Carnaval no Abismo - Capítulo 21
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- Capítulo 21 - A Complexidade de uma Devoção Obsessiva (1)
Ugh… Minha cabeça dói tanto…
Quem eu sou…? Qual é o meu nome…?
Ah, sim… Sou Antony Vasconcelos.
Estou sonhando?
Não, tudo isso está mais para um maldito pesadelo. Sonhos são momentos alegres, calorosos, nada parecidos com o que meus olhos estão vendo.
Quando exatamente adormeci?
Não sei… Minhas memórias estão nebulosas, com vários espaços em branco. Lembro de estar no estádio de futebol, das palavras manipuladoras de Amanda, do olhar frio que a minha irmã mostrou pra mim, e, também, do quanto tudo isso me machucou.
— Meu… corpo…?
Estou menor como se tivesse voltado aos meus tempos de criança. Confirmo isso ao notar a roupa que estou vestindo, uma camisa regata e short jeans que não vejo desde a época do orfanato. E a prova final são os vários hematomas doloridos nas minhas mãos e braços. Presentes que eu recebia constantemente do meu antigo cuidador.
— Onde… estou…?
Trata-se de um ambiente surreal e claustrofóbico, constituído por um longo corredor sem janelas. A iluminação é fornecida por várias lâmpadas incandescentes que piscam continuamente, estendendo-se até onde a vista alcança. As paredes de concreto se encontram completamente cobertas por desenhos infantis feitos com giz de cera. Fezes de ratos se acumulam por toda a extensão do corredor, exalando um odor extremamente desagradável que provoca náusea. A força da gravidade é intensa, pressionando meus órgãos como se tentasse explodi-los feito balões. Sinto que, caso houvesse algo no meu estômago, iria vomitar.
— Pre…ciso… fugir daqui…
Cada passo dado é como pisar em cacos de vidro. São ferimentos invisíveis que transmitem dores bem reais. Não consigo enxergar nenhum sinal de sangue, entretanto, posso senti-lo escorrendo. Tento conter toda essa agonia cerrando os dentes, mas bastaram apenas mais dois passos para me fazer entrar em desespero e gritar:
— Este é o Inferno?! — Minha voz ecoou de maneira deprimente e chorosa. Bem, talvez, eu realmente esteja chorando. — Socorro! Alguém!
Outro passo, outra dor que só consigo descrever como a pior que já senti.
Imediatamente, mordo a língua com força numa tentativa de acordar, espalhando o gosto de ferro pela minha boca. Porém, nada muda, continuo preso.
— Ugh…!
Logo no passo seguinte, já abandono toda a minha esperança.
Será que ficarei neste corredor para sempre, perdido e sozinho? Se a resposta for sim, meu coração vai quebrar, com certeza.
Silêncio e…
Faz quantas horas que estou aqui? Minha noção de tempo também se perdeu.
Acredito que eu não tenha dado nem vinte passos, entretanto, parece que já caminhei por horas e horas sem comida ou água debaixo do Sol fervente.
Desabo de joelhos, agonizando, afogando em pinche.
— Preciso acordar… Custe o que custar, tenho que escapar deste lugar…
Minha irmã precisa de mim, pois sou a única família que lhe restou, seu último pilar de apoio.
Por Hillary, continuarei me esforçando.
Acordarei mesmo que o meu coração seja despedaçado no processo. Depois, quando tudo isso acabar, pedirei para ela apagar as minhas cicatrizes com o seu carinho.
Tornei a ficar de pé e dei outro passo extremamente doloroso. Outro e outro, mas o corredor infinito nunca muda, continua a mesma escuridão nojenta. Uma estrada que se liga ao infinito.
Silêncio e…
Passaram-se dias? Meses? Anos? Não sei dizer. Meus membros doem terrivelmente. Pedaços da carne das solas dos meus pés já marcam o piso a cada passo que dou. É desesperador ver o meu corpo derretendo, desfigurando lentamente. Tanto horror está acabando com a minha sanidade.
Silêncio e…
Em algum momento, o meu interior apodreceu. Estou coberto por moscas varejeiras que utilizam a minha boca, ouvidos e narinas para colocarem os seus ovos e se reproduzirem.
— Aaa…
Uma das coisas que mais desejo neste momento é poder espantá-las, só que tenho abdicado disso para concentrar o que resta das minhas forças nas pernas. Continuo avançando, alguns centímetros de cada vez, através do corredor.
Silêncio e…
Talvez décadas já tenham passado quando finalmente encontrei algo de diferente.
— Uma… garota…?
Mais precisamente, uma criança desnutrida e pálida que brilha no centro de uma aura branca, contrastando com a escuridão do local.
Ela está encolhida no canto, abraçando os próprios joelhos com força. Seu pequeno corpo treme, provavelmente, com frio devido às roupas finas que veste. Posso sentir na minha própria pele toda a sua agonia. Deve estar vivendo neste purgatório há muito mais tempo que eu. Sequer consigo imaginar o quanto já deve ter sofrido.
Mas quem exatamente é essa garota?
Cabelos castanhos muito longos, olhar feroz… O rosto familiar me fez chegar à conclusão de que é uma versão bem mais jovem da minha atual professora, Amanda…
Mas por que ela está no meu pesadelo?
Ah, sim… Agora tudo faz sentido. Consigo me lembrar do que aconteceu antes de eu ser enviado para este corredor. No instante em que olhei nos olhos dela para roubar a sua humanidade, algo deu errado. Não consegui completar o meu objetivo.
Em vez de possuí-la, foi ela que me possuiu.
— Você está em desespero? — Amanda sussurrou com uma risadinha.
Estou sendo encarado de maneira fria e horripilante. Um olhar tenebroso o suficiente para arrancar a minha capacidade de falar.
Ela é realmente aquela mulher preguiçosa, brincalhona e sorridente que conheço? Não, não… Não consigo acreditar que seja. O abismo entre essas duas versões é grande demais. E mesmo que sejam a mesma pessoa, não tem como fingir uma personalidade calorosa enquanto esconde algo tão asqueroso dentro de si.
— Fuaa… Fazia tanto tempo desde a última vez que recebi uma visita. — Deu um sorriso inocente, mas que pareceu extremamente horripilante aos meus olhos. Uma expressão que feriu a minha alma ao ponto de me fazer engasgar. — Seja bem-vindo à mente « daquela mulher », menino.
Amanda levantou devagar. Devia estar naquela posição há muito tempo, pois à medida que se estica, consigo ouvir seus ossos estralando.
— Co-como…? Como eu vim parar aqui…? — Perguntei com muito esforço. Este simples ato me fez sofrer como se estivesse engolindo pregos. — Re-responda-me…
— Olha, também não sei. — Obviamente contente com a oportunidade de poder falar, a criança alargou o seu sorriso medonho. — Estou realmente surpresa que « aquela mulher » tenha permitido a entrada de alguém. Logo « ela » que se esforça tanto para me esconder.
— Isso é realmente possível? Invadir a mente de outra pessoa? — É a primeira vez que um evento assim acontece comigo. Meu poder nunca tinha me transportado para dentro da cabeça de alguém que possuí. — Por favor, deixe-me sair daqui!
— Ahn? Tão cedo? Acabamos de nos conhecer! — Amanda se aproximou de mim e empurrou o meu peito com seu dedo indicador. — Fora que não tenho certeza se posso salvá-lo, sabe? Quando « aquela mulher » permitiu a sua entrada, provavelmente, não tinha a intenção de deixá-lo sair facilmente. Afinal de contas, estamos dentro de uma prisão requintada.
— Por que estou sendo aprisionado?
— Ora, sei lá. — Deu de ombros. — Não tenho acesso a muita coisa que acontece no “outro lado”. Apenas fragmentos censurados, pedaços de cenas minuciosamente escolhidos por « ela ». Mas como parece que estamos vivendo uma ocasião especial, talvez « aquela mulher » me permita saber um pouco mais. Bem, não vai custar nada perguntar. — Fechou os olhos e meditou por um breve momento. — Hum, bastante egoísta, cruel, interessante. Aparentemente, você fez algumas coisas terríveis, né? Pelo menos, o suficiente para merecer o sofrimento eterno.
Ah, realmente. Aos olhos de Amanda, fiz algo que não merece perdão.
— Como posso concertar isso?
— Bem, talvez « ela » te liberte assim que receber as devidas punições. « Aquela mulher » deseja que eu te destrua e esmague o seu coração até transformá-lo em sopa. Quer que eu faça você abraçar a gentileza que tem tentado afastar com tanto vigor. — Riu inocentemente, parecendo não se dar conta do quanto as suas falas e ações são contraditórias. — Como o lado forte « dela », não há ninguém mais apropriada para o serviço.
— Por que está sendo tão… cruel comigo? Realmente cometi um pecado tão horrível assim?
— Hum? Talvez sim, talvez não. Depende muito do ponto de vista. Você apenas teve o azar « daquela mulher » ter se posicionado no outro lado da linha. Em resumo, « ela » é uma pessoa ruim, entende? Pelo menos, dez vezes pior que a sua irmã e qualquer outro aluno do terceiro ano. — Suspirou, exalando tristeza. — Sério, o que estava passando na cabeça daquela loira quando escolheu alguém tão desfigurada para ensinar crianças? Não duvido nada que até o final dessa experiência, todos estarão corrompidos, em completo desespero. Sangrando. Apenas pedaços por todos os corredores do colégio.
— Ugh…
Meu estômago embrulhou ao imaginar tal cena.
— Oh! Desculpe-me, menino. Acabei me empolgando um pouquinho. — Tornou a sorrir. — É que faz realmente muito tempo desde a última vez que conversei com outra pessoa. Nem mesmo « aquela mulher » vem aqui pra me visitar. Por isso, estava bastante solitária. Espero não estar te assustando com todas essas revelações.
Assustado não é nem o começo. A cada palavra que sai da boca dela, mais a minha dor de cabeça piora. Sinto como se Amanda estivesse pisando repetidas vezes em cima do meu cérebro, transformando-o em uma simples massa.
— Quem exatamente é você?
— Ei, mas que pergunta capciosa é essa? Não estamos aqui para falar « dela », sabe? E sim para iniciar o seu julgamento. — Suspirou. — Mas, tá tudo bem. Não gosto de ficar obedecendo cegamente tudo o que « ela » me manda fazer mesmo. Então, vamos concluir à minha maneira. — Fez sinal de “um” com o dedo indicador. — Lembra de quando « aquela mulher » falou que faria você trair a sua irmã? Então, este é mais ou menos o objetivo da minha aula de hoje. Irei ensiná-lo a traí-la. Quando deixar este lugar, você deverá salvar todos os inocentes que Hillary aprisionou. Apagará de uma vez por todas a utopia que estão tentando construir.
Não há esperança. Agora, estou ciente disso.
Amanda não permitirá que eu escape até ter gravado na minha consciência toda a sua índole e condições. Continuará empurrando a minha cabeça em uma pia cheia de suco gástrico até mudar o meu modo de pensar.
— Se você é realmente tão forte, como acabou aprisionada aqui?
— Ah, sabe como é? Calmantes e mais calmantes. Todos aqueles psicólogos falando um monte de merda. Os médicos injetando coisas « nela » de novo e de novo. Dores nada agradáveis, sofrimento desnecessário. Com o passar do tempo, fui sendo empurrada mais e mais para o fundo do abismo até parar neste limbo nojento. — Seu sorriso desapareceu, dando espaço para uma expressão melancólica. — A minha ausência deixou apenas cicatrizes. « Aquela mulher » se trancou em casa com medo dos humanos, de toda a sociedade. Tinha medo de interagir novamente, medo de que eu escapasse do seu controle mais uma vez. Estando sozinha, « ela » não precisava se preocupar com o risco de ser engolida pelas trevas. — Por fim, riu novamente e me reverenciou. — Mas aqui estamos nós! Estou sendo necessária pela primeira vez em muito tempo! Isso não é emocionante?! Enfim, vamos parar de enrolar e ir direto ao que interessa. Você precisa impedir Hillary.
— Por quê…? Apenas me dê um bom motivo…
— Ora, porque o desejo de vocês é falho! Por um acaso, planejam apagar suas próprias consciências depois que transformarem todos os outros em marionetes? Suponho que não. Logo, vocês serão os únicos com sentimentos em um mundo vazio, sem vida. Entende onde quero chegar? Os bonecos que criaram podem até respirar, entretanto, não estão realmente vivos. Pode demorar dez dias ou dez anos, mas em algum momento, a solidão os corroerá. A falta de calor humano congelará seus corações.
— Isso não é verdade! Como poderíamos ser infelizes num planeta inteiramente coberto pela paz?! — Gritei o mais alto que podia, cuspindo toda a minha fúria. — Você sabe muito bem o quanto a humanidade é errada! O quanto pecamos diariamente e todos os crimes terríveis que cometemos contra a natureza e a nós mesmos! É tão errado assim querer que todos sejam iguais, andando lado a lado sobre o mesmo patamar?! Ninguém mais terá pesadelos, droga! Ninguém mais chorará ou sentirá dor novamente…
— Consegue mesmo afirmar isso com tanta certeza após experimentar o desespero da solidão em primeira mão?
Amanda rodopiou de braços abertos, mostrando o corredor onde estamos. Não… Está apontando para o futuro que estou ajudando a criar.
— Ugh…
— Doeu, não doeu? Ficar sozinho, no escuro, no silêncio. Desejou morrer muitas e muitas vezes, não desejou?
— Sim… Foi o pior momento da minha vida…
— A paz que vocês anseiam é apenas temporária, menino. Seu idealismo comunista não passa de um tapa buraco. Mas, o desespero? Ah, o desespero que vem após tudo isso não tem hora para acabar. Como você é o elo mais fraco, será o primeiro a trair esse mundo perfeito. E quer saber o motivo? Por que não suportará ter apenas a sua irmã como companhia. Mesmo que a ligação entre vocês dois seja forte, ainda sentirá a necessidade de interagir com outros, viver de verdade. — Começou a saltitar como se estivesse brincando de amarelinha. — Você conhece muito bem a Hillary. Então, sabe o que acontecerá quando implorar para trazer todos os seus colegas de volta.
— Não, ela…
— Sim, isso mesmo. Ela também te transformará em uma marionete e, consequentemente, se tornará a última pessoa “viva” no planeta. O verdadeiro inferno surgirá a partir daí, né? Em algum momento, Hillary quebrará de vez! E o que fará em seguida? — Com a expressão mais pura que já vi, a pequena mão direita dela simulou uma arma apontada para a própria cabeça. — Só Deus sabe, mas eu apostaria no bom e velho suicídio.
Uah…Consigo imaginar esse futuro com tanta facilidade. Pouco a pouco, estou traindo a minha irmã e tudo o que ela acredita.
Não, já venho duvidando dela desde muito antes.
— Ei, que tal continuarmos a nossa conversa enquanto caminhamos? Preciso me esticar um pouco. — Olhou para cima, fazendo uma pose pensativa. — Hum… Se bem que não dá pra bater um papo agradável em um lugar tão asqueroso como este. Vamos mudar de ambiente?
Com um estalar de dedos, todo o cenário mudou. Ao mesmo tempo, meus ferimentos desapareceram magicamente. Fiquei mais leve, libertado de todas aquelas moscas nojentas e do peso absurdo da gravidade.
Felizmente, a sensação de sufocamento e a ânsia de vômito também se foram. Sinceramente, acho que posso até voar se eu quiser.
Estamos agora em um lindo parque ao entardecer, cercados por vários pés de ipês com flores de todas as cores. Uma paisagem surreal no bom sentido.
Isso sim é um verdadeiro sonho.
Amanda avançou e começou a saltitar pela calçada de pedras batidas. Apesar das suas roupas ainda estarem sujas e seus cabelos bagunçados, a simples mudança de ambiente foi o suficiente para torná-la uma criança qualquer aos meus olhos. Tamanha inocência praticamente me forçou a caminhar ao seu lado, temendo que ela pudesse tropeçar e se machucar.
— Algum tempo atrás, você afirmou ser o lado maligno da minha professora. Então, como consegue criar algo tão lindo assim?
— Não se engane, menino. Não fui eu quem pintou a tela. Na verdade, tudo o que está vendo é apenas um momento que roubei de dentro da sua cabeça. Essa paisagem não te traz recordações?
Como poderia me esquecer?
— É o momento em que encontrei a mãe que me abandonou.
Lá está ela, sentada em um banco de concreto, com seus cabelos negros e longos caindo sobre os ombros, criando um contraste elegante com sua pele clara. Ela veste um suéter cinza de tricô e uma saia preta. Seus olhos azuis estão fixos na revista repousada em suas mãos, demonstrando grande interesse pelo que lê.
Poucos passos ao lado, em outro banco, está eu. Ou melhor, a minha cópia adolescente.
Bem, não tinha como a mulher absorta na leitura me reconhecer depois de todos esses anos que passamos separados.
— O que você sentia nesse momento? — Amanda perguntou.
— Raiva, muita raiva.
Eu estava com os dois punhos trêmulos cerrados, segurando-me para não fazer algo horrível com ela.
Retirar a sua humanidade seria apenas o começo.
— Planejava me vingar por todo o medo e horror que eu e minha irmã passamos naquela longa noite. Faria com que se arrependesse amargamente de ter nos jogado fora.
— O que te fez mudar de ideia?
Então, uma criança sorridente com um algodão doce correu até minha mãe e a abraçou com força. É uma menina tão fofa, deve ter no máximo cinco anos.
— Essa é a filha dela, Priscilla. Minha meia-irmã.
Um homem de terno e barba feita apareceu logo em seguida. Sentou-se ao lado da minha mãe e colocou o braço em torno da cintura dela. Todos os três estão sorrindo.
— Acredito que tenha sido um grande choque.
— Tantos pensamentos passaram pela minha cabeça. Um turbilhão de sentimentos se misturou dentro de mim. Confusão, tristeza, alívio. — Olhei para o céu vermelho-sangue e suspirei. — Descobri depois que a minha mãe tinha se casado. Esse homem gentil a tirou da sarjeta, curou sua depressão e lhe deu um novo lar. Formaram a família dos sonhos, tiveram uma linda filha.
— Você desistiu da sua vingança por causa disso? Escondeu esse fato de Hillary porque sabia o que aconteceria caso ela descobrisse?
— Minha irmã destruiria todos eles sem hesitar. — Sim, foi exatamente isso o que pensei. — Eu estava tão confuso… Como essa mulher pôde fazer algo tão cruel e ainda se sentir no direito de ter um final feliz?! Ela, com certeza, não merecia isso! Precisava sofrer mais do que qualquer outro!
— Então, por que não usou suas próprias mãos para se vingar?
— Porque nunca tinha visto ela sorrir desse jeito, porra! Meu pai nos abandonou tão cedo! Éramos apenas eu, minha irmã e ela em um lixo de barraco, passando fome! Não existia qualquer traço de felicidade! Por isso, também não existiam sorrisos! — Puxei meus cabelos com força, tentando encontrar um pouco de alívio na minha autopunição. — Vê-la em paz desse jeito feriu o meu coração ao mesmo tempo em que o aqueceu! Enquanto fiquei puto de raiva, também experimentei felicidade! — Desabei de joelhos, cansado de tanto gritar. — Como é possível sentir tanto de uma só vez…? Se isso não é fraqueza, o que é…?
— Gentileza não é fraqueza, menino. Você salvou a sua mãe e ponto final. Fez porque queria, porque sentiu que era o certo a se fazer. — Amanda se agachou na minha frente e segurou a minha mão esquerda. Seus dedos são tão pequenos, no entanto, tão frios. — Agora, está na hora de salvar a sua irmã. Momento de fazer o que é certo novamente.
Salvá-la? Consigo mesmo fazer isso? Estou ciente do quanto ela é um caso perdido… Sei o quanto a escuridão já a corrompeu.
— Ajude-me, Amanda. — Sussurrei, rendendo-me a óbvia manipulação da criança. — Como posso mudá-la…?
— Sinceramente, não faço ideia. Eu não sou uma boa pessoa, lembra? — Começou a brincar com as linhas da palma da minha mão — Se ela precisa de luz, torne-se a luz dela. Já basta de ficar seguindo-a, tome a dianteira para poder guiá-la. Caminhem juntos na direção de um futuro onde possam aceitar que as dificuldades, tristezas e lágrimas servem apenas para torná-los pessoas melhores. Estenda a sua mão para Hillary e a salve do abismo.
Ugh… Então, essa é aquela paz de espírito que tanto ouvi falar? Confesso que a sensação de ter todo o peso da culpa tirado das minhas costas não é nada ruim.
Repentinamente cheio de energia, levanto-me e respiro fundo várias vezes.
— Farei isso. Sei que posso. Vou salvá-la, com certeza.
— Ótima resposta! Nota dez! — Amanda saltitou, deixando extravasar toda a sua felicidade. — Vamos continuar a nossa caminhada? Já chega de tanta tristeza. Eu quero ouvir sobre as suas aventuras, histórias lindas e divertidas.
Conversamos por horas sobre todo o tipo de assunto. Clima, paisagens, comidas favoritas. Foi um momento tão agradável que sequer notei o cair da noite, e, consequentemente, o momento da nossa despedida.
Chegou a hora de encarar o mundo real novamente.
— Você não sente raiva da sua outra metade por te manter aprisionada? — Perguntei.
— Raiva? Bem, estou sempre com raiva. Afinal de contas, é isso que sou, o lado estragado, tudo aquilo que « a mulher » não deseja se tornar. Agora, caso esteja perguntando se me sinto impaciente… Na verdade, encontro-me em paz. Tenho ciência de que em algum momento, « ela » vai precisar de mim. Sei que chegará o dia de nos tornarmos apenas uma metade novamente.
— O que isso significa?
— Que quando eu assumir o controle, todos vocês vão se ferir e rezar para que eu seja apagada da existência, simples assim.
Isso é simplesmente ridículo.
Não tem como eu odiar alguém que abriu os meus olhos e deu um novo significado para a minha vida.
— Devia odiar, tá? — Amanda falou, deixando claro que esteve escutando os meus pensamentos desde o início. — O “eu” que está enxergando agora não passa de uma bela ilusão que a sua mente imaginou para não quebrar de vez. A realidade é infinitamente mais nojenta e asquerosa. Você, melhor do que qualquer outro, deveria entender que não se deve confiar nas aparências.
O sorriso inocente dela quase me cegou. Sério, como posso aceitar que ela é o acúmulo de todo o mal no coração de uma pessoa?
— Este é o nosso adeus? — Perguntei.
— Espero que não. Adoraria conversar com você novamente.
— Faremos isso no “lado de fora” da próxima vez. — Devolvi o sorriso.
— Há, há. Claro, foi um prazer conhecê-lo, menino.
— O prazer foi todo meu.