aracnes era a chance ideal para escapar daquele local. Teria sido a fuga perfeita, se não fosse pela pedra que pressionou seu braço esquerdo, trazendo um grito de dor.
— Vai escapar! Sim, ela vai escapar! — disse a fada reparando a fuga da garota.
Empurrando as quelíceras de Lutzich com toda sua força, saltou para cima, e correu por cima do corpo gordo da Aracne, abrindo distância segura.
— Não! TSSSCHHHHH!
A fada sentiu suas asas presas por algo pegajoso. Da glândula fiandeira, localizada na parte de trás do abdomem de Lutzich, um forte fio de teia fora atirado como uma flecha. Nem mesmo suas afiadas garras eram fortes o bastante para partir aquela teia pegajosa, e perdendo sua mobilidade, sentiu duas enormes presas perfurarem sua carne.
O corpo machucado da fada transformou-se numa poeira negra, que espalhando-se pelo vento, desapareceu daquele local. As Fadas mais antigas podiam transformar-se em pó para escapar de adversários, e por este motivo, dificilmente eram mortas num combate direto. Lutzich deu um grito agudo, e as Aracnes restantes curvaram-se diante de sua companheira vitoriosa.
As dezenas de Aracnes mortas e machucadas que jaziam pela grama eram prova da força e vitória esplêndida de Lutzich, e nenhuma outra criatura tentaria se apossar de sua presa como outrora.
— Agora… você servirá de presente… para nossa rainha! Tchssssss! — disse a Aracne vitoriosa, agarrando a indefesa garota, e levando-a novamente para dentro daquele buraco escuro e imundo.
— Não……. — chorou Feena sentindo seu corpo ser arrastado como um saco de batatas para a escuridão da terra.
O túnel era apertado. Seus braços e pernas raspavam nas paredes. Não sentiu terra ou raízes, mas sim uma textura estranha; macia e peluda. Era um verdadeiro pesadelo. As paredes estavam repletas de pequenas aranhas aglomeradas, revestindo o interior daqueles tuneis. Dezenas, centenas, ou até milhares. Eram tantas que sentiu um forte embrulho no estômago. Logo o túnel alargou-se, e a aranha deixou a garota cair sobre o chão frio.
Estava numa grande caverna arredondada. Com dificuldade, moveu a cabeça observando o recinto. Ao redor, centenas de buracos ligavam-se àquele salão; como se toda a floresta estivesse conectada por túneis subterrâneos. Ao centro havia uma grande rocha, e sobre esta erguia-se um trono de pedra. A iluminação era feita por duas grandes tochas de fogo mágico; chamas esverdeadas criadas por mágica antiga, que não podiam ser apagadas por vento ou água.
— A rainha está a sua espera, oferenda. Tcshhhh… — disse Lutzich parada ao seu lado.
Feena esperava algo assustador, como uma aranha gigantesca, ou algo ainda mais grotesco, mas acabou se surpreendendo. Saindo de um dos túneis, uma mulher caminhou em direção ao trono. Era linda. Longos cabelos negros, olhos esverdeados, e uma pele lisa e clara faziam dela bem diferente daquilo que imaginara. Estava desnuda, vestindo apenas adornos prateados, como braceletes, colares, anéis, e uma bela corrente na cintura. Seu corpo era deveras esbelto, e seria motivo de inveja para as mais belas mulheres de Kal-har. Com o porte de uma verdadeira rainha, sentou-se no trono, cruzou as pernas, e sorriu.
— Por que estás tão assustada, menina? — perguntou à garota que permanecia em silêncio no chão. — És minha convidada de honra. Sinta-se lisonjeada.
— Meu corpo dói, não sinto meus braços, e após ser envenenada, fui arrastada feito animal abatido. Como posso sentir-me honrada? — resmungou baixinho.
Feena não havia percebido, mas passara por tantas situações perigosas nos últimos dois dias, que já não se acovardava como antes.
— Oh, que rude de nossa parte. Perdoe-nos. Lhcutah! — parecia chamar alguém. — Cuide de nossa convidada.
Logo após a ordem, uma aranha diferente das demais se aproximou da garota e parou sobre ela. Tinha quase dois metros de largura; era esverdeada e quase transparente. De suas presas escorria um líquido amarelo fétido e viscoso. O cheiro era insuportável, e causava um rebuliço em seu estômago. Sentiu o veneno e a dor deixar seu corpo. Suas cicatrizes começaram a sumir, e até mesmo os ossos de seu braço torcido tornaram ao lugar de origem. Não doía, mas era nojento. Queria vomitar, mas não havia nada em seu estômago. Em poucos minutos conseguiu mover seus membros.
Thalnis, a rainha, criava quatro categorias de Aracnes. Soldados, como Lutzich, eram utilizadas para explorar o território, e caçar alimentos. As sentinelas, que possuíam um exoesqueleto duro como pedra, serviam para a defesa dos túneis. As Aracnes Armadeiras eram as mais temidas, pois tinham pernas mais compridas do que as demais, e sua flexibilidade e forte veneno permitiam montar armadilhas capazes de derrubar a mais feroz das criaturas. O quarto e último tipo era o mesmo de Lhcutah, chamadas de Aracnes Xamãs; eram grotescas de aparência, e seus venenos podiam curar a pior das enfermidades, mas se o corpo rejeitasse o tratamento, sofreria a mais terrível das mortes.
Lhcutah saiu de cima da garota, e voltou para dentro de um dos tuneis. A rainha observava a recuperação da convidada com um ar de superioridade. Parecia divertir-se com aquilo. Feena tentava levantar-se, e conseguiu após uma ou duas fraquejadas.
— Obrigada, eu acho.
— Não há de que, minha jovem. – Sorriu – Sou Thalnis, a rainha deste santuário. A mais forte dos Anuihkas! Senhora da floresta, e a mais bela das criaturas. Diga-me se necessitas de algo, e se for de meu agrado, poderei conceder.
— Minhas necessidades? Fui trazida contra minha vontade. Fui envenenada, arrastada como um objeto, ameaçada, e estou imunda. Tudo o que quero é deixar este lugar; esta floresta; encontrar alguma cidade ou vila.
— Creio que seja impossível. És minha convidada de honra.
— Convidada? Sinto-me prisioneira. Fui até mesmo chamada de oferenda.
— Correto. Você servirá como meu alimento. Sinta-se honrada. O mínimo que posso fazer é tratá-la bem… — riu — …por hora.
Thalnis era um dos Anuihkas, os filhos originais da união dos Andonah com animais ou insetos. Foram os capitães da Grande Guerra, liderando hordas de criaturas viciosas contra o reino dos homens. Aqueles que sobreviveram esconderam-se nos confins de Kal-har, onde alimentam seu ódio dia após dia, esperando pela próxima grande guerra. Chamada também de Rainha das Aranhas, Thalnis fora uma das mais sádicas e pervertidas; abusou e torturou milhares de vítimas antes de devorá-las. Um avatar de puro ódio e luxúria; estes eram os fundamentos de sua alma perversa.
Feena sentiu seu coração trepidar, mas não demonstrou fraqueza. O pescador, a fada, as aranhas, o veneno; tudo aquilo anestesiara sua mente. Estava cansada de fugir. Seu coração dividia-se entre medo e raiva, e seus olhos prateados fitavam os da rainha.
— Gosto deste olhar. Minhas presas costumam cair aos meus pés, implorando por suas vidas inúteis. Por que não suplicas pela sua? Talvez eu possa até mesmo libertá-la.
— Não o farei. Sei que não tens intenção de libertar-me. — respondeu com coragem.
Dando leves tapas em seu vestido rasgado, como se tirasse a poeira, não tirou os olhos de Thalnis, que não pode evitar uma gargalhada.
— Incrível. Gosto de oferendas com um bom espírito. Gosto muito.
A rainha massageava seu corpo, gemendo enquanto falava e observava a garota. Tomada por lascívia, lambia seus lábios e ria. Com o rabo dos olhos, a garota procurava por uma rota de fuga, mas embrear-se naqueles túneis cheios de aranhas seria suicídio. Era como escolher a arma de seu algoz; entre a espada e o machado. Não havia escapatória.
— Pensas em correr? Deixe me esclarecer sua situação, jovem oferenda.
Thalnis soltou um grito agudo, diferente de qualquer coisa que Feena ouvira antes, e o som ecoou por toda a caverna. De cada buraco suas leais aracnes começaram a aparecer, bloqueando cada possibilidade de fuga. Soldados, sentinelas, armadeiras, e até mesmo duas xamãs; todos os tipos de aracnes reuníam-se nas saídas. As criaturas soltavam gritos agudos de êxtase, e raspavam suas pernas umas nas outras. Eram como o início de um ritual.
Descendo do trono, a rainha aproximou-se de Feena, e beijou-a no rosto.
— Exalas um cheiro tão doce. Seu rosto é belo como de uma princesa, e seus cabelos vermelhos descendem das mais belas chamas. É a melhor das oferendas. — sussurrou.
Thalnis posicionou-se atrás da garota. Passava seus dedos nos cabelos vermelhos, e cheirava seu pescoço. Feena manteve um olhar sério, e permaneceu imóvel. Em sua mente maquinava tentativas de fuga, mas todas pareciam frustradas. Não pôde, no entanto, manter a calma quando a Rainha lhe tocou se forma imprópria. A garota girou seu corpo e com a palma da mão esbofeteou o rosto de Thalnis. Houve completo silêncio em toda a caverna.
— Tire suas patas pútridas de mim! — disse Feena.
O semblante da rainha tornou-se em fúria. Seus olhos esverdeados deram lugar a um vermelho escarlate. Suas mãos que antes acariciavam o corpo da garota, agora a agarravam pelo pescoço, e de seus lábios uma saliva violeta escorria.
— Insolente! É assim que respondes ao meu amor? Serás devorada feito animal imundo. Sua pele servirá de abrigo para meus bebês, e suas entranhas de alimento para meus soldados. Seus ossos serão brinquedos para lobos famintos, e seu coração apodrecerá ao relento.
— Mates me de uma vez, monstro nojento. Não passas de uma covarde, escondida sob a terra. — respondeu com dificuldade, com seu pescoço pressionado.
— Lixo imundo! — gritou a rainha ao arremessar a garota contra o trono de pedra.
O forte impacto quase fê-la perder a consciência, mas o veneno de Lhcutah, que ainda escorria por seu corpo, curou o ferimento quase que de imediato. Feena aproveitou-se do momento e fingiu estar desacordada; seu instinto de sobrevivência evoluíra.
Thalnis, balbuciando de raiva, caminhou em direção a Feena, mas foi surpreendida pelo grito de Lutzich.
— Intrusssssssso! Tchhhsssss!
— O que? Quem ousa invadir meu território? Esqueçam a menina! Ela não irá a lugar algum. Encontrem o intruso, e eu mesma o devorarei! — Gritou Thalnis, ainda irritada pela insolência de sua oferenda. — Banquetear-me-ei em vísceras esta noite!
Thalnis e suas Aracnes adentraram os túneis em busca do suposto intruso, e apenas uma Armadeira e uma Sentinela permaneceram na sala do trono, observando a garota desmaiada.
Ainda fingindo desmaio, abriu de leve apenas um dos olhos, e observou as duas Aracnes no recinto. A sentinela parecia distraída, e caminhava pela sala do trono prestando mais atenção no que acontecia nos túneis. A armadeira, por sua vez, ficava em completa e plena prontidão. Suas pernas compridas estavam dobradas, pronta para saltar sobre sua vítima a qualquer momento. Feena entendera a capacidade intelectual daquelas aranhas desenvolvidas, e talvez pudesse fugir blefando, mas aquela Armadeira realmente a assustava.
— Onde…. estou? — fingiu estar acordando.
A sentinela voltou-se para a garota, enquanto sua companheira permanecia em prontidão.
— Para onde foi a rainha? Queria desculpar-me….. — Sentou-se no chão, com a mão na parte de trás da cabeça.
— Mentirossssaaaaaa…… — uma voz ainda mais aguda vinha da Aracne Armadeira. — Tchsssss…. nunca estivera dessssstchssssacordada. Mentirosaaaaaa…
Aracnes armadeiras eram as mais sagazes da sua espécie. Com forte instinto de caça, e grande habilidade em armadilhas e ciladas, sabiam quando uma presa as enganava.
— Qual o seu nome, ó mestre aranha?
— L’kutah é meu nome…. tchsssssss….
— E de sua companheira? — tentava iniciar um diálogo forçado.
— Sentinelasssss…. são como pedrasss…
— Entendi. — Tentava parecer calma, apesar de suas pernas tremerem cada vez que a aracne falava. — E qual o nome dela?
— Pedras não tem nome. Pedrassssss não falaaam! TCHSSSSSSsssss…. não és muito esperta, ésssssss?
— Perdão, mestre L’kutah. Não sou muito esperta, como podes ver. — abaixou a cabeça em reverência.
— Sim.. tchsssss… você não é. – as pernas de L’kutah começavam a relaxar.
— Permita-me perguntar algo, ó grande L’kutah. Qual dentre vocês duas é a mais forte?
Feena lançara uma flechada fatal contra o orgulho de L’kutah, pois armadeiras sentiam-se superiores a todas as Aracnes, com exceção de sua rainha.
— É óbvio que sou a mais forte! TCHSSSSSSS! — pareceu irritar-se e novamente colocou-se em posição de ataque. — Não me compare com uma pedra inútil.
A sentinela, que até então permanecia imóvel, agitou-se após a afirmação prepotente de sua companheira. Suas pernas duras faziam muito barulho quando tocavam o solo rochoso, e suas patas dianteiras levantadas pareciam desafiar L’kutah. A garota esperou pelas palavras da aracne armadeira, mas esta saltou de imediato contra a sentinela ao sentir-se desafiada.
As duas aracnes iniciaram um feroz combate dentro da sala do trono, esquecendo completamente da presença da garota. L’kutah era muito veloz e agil, mas suas presas não penetravam no duro exoesqueleto da sentinela, que por sua vez revirava-se de um lado para o outro tentando livrar-se de sua adversária. Parecia ser um combate eterno, mas para a surpresa de Feena, a sentinela atirou-se contra a parede, esmagando e causando muitos danos a L’kutah.
— Tchssssssssssssss…. malditaaaaa! — bradou a armadeira ao pular novamente sobre a sentinela.
Mesmo ferida, L’kutah insistia em cravar suas queliceras no corpo rochoso da outra aracne, mas tivera seu corpo esmagado contra a parede outra vez. Ferida, e com uma de suas patas inutilizada, tentou fugir para dentro dos túneis, e sua algoz a seguia com voracidade, em busca de sua vida.
Feena ficara sozinha no recinto. Levantando-se do chão, assumiu o risco e embreou-se num dos túneis, o qual parecia subir. Centenas de aranhas comuns revestiam as paredes e o chão, causando forte embrulho no estômago da garota, mas estas eram inofensivas se comparadas às grandes aracnes. Aos tropeços, subiu pela rede de túneis, sempre escolhendo os locais que pareciam voltar à superfície.
— ENCONTREM-NA! — ressooava o brado de Thalnis pelos corredores escuros.
Alimentadas pelo grito de sua rainha, as pequenas aranhas, que antes eram inofensivas, começaram a saltar sobre o corpo da garota, que entre picadas e arranhões continuou a subir sem olhar para trás. Não demorou até encontrar luz, e o sentimento de esperança reforjou sua alma. Feena arrastou-se pela saída apertada, até que seus braços tocaram a fria grama da floresta.
A lua brilhava forte no céu de Kal-har, e o vento gelado batia forte contra seu rosto. Feena esbofeteou as aranhas restantes de seu corpo, e para sua sorte, o líquido da aracne Xamã continuava a curar as picadas que acabara de receber. Sobrevivera outra vez, e evitando novas chances ao azar, a garota correu por entre as árvores até o fim de suas forças. Após alguns minutos em disparada, sentiu forte tontura, e o breu abraçou sua mente. Lutara ao limite de suas forças.
Um forte vento acordou-a de seu sono. O frio da noite abraçava-a com impiedade. Sentiu a terra e grama em suas mãos. Diante dela um riacho cantarolava; aquele mesmo que encontrara no dia anterior. Fora de perigo, deitou-se de costas para a grama, e respirou fundo; aliviada. Engatinhou até a beira do riacho, e tomou um gostoso e lento gole daquela água cristalina. A luz do luar invadia a brecha das arvores, iluminando seu rosto.
Seu estômago ainda estava embrulhado por causa da gosma amarelada. Ainda em suas roupas, que estavam em frangalhos àquela altura, entrou no riacho. A água estava gelada, mas a repulsa por aquele líquido fê-la banhar-se ali mesmo. Esfregou seu corpo diversas vezes tentando apagar os toques pervertidos de Thalnis de sua memória. Ao deixar a água, seu corpo tremia, e seus dentes batiam uns contra os outros. Permaneceu encolhida, sentada sob uma árvore; esfregava seus braços e pernas; desejava a luz do sol.
— O sol! Como fui esquecer! — disse a si mesma, assustada.
— En-con-trei! — disse uma voz infantil já bastante conhecida.
Feena pulou para o lado, e evitou ser golpeada. Aquela criatura sádica a assombrava outra vez.
— Errei? — resmungou a fada.
— Você de novo? – levantou-se do chão, encarando-a nos olhos.
— Fadas não desistem de suas presas. Não. Nós sempre triunfamos. Afinal de contas, você é minha refeição! — riu a criatura.
— Sua e de muitos outros, aparentemente. — suspirou.
— Desistiu? Perdeste o medo? Assim não tem graça. — reclamou.
— É claro que tenho medo. Apenas cansei. Estou exausta, e meu espírito chegou ao limite. Mate-me de uma vez, ou saia de minha presença.
A criatura permaneceu imóvel e confusa. A maior parte de seu prazer baseava-se na perseguição e desespero das vítimas. Seu olhar de ódio retornava.
— Assim não tem graça! — gritou após atirar-se contra Feena e acertá-la com força.
A garota voou para trás e caiu de costas sob o riacho. Desde que acordara na praia não tivera paz, e viver dessa forma não fazia sentido. Ajoelhou-se nas geladas águas, e com os olhos fechados e a cabeça abaixada esperou pelo fim.
— Desistiu mesmo? — riu a fada, aproximando-se de sua vítima. — Eu vou comer você, sabia?
A fada estava um pouco decepcionada com a desistência de sua presa, e agachou-se em sua frente, observando-a com minúcia.
— Últimas palavras? — debochou.
— Sim…. — a garota respondeu quase num sussurro.
— E quais são? Viu como sou boazinha?
— Morra de uma vez — Feena gritou ao cravar um galho quebrado que agarrara de dentro das águas no pescoço de sua algoz.
A criatura alada urrou e chutou a garota para longe.
— Ah os últimos esforços de uma presa. — a fada deleitou-se ao retirar o graveto de sua carne. — A carne não é gostosa se não resiste até o final.
Feena resistira o máximo que pode, mas aquela fora sua última tentativa. Ao levantar-se, escutou algo cortar o ar, como uma flecha, e o grito ensurdecedor da Fada ecoou pela floresta. Não foi um grito de raiva, mas sim de dor. Assim que abriu os olhos, surpreendeu-se. Trespassada por uma lança avermelhada, a criatura agonizava presa a uma árvore.
— Uma fada caída? Não é a toa que tanta gente tem sumido nas redondezas. — disse uma voz vinda por entre as árvores.
Feena virou o rosto e procurou pela origem da voz. Espantou-se com a linda mulher que aparecera diante dela. Não utilizava muitas roupas. Uma pequena armadura de couro cobria-lhe o peito e parte da cintura. Andava descalça, e utilizava adornos dourados em suas pernas e braços; um belo colar enfeitava seu pescoço. Os longos cabelos dourados balançavam contra o vento gelado à medida que se aproximava da criatura empalada. Seus olhos azuis lembravam safiras, e fitavam a fada com deboche. Segurou a lança com força e empurrou-a um pouco mais, torcendo-a e arrancando urros de dor de sua caça.
— Poupe-me! — suplicava a criatura empalada.
— Você está bem, garota? — perguntou, tornando o rosto para Feena.
— Si..Sim. Acho que sim. — gaguejou aliviada. — Quem é você?
— Meu nome não é importante, mas os moradores locais me chamam de Coral.
— Coral…. — a criatura alada arregalou os olhos em completo terror.
A guerreira retirou a lança da árvore, e a fada caiu de bruços sobre a terra.
— Últimas palavras?
— Sim. — respondeu em espasmos agonizantes. – Não deveria ter libertado meu corpo.
Coral cravou a lança com força, mas a ponta encontrou apenas a terra úmida. Uma gargalhada ecoou pelo ar, e desapareceu em seguida. A fada transformou-se em poeira e deixou o local.
— Porcaria. Julguei-a uma fada comum, mas deve pertencer à primeira geração. — suspirou.
A guerreira de cabelos dourados retirou a lança da terra. O sangue negro que escorria pela arma tornara-se um pó negro que se espalhava pelo ar. A lança avermelhada era revestida de letras douradas; era a lingua dos Antigos, há muito tempo esquecida pelos Kal-Hasianos. Após prendê-la às costas, aproximou-se de Feena e tocou-lhe a testa.
— Ardes em febre. Há quanto tempo está por aqui? Parece bem desidratada também. Qual o seu nome?
— Eu sou Feena… eu…
Sua consciência esvaiu-se. A exaustão e fome atingiram o limite. Tudo ficou escuro…
— Durma, pequena. Você está segura agora.