Carnaval no Abismo - Capítulo 8
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- Capítulo 8 - A Complexidade do Gato Envenenado na Caixa (3)
Eu e Lorena ficamos com Juliana até ela se acalmar e adormecer.
— Mas quem te deu o direito de cair no sono junto com ela, representante de classe? — As duas estão abraçadas na cama como se fossem melhores amigas desde sempre. Uma cena tão meiga que me obrigou a registrá-la com a câmera do meu celular. — Bem, acho que também vou deitar um pouco. Depois de tudo isso, eu mereço um momento de paz, né?
Deixei as duas e fui até o quarto dos pais em busca de refúgio. Quando cheguei, encontrei Melissa olhando fixamente para o entardecer no horizonte, perdida em pensamentos como uma princesa à espera do príncipe encantado. Ela não usa mais as roupas velhas e mofadas de antes, voltando ao seu tradicional terninho requintado com calça colada.
Olha, não é que eu esteja com vontade de atacá-la enquanto a mesma se encontra completamente indefesa. Na verdade, odiarei fazer isso do mesmo tanto que odiaria que fizessem comigo.
Só que entenda a lógica. Quando uma compradora compulsiva se apaixona por um lindo vestido no manequim de uma loja, ela passa direto, por acaso? Não! Ela o compra sem pensar nas consequências! Mesmo que corra o risco de estourar o limite do cartão de crédito! Mesmo que já esteja completamente endividada com o nome beirando o SPC!
É a mesma lógica que envolve avistar o seu namorado ou namorada no meio da rua e ir correndo ao encontro dele(a) enquanto abana o rabo. Por mais que não queira conversar com a pessoa, existe um certo senso de obrigação que te faz, ao menos, dar um breve cumprimento.
Caramba, quando abrimos um pacote de biscoitos recheados, nunca estamos realmente interessados nos biscoitos! Então, tenho que atacá-la agora mesmo porque o meu instinto animal simplesmente está me obrigando a comer o recheio dela, consegue entender?!
Suspirei por três longos segundos. Cocei minha nuca, explicitando todo o meu descontentamento e insatisfação.
Ah, cara, isso vai ser um saco. Já estou cansada apenas de imaginar o trabalhão que terei. Gostaria de poder fugir para as colinas. Se tivesse uma pá comigo, cavaria um buraco com sete palmos de profundidade e me enterraria viva só para não passar por isso.
Só que, infelizmente, não tenho o direito de escolher nenhuma dessas opções. As consequências de “não fazer” serão piores que um fodendo paradoxo temporal.
Encaro a bandagem na minha mão direita. A única coisa que tem mantido o meu sangue dentro do corpo. É fato absoluto que qualquer mínimo esforço vai espalhar meleca para todo canto, mas fazer o quê? Vamos deixar a preguiça de lado por alguns segundos e terminar logo com isso para que eu possa, finalmente, descansar.
Estalei os dedos das minhas duas mãos, enchi os pulmões, peguei impulso e, por fim, corri em disparada como se estivesse numa prova de cem metros rasos, levantando poeira e fazendo todos os móveis voarem.
— Diiiiiiiireeeeeeetooooooooooraaaaaaaa!!
Cruzei todo o espaço entre nós num piscar de olhos e a agarrei pelas costas com toda a minha força.
— Hyaaaaa!!
Apavorada, a loira começou a rodopiar pelo quarto, derrubando tudo o que encontra pela frente, a cômoda, a velha televisão, o guarda-roupas, enquanto tenta me mandar voando pelos ares. No entanto, estou grudada nos air bags dela feito um carrapato.
— Finalmente, estamos sozinhas! É gol do Brasil!
— Largue-me, largue-me, largue-me!
— Qual é?! Permita-me recarregar um pouco da minha energia sugando a sua! Se eu não fizer isso, provavelmente, vou morrer!
— Por favor, morra! Só morra de uma vez por todas!
— Não se preocupe! Irei apalpá-la por apenas dez minutos! Mas posso reduzir o tempo para cinco se me deixar dar uma boa lambida dentro do seu ouvido! E para três se me permitir abrir a sua cabeça pra ver se tem peito de frango desfiado dentro!
Dei uma apertada aqui e outra ali.
— Gunyaaaa!
— Quanto recheio será que tem dentro destes dois melões?! Quero mordê-los agora mesmo só pra saber! Pelo menos, deixe-me dar uma boa garfada em um deles!
— Naaaum!
— Chegou a hora de nos tornarmos apenas uma, diretora! Irei preenchê-la com todo o meu ketchup de amor!
— Mas que merda você tá falando?!
Giramos e giramos. O quarto já está completamente destruído a essa altura.
— Não se preocupe! Mesmo que os nossos filhotes sejam metade coxinha, metade humanos, prometo amá-los sem nenhum preconceito!
— Nem que fosse geneticamente possível! Agora, saia de cima de mim, sua bactéria!
Estava quase alcançando o objetivo de ver a verdadeira forma dela quando, após um golpe complexo que até mesmo um lutador profissional encontraria dificuldade de executar, fui jogada no chão e tomei uma “chave de coxa”.
Sabe, por mais que eu esteja sendo estrangulada, vendo estrelinhas, não consigo parar de rir feito uma maníaca masoquista.
— Não pense que já me derrotou!
Aproveitei a nossa proximidade para dar uma boa lambida na perna torneada dela por cima da calça mesmo. Golpe que a deixou ainda mais furiosa. Sério, tem labaredas de chamas saindo das suas narinas!
Droga, estou odiando tanto isso! É o pior momento da minha vida!
— Diretora, a minha cara está perigosamente próxima do seu traseiro! É uma tentativa desesperada de sedução, por acaso?!
— Ora, sua…
Sem piedade alguma, ela me levantou do chão, colocou-me de ponta-cabeça e aplicou um suplex alemão. Nem preciso dizer o quanto isso doeu. Acho que a minha cabeça deve ter trincado a cerâmica toda.
— Espera, espera, espera! Foi apenas uma brincadeira inocente, Dona Coxinha! Poderia me perdoar?
Mas já é tarde demais para conseguir salvação.
— Chegou a sua hora. — Ela sorriu. — Só morra!
Segurou os meus dois pés e me arremessou. Um piscar de olhos depois, bati contra a parede do quarto, abrindo um buraco na alvenaria. Em seguida, caí feito uma fruta podre em cima da cama.
Isso doeu demais! Entretanto, não consigo deixar de me sentir realizada, zerando a vida. Agora, já posso ir pro castelinho feliz.
— Ugh… Não tem como relaxar sentindo o cheiro de cigarro destes cobertores. — A diretora continua me fuzilando com um olhar furioso, respirando feito uma máquina em processo de resfriamento. — O que foi? Quer deitar de conchinha comigo? Nada contra, pode vir.
Surpreendentemente, Melissa veio até mim e sentou ao meu lado. Uma expressão angustiada apareceu em seu rosto, algo que eu ainda não tinha visto desde que nos conhecemos.
— Mais cedo, quando disse todas aquelas coisas para Juliana… Por um momento, cheguei a pensar que estava falando sério.
— Por que acha que não falei? Não lembro de ter desmentido as minhas palavras. — Dei um sorriso irônico. — Você leu a minha ficha, lembra? Não sou uma pessoa decente.
— Errada. Você é sim. — Tal afirmação, sem um pingo de hesitação sequer, me fez estremecer e perder a compostura. — Por mais que tenha tentado assumir o papel de vilã naquele momento, o fez por se importar verdadeiramente com aquela menina. Se realmente não ligasse para a história dela, não teria corrido tão desesperadamente em busca de respostas e feito todo aquele escândalo para escutar um desabafo.
— Ugh.
Não consegui encontrar palavras para refutá-la.
— Você afirmou que não suporta falsidade, mas continua contando uma mentira atrás da outra só para satisfazer a si mesma. Por que se acha no direito de ser a única que pode esconder os verdadeiros sentimentos? Saiba que você não é tão especial quanto pensa que é. — Respirou fundo e deixou toda a angústia em seu rosto derreter. — Não estou dizendo que aprovei as suas ações, muito pelo contrário. Estou furiosa com você por ter reaberto as feridas de Juliana. No entanto, compreendo que o fez porque desejava ser odiada. Afinal de contas, com ela sentindo medo de você, poderia usar esse fato como desculpa para continuar seguindo em frente sem ter que olhar para trás. Mas, pelo jeito, não deu muito certo, não é? Tenho certeza de que ela não vai mais largar o seu pé. E agora, terá que ficar e ajudar sempre que for necessário, pois fez uma promessa.
— Você está muito errada, diretora. Eu não sou assim. Nunca serei. Não espere coisas boas de mim ou pode acabar se arrependendo amargamente no futuro.
— Não. — Por fim, sorriu calorosamente. — Não vou me arrepender. Depois de hoje, sinto que posso confiar aquelas crianças a você com a certeza de que não serei decepcionada.
— Espero não ouvir reclamações depois.
Ninguém merece. Sinceramente, toda essa ladainha já está me dando nos nervos! Acho melhor arrumar alguma coisa para ela fazer.
— Vamos. — Levantei em um pulo, sentindo a extrema necessidade de descontar toda essa raiva em alguma coisa. — Acorde lá a sua tatatalgumacoisa para nos dar uma mãozinha. Temos muito trabalho a fazer antes daquela criança levantar.
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Juliana levantou da cama e esfregou os olhos. Ainda estavam ardendo por causa da quantidade de lágrimas que derramou mais cedo. Sua mão inchada doía bastante devido ao soco que deu na parede.
— Que merda. — Se encolheu e escondeu o rosto atrás do cobertor ao lembrar da cena vergonhosa que proporcionou àquelas pessoas. — Ugh…
Respirou fundo e imediatamente notou algo diferente no ar. O cheiro refrescante de eucalipto. A rinite que sempre a incomodava quando acordava não estava presente.
Tomou coragem, sentou-se e olhou ao seu redor. Apesar da noite já ter chegado, era possível enxergar claramente, graças à luz da Lua que invadia o lugar pela janela aberta.
— Por quê…? Como…?
O quarto estava impecável. Todas as roupas, antes espalhadas pelo chão, tinham desaparecido de vista. Os seus ursos de pelúcia e livros foram limpos e organizados nas prateleiras. Os móveis, polidos e livres de qualquer traço de sujeira. Pelo jeito, tanto tempo sem dormir direito a fez entrar em uma espécie de coma. Por isso, não acordou mesmo quando arrumavam tudo.
Vagarosamente, ela levantou e caminhou sorrateiramente até a porta fechada. Encostou seu ouvido na madeira e pôde ouvir cochichos já conhecidos vindos do outro lado. Lembrou-se do quanto ficou irritada, brava e furiosa com a sua professora, mas agora todos esses sentimentos negativos tinham sido anestesiados por uma boa dose de vergonha.
Respirou fundo mais três vezes antes de deixar o quarto.
— Boa noite, July. Dormiu bem?
Lorena foi a primeira a cumprimentá-la com um sorriso brilhante. Parecia estar se divertindo enquanto limpava a mesa com um pano úmido.
— July…?
Um apelido. Ninguém nunca tinha dado um apelido para ela antes. Gostou bastante disso.
— Está se sentindo melhor?
Dessa vez, foi Melissa que a cumprimentou. Encostou o rodo na parede, aproximou-se e acariciou a cabeça dela gentilmente. Queria mostrar que estaria sempre com ela a partir de agora. Sentimento generoso que foi transmitido com sucesso.
— Sim, obrigada.
Então, encontrou aquela que mais temia encarar. Amanda estava sentada no sofá com as pernas cruzadas bebendo suco direto da caixa. Era mais do que óbvio que inventou alguma desculpa idiota para fazer as outras duas trabalharem sozinhas na limpeza.
Os olhos delas se encontraram, mas a professora não era do tipo que cumprimentava.
— Ehehe… — Antigamente, Juliana não se permitiria rir em uma situação como essa, só que nesse momento, sentia que seria desrespeitoso caso não risse. — Não tem vergonha de ficar se escorando nos outros desse jeito, mulher inútil? — Falou debochadamente.
— Uaa… — Amanda fez uma careta. — Parece que libertei um monstro. De “senhora” para “mulher inútil”. Grande evolução. — Respondeu casualmente. — Criança, espero que esteja no colégio amanhã cedinho. Se chegar um minuto atrasada, cairá na palmatória.
A morena, finalmente livre de todo aquele medo que a prendia em casa, deu um suspiro para a mulher que, agora, tinha uma linda aura azul-claro a cercando. Em seguida, mostrou um sorriso inegavelmente verdadeiro. O primeiro em muito tempo.
— Sim! Pode deixar, papai!