Carnaval no Abismo - Capítulo 6
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- Capítulo 6 - A Complexidade do Gato Envenenado na Caixa (1)
Não são nem nove horas da manhã, mas estou exausta como se tivesse subido e descido escadas o dia inteiro. Já não bastava ter sido raptada e escravizada, agora fui obrigada a atuar em uma peça de teatro sem sequer ter vocação para ser atriz.
Todos ao meu redor devem pensar que sou uma lata de lixo, pois bastam me ver para enfiarem todas as suas nojeiras em mim!
Mas deixando de lado as coisas ruins, até que este momento está tendo alguns trechos interessantes.
Na pequena e humilde casa bagunçada em que estou, uma ceia repleta de comidas requintadas foi posta na mesa diante de mim. Sequer tenho o direito de chamar tudo isto de “café da manhã”, pois sentiria que estaria insultando a cozinheira.
— Diretora, pare de fugir do seu personagem! Você deveria ser do tipo que não consegue nem fritar um ovo! — Dou um grito que beira o desespero.
— O que você está insinuando? — Ela questiona rapidamente.
— Nada, nada. Eu só estava tentando te elogiar, é sério.
Bastou apenas uma mordida em um simples croissant para eu ser transportada aos Campos Elísios. O aroma, sabor e textura não perdem em nada para a criação de um padeiro profissional. Não, talvez o da Melissa seja ainda melhor! Pelo menos, o suficiente para me fazer aceitar a situação estranha em que estou agora.
E que situação estranha é essa? Por onde devo começar?
Estamos tentando replicar a antiga família de Juliana Aguilar. Eu sou o pai, sentado na cabeceira da mesa, vestindo uma camisa polo manchada de molho de tomate e calça social caqui tamanho extragrande.
À minha esquerda está a representante de classe, atuando no papel de irmão mais velho que se encontra no ápice da fase rebelde. Ela ou ele, sei lá, usa uma maquiagem branca pesada no rosto, camiseta preta com a logo de alguma banda satanista e uma calça jeans azul rasgada nos joelhos.
Sério, Lorena merece um troféu pelo esforço. Olha só a cara de nojo enquanto mastiga um chiclete como se fosse feito de ferro! E todo esse equilíbrio para se manter apoiada apenas nos dois pés traseiros da cadeira! Simplesmente fantástico.
— Filho, poderia tirar os pés de cima da mesa enquanto comemos…? — Melissa perguntou.
— Cala a boca, coroa. Você não manda em mim.
Diante de tamanha grosseria, a diretora apenas mordeu o lábio inferior para continuar mantendo a compostura. Provavelmente, tentando fazer o papel de mãe frágil que é manipulada pelos filhos constantemente. Ou, quem sabe, apenas esteja sendo ela mesma. Não consigo mais diferenciar a realidade da ficção.
E por falar nela, suas roupas são um longo vestido marrom desbotado e avental rosa florido. O problema é que todo esse rebolado involuntário não combina nem um pouco com o estereótipo de mulher casada. Parece mais uma cosplayer que faz sex tapes para fãs de animação japonesa.
— Quem quer café fresquinho?
Sem sequer tentar disfarçar o fato de que está puxando o saco da “filha mais nova”, serviu Juliana primeiro.
— Espero que esteja do seu agrado.
— Muito obrigada, mãe.
Esperei ansiosamente a minha vez de ser servida, mas em vez disso, recebi um olhar gelado e a garrafa posta na outra extremidade da mesa, obrigando-me a levantar para poder alcançá-la.
Que estranho… Acho que a diretora está de marcação comigo por algum motivo. Só que não lembro de ter feito nada de errado para ser tratada tão amargamente.
— Ei, amor, venha até aqui um tiquinho. — Falei e acenei com a mão.
— O que você quer?
— Gostaria que me desse comida na boquinha.
— Ahn?! Você não é mais uma criança! Coma sozinha!
— Por favorzinho, faz aviãozinho pra mim? — Dei o famoso olhar de gatinho pidão. — Apenas uma colherada?
Em qualquer outra situação, Melissa jamais acataria um pedido desses. Porém, agora, é diferente. Ela não tem outra alternativa além de entrar nos meus joguinhos. Afinal de contas, Juliana está bem ali, atenta, fitando-a intensamente. Qualquer deslize pode levá-la a ter o seu corpo verdadeiro vazado para toda a sociedade, e, consequentemente, sua carreira de sucesso será arruinada. Não importa o que aconteça, precisa continuar atuando.
— Tudo bem, se for apenas uma vez…
Se aproximou, cutucou um pedaço de omelete com um palito e o direcionou até a minha boca. Neste momento, desviei e mordisquei a ponta do dedo mindinho dela, fazendo-a corar e estremecer. Só depois de cinco segundos, foi que a libertei e ataquei o alimento.
— A omelete está ótima, mas o seu sabor é infinitamente melhor, meu amor. — Dei um sorriso recheado de segundas, terceiras e quartas intenções. — Estou ansiosa para a noite de hoje, sabe? Se não estou enganada, é comum um casal dividir a mesma cama.
Nem tive tempo de reagir antes de ser acertada por um tapa na bochecha. Por um instante, pensei que a minha cabeça iria girar igual aquelas cenas de desenho animado.
— Okay… Talvez, eu tenha merecido, mas não precisava usar toda essa força!
— Que nada. Fiz apenas um carinho em você, querido. — Aproximou o seu rosto do meu ouvido. — Não repita aquilo novamente ou me tornarei uma pobre e solitária viúva.
— Ugh… Acabei de notar o quanto a vida de casado pode ser dolorosa…
Carregando um sorrisinho maléfico, Melissa foi para a cozinha.
— Vocês duas se dão muito bem. Acho que acertei na minha escolha. — Juliana comentou enquanto aprecia o seu café com uma expressão doce no rosto.
Não faço ideia da última vez que ela teve uma refeição decente, mas com certeza não foi recentemente.
Bem, fora isso, vários outros fatos têm atiçado a minha curiosidade. Por que será que ela está tão desesperada para reaver os seus pais e irmãos? Isso não é estranho? Juliana está naquela época da vida onde, naturalmente, desejamos nos distanciar dos nossos familiares. E, por mais que o baque do desaparecimento deles tenha sido grande, não justifica a ideia de buscar uma família substituta para amenizar a sua solidão.
Preciso investigar essa história mais à fundo ou todas essas perguntas sem respostas não permitirão que eu durma direito.
— Ei, guria. Notei que você ainda não fez nenhum esforço para se arrumar. Por acaso, pretende continuar faltando às aulas? — A garota de cabelos pretos se assustou e engasgou com a comida. — Percebi também que está bem sujinha. Quando foi o seu último banho?
Imediatamente, Juliana se afastou da mesa e fez o som de uma gatinha cuja vida estava em perigo. Aí está uma reclusa com a famosa Síndrome de Cascão.
— É que, sabe?! Não preciso de escola porque sou muito, muito inteligente! Consigo absorver todo o conteúdo apenas lendo os livros! Por isso, não necessito de professores me ensinando! — Parou de falar por um instante para recuperar o fôlego e pensar em mais algumas lorotas. — Ah! Também tenho uma doença crônica na lombar que se manifesta toda vez que eu sento naquelas cadeiras desconfortáveis! O médico disse que posso acabar ficando paraplégica se passar mais de dez minutos sentada lá!
— Tá, legal… Mas e quanto ao banho?
— Eh, então… Alergia! Isso! Eu tenho alergia! Minha pele fica toda empolada quando entra em contato com qualquer espécie de líquido!
Fala sério, esta garota precisa urgentemente de terapia! Se bem que tem uma brecha aí que posso utilizar para judiar um pouco dela, he, he.
— Tá, comida e sujeira não combinam! É hora do episódio especial de banho!
Minha filha mais nova até tentou fugir, mas com um movimento ágil, agarrei o braço esquerdo dela e comecei a puxá-la na direção do banheiro.
— Nãããão, papai!! Solte-me!! Estou falando sério quando digo que não posso me molhar!! Minha carne começa a apodrecer e derreter!! É realmente nojento!! Você não vai querer ver isso!!
— Um pouco de água não vai te matar, pode ter certeza.
Eis então que a representante de classe, abandonando completamente o seu papel de delinquente juvenil, entrou na minha frente, bloqueando a passagem. O rosto dela está vermelho feito um tomate maduro. Só não sei dizer se é devido ao desespero ou apenas vergonha alheia.
— Ei, s-senhora! O que p-pensa que vai fazer?!
Ergui uma sobrancelha, confusa.
— Ora, não é óbvio? Vamos estreitar os nossos laços familiares utilizando o modo mais eficiente que conheço. Peladinhas e esfregando os corpos nus uma da outra.
— M-ma-mas isso é muito in-indecente! Onde já se viu o pai banhar junto com a filha! É ab-abuso sexual! Largue-a imediatamente ou vou ligar para a polícia!
— Então, sabe? Apesar de eu estar vestida assim, ainda sou uma mulher. Não tem nada de errado em dividirmos o banho.
— Se tratando de você, é sim muito errado! A senhora não passa de um lobo em pele de cordeiro!
— Para de exagerar. O que diabos está pensando que vou fazer com ela?
— É… Bem… Aquilo… Sabe…?
Lorena uniu seus dois dedos indicadores e estremeceu. Com certeza, está passando alguma besteira muito controversa pela mente dela.
— Tá, beleza. — Com outro movimento ágil, também a catei pelo braço. — Pois venha conosco! Quanto mais pessoas, melhor será o esquema!
As duas espernearam e chiaram como se estivessem sendo levadas à cadeira elétrica, mas só as libertei quando entramos no banheiro.
— Por favor, não chegue mais perto, senhora…
— Eu não quero tomar banho, hih…
Mostrando o sorriso de uma hiena, começo a me aproximar com minhas duas mãos se movendo em formato de pinça.
— Hora do fanservice!
As duas gritaram em completa sincronia quando suas peças de roupas começaram a voar.
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Antes de mais nada, imagine a cena de três garotas ensaboadas num cômodo que mal comporta duas. Pois bem, Juliana está sentada em cima das próprias pernas na minha frente, possibilitando que eu possa esfregar os seus cabelos com shampoo. Parece até uma cachorrinha dentro de uma bacia de água morna, mantendo os olhinhos fechados enquanto aprecia a ótima sensação de ter a cabeça acariciada suavemente por outra pessoa. Já Lorena permanece encolhida no canto da parede oposta com o corpo propositalmente coberto por uma densa camada de espuma, fazendo-me pensar que a extrema vergonha dela também precisa de tratamento psiquiátrico.
— Estão vendo? Momentos assim são ótimos pra relaxar. — Falei.
— Huh, realmente… Acho que posso me acostumar com isso. — Juliana respondeu em meio a um suspiro, parecendo estar prestes a adormecer por conta do carinho recebido.
— Ei, é verdade essa história de que você consegue enxergar as auras das pessoas? — Lorena perguntou.
— Bem, acho que sim…
— Mesmo?! Desde quando consegue fazer isso?! Como funciona?! Precisa de alguma palavra mágica?!
A vergonha da representante caiu perante sua enorme curiosidade. Por um instante, pensei que ela atacaria a morena para obter respostas.
— Hum? Desde que me lembro, eu acho. — Balançou a cabeça em negativa. — Não… Receio que tenha começado após ter encontrado « aquilo » em um sonho.
— « Aquilo »…? — Perguntei.
— Não sei explicar o que era, quem era, ou se sequer era alguma coisa. Um homem? Talvez, fosse uma mulher? — Coçou a nuca, frustrada pela falta de certeza. — Enfim, desde então, consigo ver névoas coloridas cercando os corpos das pessoas. Dependendo da cor, posso distinguir o que elas estão sentindo. Por exemplo, vermelho significa raiva, enquanto os tons de azul demonstram diferentes tipos de calma.
— Oh! Isso é tão incrível! — Os olhos fascinados da representante brilham intensamente. — Ei, qual é a cor da minha aura neste momento?! Diz! Diz!
Procurando se proteger da investida, Juliana levantou em um pulo e correu para se esconder atrás de mim.
— Amarelo. Um amarelo realmente gritante.
— E o que isso significa?! Que estou alegre?! Entusiasmada?!
— Que devo manter distância de você… Muita mesmo…
Instantaneamente, a expressão de Lorena desmoronou. A confusão provocada por essa resposta a fez recuar e tornar a se encolher no seu cantinho inicial.
Ugh… Em vez de perguntar qual é a minha cor e acabar depressiva também, acho mais seguro puxar outro assunto.
— Então, por que nós?
Mesmo que estejamos desfrutando de um momento agradável, não tenho a menor intenção de continuar cedendo aos caprichos egoístas de Juliana. Deve existir um motivo lógico para que ela tenha escolhido completos estranhos para assumir um papel tão importante.
Não dá mais para ficar contornando o ponto crucial desta reunião.
— Você está ciente de que nunca conseguiremos substituir os seus parentes verdadeiros, né? Não faço a mínima ideia de como eles eram, mas tenho certeza absoluta que a nossa brincadeira de casinha em nada se assemelha a sua antiga vida.
Juliana abaixou o rosto e encarou o chão.
— Não ligo se não for exatamente igual. Por enquanto, o simples gesto de vocês três é suficiente para me satisfazer.
Que resposta mais… seca.
— Estou gostando bastante de como as coisas estão agora. — A sempre sincera Lorena se pronunciou. — O fato de nós nunca termos nos aproximado durante o nosso tempo juntas na sala de aula sempre me deixou… angustiada. Parecia existir um muro gigantesco entre nós. Por isso, fico contente de podermos conversar e interagir desta maneira.
— Eu também. — Juliana se perdeu em pensamentos. Provavelmente, decidindo se deve ou não abrir o jogo para nós. — Quando todos desapareceram, senti um vazio por dentro. Não tinha mais vontade de sair e fazer qualquer coisa. Meu único passatempo, foi observar todos que continuavam seguindo com suas vidas neste mundo monótono, preto, branco e enjoativo. Basicamente, nada me motivava a sair do meu quarto.
— Então, o que mudou? O que te fez agir? — Perguntei.
— A sua chegada. Foi quando, por algum motivo que não consigo explicar, o colégio ganhou um novo tom. O seu modo curioso de agir e interagir com os alunos quebrou o clima de luto que poluía aqueles corredores. Hoje, principalmente, quando vi você brincando com a diretora no armazém, um pensamento curioso passou pela minha cabeça: ah, deve ser legal ter essas duas como parte da minha família. Aposto que só de tê-las por perto, eu já me divertiria bastante.
Ah, sim. Agora, tudo faz sentido.
Esta criança não está procurando uma família reserva, e sim substituir a antiga.
— Eu estava errada? — Sussurrei para mim mesma.
Até agora, pensava que Juliana sofria com a perda, mas, na verdade, estamos sendo usadas para fazê-la se esquecer do verdadeiro pai, mãe e irmão mais velho.
Se brincar, não precisava nem ser a gente. Contanto que a “nova família” fosse melhor que a anterior, a morena já se daria por satisfeita.
Ao mover os longos cabelos dela para o lado com a intenção de esfregar suas costas, liguei algumas pontas soltas. A pista foi uma marca peculiar na sua pele, mais precisamente atrás do ombro direito.
Um pecado bem peculiar, desagradável, podre, nefasto e nojento.
— Sei que estou sendo egoísta e, sinceramente, nunca tive a real intenção de espalhar as fotos. Foi tudo uma desculpa para podermos nos reunir e conversar. Então, nem que seja apenas por hoje, conto com a companhia de vocês.
Ah, droga…
Nem ouse, garota…
Por favor, não faça isso consigo mesma…
Não faça isso comigo…
Ah, ela vai fazer…
A expressão que Juliana usou para me encarar foi encantadoramente bela, o olhar que apenas uma pessoa com a alma pura de um bebê poderia dar, cortando o meu coração e fazendo o meu estômago revirar com seus pedaços.
— Não apenas hoje! A partir de agora, quero te fazer companhia pra todo o sempre! — Lorena saltou na direção da morena e a abraçou com força. — Eu quero ser a sua amiga! E, se puder, seja a minha amiga também! O seu irmão mais velho estará por perto toda vez que precisar!
Juliana demorou bastante para reagir a essa demonstração de afeto, talvez por não estar acostumada ou por nunca ter sido recompensada com algo parecido.
— Tudo bem, irmão.
A morena deu um grande e brilhante sorriso. Sim, aquele mesmo sorriso mecânico que vem dando desde que nos conhecemos. Um sorriso inocente demais para alguém da idade dela. Um sorriso tão perfeitamente alinhado que me dá vontade de vomitar até os órgãos.
Estou implorando, pare com isso, criança. Pois se você não parar, muito provavelmente, começarei a te odiar…
Afinal de contas, a única coisa que odeio mais do que sorrisos falsos, são especialistas em mentir.
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Vesti minhas roupas rapidamente e sai do banheiro primeiro, deixando as outras duas que secavam seus cabelos para trás. Agora, meu principal objetivo é dar um fim a todas essas dúvidas que dançam no meu âmago.
Fui direto até a cozinha, onde encontrei a diretora que está terminando de lavar as louças do café da manhã.
— O que foi? Não estou no clima para mais palhaçadas. — Ela disse, desconfiada.
— Melissa, quem é Juliana Aguilar?
— Ahn? Como assim? — Instintivamente, recuou um passo. — Hum? É impressão minha ou essa é a primeira vez que você me chama pelo nome?
— Não mude de assunto.
— E qual é o assunto, exatamente?
— Refiro-me a maneira que você tem agido em torno dela. Eu pensava que era por causa do medo de ter a sua verdadeira identidade revelada, mas não é nada disso, certo? Sinto-me uma tonta por ter cogitado essa possibilidade superficial. — Cerrei os punhos, brava comigo mesma por não ter notado antes. — Além da representante, você também conhece os alunos perfeitamente, né? Quem sabe, até os pequenos detalhes das suas vidas pessoais?
Toda aquela cautela maternal de mais cedo não era falso ou forçado, muito pelo contrário. De alguma maneira, a pequena morena é uma pessoa especial para Melissa.
— Juliana é… uma adolescente comum. Apenas alguém que perdeu muita coisa, assim como todos os outros.
— E mais o quê?
— Não há mais nada.
— Conte-me a verdade, sua covarde! Por acaso, tem medo de como reagirei caso descubra?! Que a história de vida dela se tornará um gatilho pra mim?! Prometo que não vou enlouquecer! Então, desembucha de uma vez!
Ah, inferno… Sem querer, acabei deixando escapar uma parcela do meu ódio…
Vamos lá, respire fundo. Lembre-se que você não é mais assim. Mantenha os seus sentimentos sob controle. Permaneça imparcial, lógica, forte. Foi isso que jurou para si mesma.
— Tudo bem. Já que você se nega a contar em qual tipo de merda enfiei o meu pé, descobrirei sozinha. Não me importo de ir pelo caminho mais longo. — Concluí friamente, dei as costas e me afastei da diretora cabisbaixa.
Se é assim que deve ser, será. Por mais que eu desgoste da ideia de me envolver tanto, farei uma exceção para este caso e enfrentarei a verdade de frente. Mas, antes de tudo, preciso analisar os fatos com cautela.
É impossível que aquela marca peculiar nas costas de Juliana tenha sido causada por algum acidente. Afinal, estou falando de uma queimadura com o formato de uma bituca de cigarro. A marcação cruel dada a um gado.
Agora, será que esse ferimento tem a mesma origem dos cortes nas costelas, joelhos e cotovelos dela? São símbolos de automutilação ou apenas barbárie?
Passo pela tumultuada sala de estar. Um cômodo sujo demais para ter ficado em um estado tão detestável em pouco mais de uma semana. Não acredito que dê para causar tanta destruição em tão pouco tempo.
Tudo isso começou bem antes do desaparecimento de todos.
— Ah… Finalmente descobri que sentimento é este que está corroendo o meu interior feito ácido sulfúrico.
Nojo.
Entretanto, não é nojo daquela garota fofa que deu a uma completa estranha o direito de acariciar os seus cabelos. Sinto nojo de mim mesma. Do simples fato que estou sendo abalada por uma tragédia que sequer chega aos pés da minha própria.
— Eu não devia estar sentindo pena dela. Na verdade, é ela que precisa abaixar a cabeça e chorar por mim.
Após entrar no quarto de Juliana, não precisei de muito tempo para encontrar respostas. Mais precisamente, o diário de uma adolescente. Ou, neste caso em especial, o confessionário de alguém que precisa deixar provas visuais do seu passado amargurado. Um conto de horror para grudar na pele daquele que o ler feito uma cicatriz de fogo.
Precisei apenas das cinco primeiras páginas para alcançar uma conclusão.
— Acho que é isso. Aquela criança está quebrada. — Fechei o diário e o devolvi. — Então? Qual será o meu próximo movimento?
Devo fingir que não descobri nada e ignorar? Ou, igual uma adulta de verdade, fazer algo para consertar essa situação de merda?
Fala sério, sequer existe alguma coisa que eu possa fazer?
— Bem, começarei pedindo para a diretora avisar os alunos que não teremos aula hoje. — Deixei escapar um breve sorriso ao tomar minha decisão. — Criança, espero que você consiga me perdoar pelo que estou prestes a fazer. Pois a nossa família de mentira vai se tornar bem real.