Carnaval no Abismo - Capítulo 23
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- Capítulo 23 - A Complexidade de uma Devoção Obsessiva (3)
A verdade é que não guardo na memória muita coisa do tempo que passei com a minha mãe. Restam apenas fragmentos, momentos nebulosos.
Sei que morava em uma casa extremamente pequena nos arredores de alguma periferia cujo nome não me recordo. Lembro das longas noites de silêncio porque não tínhamos uma televisão para assistir, das minhas fugas com Antony para brincar na chuva e da angústia que sentia toda vez que minha mãe levava algum homem malcheiroso para dentro do quarto dela.
Entretanto, no meio de tanta neblina, existe uma certa memória que está gravada à fogo no meu cérebro. Algo que carregarei comigo pelo resto da minha vida. Estou falando da madrugada em que eu e meu irmão fomos abandonados.
Consigo descrever com perfeição cada pequeno detalhe daquele momento. Desde o frio petrificante que fazia o meu nariz escorrer até as exatas palavras que minha mãe falou com um sorriso falso pouco antes de desaparecer para sempre.
“Esperem por mim. Já volto para pegar vocês.”
E, inocentes, nós esperamos. Só Deus sabe o quanto fomos boas crianças naquela noite. Merecíamos ao menos uma linda recompensa, mas tudo que ganhamos foi dor.
Lembro que em determinado momento, o sono, ou, quem sabe, a própria morte, aproximou-se de mim. Por sorte, Antony notou isso e me abraçou com toda a sua força. Manteve-me aquecida até o nascer do Sol.
Ah… Experimentei pela primeira vez um pouco do amor surreal que ele sente por mim. Por mais que fosse sempre o mais chorão de nós, ele agiu como um verdadeiro herói de conto de fadas. Não derramou uma lágrima sequer durante toda aquela madrugada, mostrando à sua maneira que tudo terminaria bem.
Porém, mesmo sendo abençoada por tanto carinho, um sentimento completamente oposto brotou dentro de mim
Notei imediatamente que era ódio.
Logo nos meus primeiros dias de orfanato, ficou claro que mudei. Estava sempre estressada, desobedecendo ordens dos adultos, começando brigas com os meus amigos por qualquer besteira.
Se eu for descrever o meu interior pós-abandono, diria que era como se eu estivesse acorrentada no fundo de um poço cercada por ratos famintos. Cada um desses seres repletos de doenças seria um sentimento corrompido, e o meu corpo a “inocência”. Toda vez que algo desesperador acontecia na minha vida, mais a quantidade de ratos aumentava.
Eles arrancaram os meus dedos quando a senhora gentil que cuidava de mim faleceu, rasgavam uma parte da minha pele toda vez que o meu irmão era brutalmente espancado, mastigaram a minha carne durante todo o tempo que passei trancafiada naquele quarto gelado. Escavaram e escavaram, engoliram meus olhos, devoraram todos os meus órgãos.
E, quando finalmente consegui a minha liberdade, já não restava mais nada de bom em mim, apenas incontáveis doenças.
Tinha me transformado em uma grande ratazana nojenta.
— Você já tem alguma ideia do que vai fazer a partir de agora? — Repentinamente, a voz monótona de Keyla quebrou o silêncio.
Espere um pouco, não me lembro de ter dado permissão para ela fazer perguntas.
— Quando você voltou?
— Nunca estive sendo controlada. O seu poder não funcionou em mim.
— Ah, claro que não funcionou. — Naquele momento, eu já estava fraca demais para conquistar qualquer coisa. — Como você não era a minha refém, poderia ter permitido que me capturassem, certo? Por que não o fez?
A ruiva pensou com cuidado nas suas próximas palavras.
— Porque precisava conversar com você, entender as suas motivações, analisar os seus sentimentos e maneira de pensar. Somente depois disso, conseguirei decidir se devo ou não te perdoar por tudo o que fez.
Isso significa que, se as minhas palavras a satisfazer, existe a possibilidade dela me deixar escapar? Ou, quem sabe, a sua verdadeira intenção seja mexer com a minha cabeça? Convencer-me a dar um passo para trás?
Focada na estrada diante de si, a expressão gélida e indiferente da garota ruiva nunca muda. E isso me enoja, deixa-me com vontade de devolver o soco que ela me deu mais cedo.
— Saiba que também sinto a mesma coisa em relação a você. Não consigo ler as suas expressões, muito menos entender o que se passa dentro da sua cabeça.
O curioso é que, mesmo ciente do tamanho da distância entre nós duas, ela ainda se esforça para chegar mais perto. Por que será?
— Pedi para me levar até o orfanato onde morei durante a minha infância, mas nunca disse onde ele ficava.
Ainda assim, Keyla está dirigindo na direção certa.
— Acontece que fui lá com Amanda e Leógenes algumas noites atrás, pouco antes de bolarmos o plano para deter você e o seu irmão. A professora disse algo sobre “conhecermos melhor os nossos inimigos”.
— Presumo que tenha aprendido bastante coisa.
Pela primeira vez desde o início da nossa viagem, minha colega de classe se voltou na minha direção. Não encontrei rastros de pena em seu olhar, muito menos tons de raiva ou superioridade. Apenas um vazio angustiante.
— O suficiente.
Não consegui deixar de dar risada. Sinceramente, preferiria mil vezes que ela sentisse dó ou esfregasse na minha cara a sua vitória. Pois, ao falar desse jeito, faz parecer que ela teve uma vida igual ou até pior que a minha. E, se esse for realmente o caso, continuar defendendo os meus ideais fará de mim uma completa idiota.
— Quais são os seus planos para amanhã?
— Eu ainda não sei.
— Nunca mais retornará para a escola?
— Não sei.
— Perdoará o seu irmão? Ficará sozinha por um tempo?
— Por favor, cala a merda da boca.
Estou cansada, incapaz de pensar no que farei na próxima hora, imagine nos próximos dias. Minha mente nunca esteve tão branca.
— O que planejava alcançar quando começou tudo isso?
— Ei, você não é do tipo conversadeira. Então, por que está se forçando tanto?!
— Bem, a professora pediu para que eu fizesse isso assim que ficássemos a sós. Falou alguma besteira sobre nos tornarmos amigas.
É sério que aquela mulher previu até este momento?
— Quantos passos Amanda estava na minha frente?
— Bem mais do que você imagina.
— Isso faz dela um monstro, não acha?
— Finalmente, concordamos em alguma coisa.
Além disso, “nos tornarmos amigas”, eh? Um pedido bem cruel por parte dela.
— Que seja. — Suspirei, desistindo. — Eu desejava um mundo onde todos pudessem viver igualmente, em harmonia, livres de qualquer influência da ganância. Aliando o meu poder a essa situação anormal que estávamos vivendo, facilmente poderia zerar qualquer tipo de preconceito que existisse entre nós. Seja ele racial, sexual ou econômico. Pela primeira vez em toda a história da humanidade, ninguém seria melhor que ninguém. Consequentemente, todos poderíamos ser felizes juntos.
Falando em voz alta, meu sonho parece ser tão puro. Então, onde exatamente errei para gerar tamanha oposição? Em que canto está o pecado que forçam Amanda, Keyla, Leógenes e todos os outros a brigarem para destruir o meu desejo? Por que estão lutando tanto para continuarem vivendo em um planeta tão sujo e sombrio?
— Se fosse qualquer outra pessoa no comando, talvez tivesse dado certo. — A garota ao meu lado sussurrou.
— Como assim?
— Estou afirmando que você não era capacitada para elevar toda a humanidade a esse patamar. Mesmo que possua um lindo desejo, a sua podridão é a pior de todos nós. Diferente do belo sonho de unir as pessoas, suas ações para torná-lo realidade são cheias de motivações impuras. Os fez movida apenas por mágoas e cicatrizes do passado. — Olhou pela janela, perdida em pensamentos. — Em vez de criar um lugar onde ninguém se machucasse, você queria um mundo que não te machucasse. Consegue entender a diferença?
Não tenho argumentos para confrontá-la. Se fosse algumas horas atrás, tenho certeza de que conseguiria encontrar diversas brechas no meio das suas palavras para explorar. Mas agora, perdida em toda essa neblina, enxergo apenas os meus erros, meus pecados asquerosos.
— Se não sou adequada, então quem é?! Não existe ninguém perfeito no mundo, livre de pecados, soberba e ganância! — Soquei a porta ao meu lado. — Por acaso, está insinuando que você, alguém que parece ter abandonado qualquer esperança de que algum dia o mundo se torne um lugar melhor, seria melhor do que eu?! Pelo menos, consegue provar que se não tivessem interferido, eu não teria tido sucesso?!
— Quanto a isso, só me resta pedir desculpas. Infelizmente, não tenho a habilidade de ver o futuro, apenas fazer suposições. Seu desejo é, de fato, genial. Te admiro bastante por ter se esforçando tanto em nome dele. Porém, como uma ditadura desmorona, Hillary? De que maneira evitaria retirar os sentimentos de Antony assim que ele se rebelasse contra você no futuro?
— Mesmo sem nenhum de vocês mexendo com a cabeça do meu irmão, ainda acha que ele se voltaria contra mim?
— É claro que sim. Por mais que vocês dois sejam gêmeos, não compartilham da mesma alma. Ambos enxergam o mundo de maneiras distintas e, obviamente, possuem opiniões contrárias sobre o paraíso ideal.
— Chega. Não fale mais daquele mentiroso…
— Ele não é mentiroso, você sabe muito bem disso. Antony é apenas um adolescente qualquer, muito mais humano que nós duas juntas. E, cai entre nós, deveria começar a respeitá-lo como tal a partir de agora.
Imediatamente, tapei os meus dois ouvidos. Não posso ouvir a próxima frase dessa aranha, pois sei que se o fizer, cairei no centro da sua teia de manipulações. E quando eu for aprisionada e devorada por ela, me arrependerei de tudo o que fiz. Chorarei por todos que magoei e machuquei até hoje.
Perderei para sempre a minha essência.
— Perdoe Antony. Ele é o último tesouro que te resta. Literalmente, a única pessoa em todo o planeta que não odeia você. Se descartá-lo, quem te apoiará nos momentos de raiva? Quem aquecerá o seu coração quando sentir frio?
— Não fode! Como ousa falar de valorização se você mesma é incapaz de valorizar qualquer coisa?!
— O meu caso é… diferente.
— De que maneira?! Tudo que já fez para Augusto foi ignorá-lo, machucá-lo e magoá-lo! Para a sua sorte, ele é idiota demais para não te abandonar e procurar alguém que realmente tenha a capacidade de retribuir todo o seu amor. — De repente, Keyla se virou na minha direção e me mostrou algo bem curioso. — Olha só. E não é que dá para arrancar sentimentos de um bloco de gelo?
Para a minha infelicidade, a expressão de fúria dela durou apenas um momento. Logo, a ruiva tratou de respirar fundo e se acalmar.
— Não deveria me julgar apenas por aquilo que os seus olhos podem ver. Obviamente, também peço para que não se espelhe em mim. Faça o certo pela pessoa que sempre foi gentil com você independentemente dos seus defeitos.
Ugh… Meu coração dói Por mais que eu não goste de admitir, ela está certa.
Pela primeira vez, meu ódio não está sendo direcionado a outra pessoa, e sim a mim mesma. Droga, sou uma mulher tão… nojenta.
— Aaa…
Estou me xingando por nunca ter notado a verdadeira intenção por detrás do apoio de Antony. Triste por ter forçado tantas vezes os meus desejos egoístas sem nunca ter pedido a opinião dele.
Ugh… Nunca fiz nada pelo meu irmão. Apenas o machuquei, afogando-o nas trevas lentamente junto comigo. Marquei não apenas o meu, mas também o lugar dele no Inferno.
Isso é nojento. Sou realmente nojenta.
Fui rapidamente preenchida pela necessidade de pedir perdão. Se for necessário, ficarei de joelhos e implorarei para tê-lo ao meu lado novamente.
— Agora, entendo o motivo para eu não conseguir enxergar um futuro para mim…
É porque não terei um se Antony não estiver comigo. Toda a compaixão, misericórdia, felicidade, esperança e amor que não existem mais dentro de mim, a minha outra metade é a única que pode me proporcionar.
Se cortar um único coração na metade, ele para de bater, não é?
— Leve-me de volta… Eu imploro…
— Sim, o seu desejo é uma ordem.
Keyla permitiu que um sorriso tranquilo repousasse em seu rosto. Diferente de todas as outras vezes, não parece que essa expressão desaparecerá tão cedo.
— He, he… Por algum motivo, comecei a enxergar com clareza todas as nossas semelhanças. Talvez, quem sabe um dia, realmente possamos ser amigas.
Só que o meu arrependimento egoísta veio acompanhado do pior carma.
Tenho certeza absoluta de que não havia nenhum objeto estranho no meio da pista, mas bastou eu avistar aquela existência asquerosa sem olhos parada no acostamento que um dos pneus estourou misteriosamente, fazendo Keyla perder o controle da direção.
O carro girou incontrolavelmente várias vezes antes de sair do asfalto e capotar. Como nenhuma de nós duas usava o cinto de segurança, ficamos completamente à deriva feito bonecas de pano, batendo contra o para-brisa, teto e painel.
Em determinado momento, a porta do lado do motorista despregou como se um ser invisível a tivesse puxado, armando uma armadilha mortal para a garota ruiva. Agindo por impulso, agarrei sua mão e a puxei para perto de mim, abraçando-a com toda a força, cobrindo-a com a minha asa.
Por que fiz isso?!
Eu não entendo!
Simplesmente estou pouco me fodendo para a minha própria segurança. Tudo o que revira a minha cabeça é a mais pura vontade de protegê-la do inferno de destroços.
Só que isso está errado, não? Um sentimento tão nobre não deveria existir dentro de mim. Afinal de contas, eu tinha certeza absoluta que os ratos no fundo do poço já haviam devorado qualquer migalha de bondade.
Fomos arremessadas para fora. Voamos, rodamos, rodamos e rodamos até encontrarmos o cascalho traiçoeiro.
Colisão, destroços, vultos, barulho, dor, dor, preto, branco, preto, dor, preto…
Nos machucamos de novo e de novo até o mundo voltar a ficar parado. Quando o silêncio retornou, senti um calor estranho nas minhas costas. Três dolorosas respirações depois, notei o líquido vermelho envolvendo o meu corpo.
Quem está sangrando?
Ah, sou eu.
É o meu sangue.
Tem tanto dele escorrendo pelo chão…
Minha visão está trêmula, escurecendo. Ainda assim, consigo encontrar Keyla imóvel há alguns passos de distância. Tento de tudo para alcançá-la, porém, meu corpo não responde adequadamente. Sequer sinto as minhas pernas.
Queria tanto tocá-la… Checar o seu pulso… Ter certeza que ainda está respirando… De que eu não… tirei a sua vida…
Agora, só me resta torcer do fundo do meu coração para que ela esteja bem.
— Lá estão eles!
— Ah, meu senhor…
Vozes conhecidas ecoam em meio ao zunido agoniante do meu cérebro. Dois dos três recém-chegados foram ao encontro de Keyla enquanto o outro cai de joelhos bem ao meu lado.
Mesmo com a minha visão turva, não preciso de muito para saber quem é o meu herói.
— Irmã! Aguente firme!
Antony apoiou a minha cabeça gentilmente sobre a sua perna. Está completamente apavorado, ciente de que não existe ninguém em lugar algum que possa me ajudar a sobreviver.
— Des… culpe-me, irmão… Sinto… muito… Por tu…
— Eu sei, eu sei! — Está chorando tanto. Suas lágrimas caem feito chuva sobre o meu rosto. Há, há… Você ficou tão alto, mas ainda continua o mesmo chorão de antigamente. — Estou te perdoando! Então, permaneça acordada!
Assim que tocou as minhas costas e encarou sua mão encharcada de sangue, seu rosto se contorceu em angústia.
— Aaa… Parece que… a minha asa se foi…
É a causadora de tanto vermelho. Consigo enxergá-la bem longe do meu corpo. A única coisa que me tornava especial, quebrou. Jamais poderei voar com o meu irmão pelo céu novamente.
— Por favor, não desista! Não ouse me abandonar! Se você for agora, não me sobrará mais nada!
— Ah, seu bobo… É claro que não desistirei tão fácil…
Ao testemunhar tanta sinceridade, uma lágrima escapou. E, após a primeira, veio outra e mais outra. Agora, não consigo mais parar de chorar.
Vale comentar também que estou sentindo coisas diferentes de raiva. Frustração, tristeza, medo da morte… É estranho estar experimentando tamanha felicidade num momento como este?
Não quero abrir mão de tudo isso nunca mais, por isso, preciso encontrar uma maneira de gravar toda essa humanidade na minha memória com fogo. Uma grande cicatriz para esconder várias outras menores.
— Meu irmão… Nem preciso dizer o que você precisa fazer, certo…?
E, realmente, não preciso. Com apenas um olhar, ele entendeu.
— Não consigo…
— É… claro que consegue… — Dei um sorriso sofrido. — Mesmo depois de tudo isso, ainda não sou capaz de descartar todas as… minhas partes ruins. Não sou… forte o suficiente para corresponder… apropriadamente a todos os seus sentimentos…
— Tem certeza disso…?
— Sim… Confio em você para realizar essa tarefa…
Antony olhou para o céu escuro, engoliu suas lágrimas e assumiu uma postura firme. Voltou a ser o jovem confiável que um dia foi admirado por todos da escola.
— Uaa…
No instante em que os olhos azuis dele encararam os meus, um calor aconchegante me preencheu por completo. Posso sentir os dedos gentis dele reconstruindo tudo o que tinha se quebrado dentro de mim, apagando com precisão todas as trevas e traumas do passado.
A partir de agora, Antony tem total controle sobre os meus pensamentos, sobre o que sou e o que serei. Deixei a minha vida nas mãos dele, pois sei que muito em breve, serei recompensada com o futuro perfeito que desejei por tanto tempo.
— Só te pedirei três coisas, irmã. Pare de sentir dor, não morra… e seja feliz, agora e para sempre…
Sequer consegui pronunciar a palavra “sim” antes de tudo se apagar e o completo silêncio me abraçar. Pela primeira vez desde que a minha mãe me abandonou, fechei os olhos e não fui atormentada por pesadelos.
Tive apenas o melhor sonho de toda a minha vida.