Carnaval no Abismo - Capítulo 20
Não sei dizer se estou com mais medo de perder a minha humanidade ou com a provável morte por sufocamento dentro do minúsculo porta-malas deste carro, cujo agravante está no fato de algum adolescente sem carteira de motorista estar dirigindo-o. É difícil especular uma velocidade exata apenas ouvindo o grito do motor, mas tenho certeza que estamos indo bem rápido graças a quantidade de vezes que bati a minha cabeça com força na lataria durante as curvas. Também já perdi as contas de todos os chutes que dei nos meus parceiros trancados comigo e quantas vezes fui chutada na cara.
Algum tempo depois, o carro parou. Fui puxada do porta-malas e guiada por uma pequena mão caminho afora. As nossas vendas não foram retiradas, muito provavelmente, para não conseguirmos montar uma rota de fuga. Sei apenas que fizemos um monte de zigue-zagues até eu perder completamente a minha noção de norte e sul.
Quando finalmente me permitiram parar, ouvi o som de uma porta sendo fechada e trancada.
Estou presa, mas aonde, exatamente? Sinto o forte cheiro de desinfetante e eucalipto. Provavelmente, é um banheiro.
— Se quiserem, podem entrar em desespero à vontade. Prometo não criticar. — Comentei logo após confirmar que não há mais ninguém aqui além dos integrantes da minha equipe.
— Na verdade, podemos olhar pelo lado bom e agradecer. — Keyla falou.
— Agradecer?
— Apesar de não ter sido da maneira que planejamos inicialmente, atingimos o nosso primeiro objetivo, não? Entramos no castelo deles.
— De fato. Com a exceção de estarmos engaiolados, cegos e amarrados, todo o restante da Operação Novinha Senta o Rabetão no Chão foi um grande sucesso! — Leógenes não economizou no sarcasmo.
— Olha só quem reclamou pra caramba, mas acabou adotando o nome.
— Calada.
Nós até que possuíamos um plano bem elaborado para pegarmos os irmãos Vasconcelos de surpresa. Tínhamos furtado todos os tipos de armas não-letais de uma delegacia, plantas detalhadas de todo o Isana Ágora, e até um lanchinho da tarde! Encurralaríamos os anjos, os capturaríamos e daríamos um jeito de convencê-los a desfazer toda essa lavagem cerebral.
Infelizmente, o nosso equipamento ficou para trás e fomos nós que terminamos enjaulados.
— Bem, só nos resta ter paciência e esperar alguém aparecer. Tenho certeza que vai dar tudo certo. — Falei calmamente e sentei no chão.
— Se é que alguém vai aparecer. Na minha opinião, vamos ser completamente esquecidos e devorados por ratazanas. — Leógenes deu um longo suspiro.
— Errado. Os anjos definitivamente virão até nós. Enquanto eles não olharem nos nossos olhos, toda essa conquista continuará incompleta. O tabuleiro ainda possuí espaços vagos e nós somos as peças que faltam.
Agora tudo é questão de ter paciência e torcer para aparecerem antes de algum de nós precisar fazer xixi.
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As horas passaram. Seis, sete, oito… Não sei dizer exatamente, por culpa do cochilo que tirei no meio do caminho. Mas, após muito, muito tempo, a chave girou na fechadura e a porta foi aberta com um rangido. Novamente, uma mão gentil segurou o meu pulso e me guiou. Em certo momento, o terreno mudou de textura. Era duro e se tornou macio, de concreto para um gramado. Mais algumas dezenas de passos depois, fui forçada a ficar de joelhos. Dessa vez, até mesmo os meus tornozelos foram presos por uma abraçadeira. Finalmente, minha venda foi retirada.
— Ugh…
Demorei vários segundos para me acostumar com a claridade das luzes dos refletores que quebram a escuridão da noite. Acredito que eu esteja no Estádio Mané Garrincha, mais precisamente na frente de um gigantesco altar adornado, que foi montado bem no círculo central do campo. Então, aqui é a fortaleza dos anjos? Uma escolha estilosa, devo confessar.
Ao olhar para a direita, vejo Lorena e outros alunos completamente sujos e maltratados, trabalhando até a exaustão. Porém, com sorrisos orgásticos nos rostos. Aparentemente, estão construindo uma estátua de Hillary segurando a grande bandeira com o símbolo da sua política extremista.
— Como está se sentindo após o seu ataque ter falhado miseravelmente, senhora? — Do topo do altar, sentada em uma poltrona reclinável de estofado vermelho, falou a responsável por toda essa confusão. — Espero que feliz.
Hillary traja um longo vestido púrpura de ceda, só que sinceramente estaria combinando bem mais se estivesse usando farda militar com uma suástica no ombro.
— Ainda não, mas ficarei assim que te der umas boas palmadas na bunda.
— Antes disso, precisará de um milagre para conseguir se soltar. — Em seu rosto encontra-se o sorriso impiedoso de alguém que está prestes a chutar para longe o último obstáculo que a impede de alcançar seus objetivos obscuros. — É uma pena que eu, sua inimiga, seja a única capaz de prover milagres por aqui.
Na mão direita dela encontra-se um longo chicote cinza, enquanto a sua mão esquerda segura uma corrente de metal ligada diretamente a uma coleira vermelha. Já essa coleira está presa no pescoço do seu irmão gêmeo.
Antony está de quatro no lado direito da poltrona vestindo apenas uma cueca azul, valendo ressaltar que a noite de hoje está deveras congelante. Entretanto, não se engane ao pensar que ele está sofrendo com tamanha crueldade. Muito pelo contrário, sua feição corada e os coraçõezinhos saltitando nas suas írises explicitam o quanto ele está amando a própria desgraça.
Minha sala de aula só tem gente dodói, já notei isso faz um tempinho.
Já no outro lado da poltrona, está Augusto. O garoto de cabelos tingidos permanece inexpressivo com os braços cruzados, não demonstrando qualquer sentimento mesmo diante de uma Keyla submissa e próxima de perder a sua humanidade. Parece o manequim de alguma loja.
— Espero que esteja pronta para se tornar mais uma das minhas escravas, senhora. No entanto, em honra a todo o seu esforço para fugir de mim, te darei uma posição especial dentro da minha comunidade.
Após um assobio, o acorrentado Cachorro Magro parou na frente da sua irmã. Foi então que a pervertida trocou de assento, transformando o seu lacaio em um jumento para poder vir na minha direção, dando-lhe uma chicotada de vez em quando.
— Então, e agora? — Leógenes perguntou.
— Alguma ideia para nos tirar desta situação? — Keyla sussurrou.
— Desculpa, galerinha do mal. — Dei um sorriso tenso. — Mas acho que agora ferrou cabuloso pra gente.
No instante em que ela olhar nos nossos olhos, nossas vidas serão tomadas de nós. Todo o planeta Terra terá sido conquistado por uma sadomasoquista sociopata maluca. Vivenciaremos a mais impiedosa e perfeita ditadura de toda a história da humanidade.
— Muito bem, quem será o primeiro? — Hillary desceu, caminhou até Keyla e a encarou de cima, exibindo toda a sua superioridade. — Você me odeia? Suponho que a sensação de perder não seja nada agradável. Principalmente no seu caso. Afinal de contas, roubei tudo o que tinha. Seu cotidiano, seu namoradinho e, muito em breve, até mesmo a sua vida. — Mostrou um sorriso cheio de veneno, preparando-se para gargalhar. — E por falar em Augusto, saiba que nos divertimos bastante nos últimos dias. De todos os meus garotos, ele foi o que mais recebeu carinho.
Ugh… Que personalidade horrível!
Tenho certeza absoluta de que qualquer garota normal explodiria de raiva se estivesse no lugar de Keyla. Entretanto, não estamos falando de normalidade aqui, e sim da encarnação de um iceberg.
A expressão da garota ruiva permanece inabalável. Não dá para saber o que se passa na mente dela ou quais sentimentos circulam pelo seu interior. Simples palavras não têm poder de fogo suficiente para fazê-la perder a compostura.
— Ei, por que você não está com medo? — Hillary perguntou com uma sobrancelha erguida.
— Deveria estar? Você não passa medo nem em uma criança.
Ver a toda poderosa Hillary estremecendo de frustração encheu o meu coração de empolgação. Acredito que este seja o momento perfeito para começar a virada de jogo.
— Ei, anjinha, não acha que já está na hora de sair desse pedestal? Ainda tenho uma carta bem legal na manga! Então, pare de agir como se já tivesse vencido.
— Blefe! Você está tentando ganhar tempo! — Fervendo, a vice-presidente do mundo se voltou na minha direção. Parece realmente disposta a arrancar o meu livre arbítrio pela goela. — Já chega de brincadeira, é hora de purificá-los.
Imediatamente, levantei os meus dois braços, mostrando que estão livres da abraçadeira.
Hillary arregalou os olhos, confusa. Já o seu irmão, saiu imediatamente do papel de palhaço e mostrou uma expressão de pura perplexidade.
— “Como ela conseguiu?” “Tenho certeza que mandei os meus cãezinhos os revistarem e tirarem tudo que pudesse ser usado como arma!” São essas perguntas que estão passando pelas cabeças de vocês? — Sem conseguir me conter, comecei a rir. — Qual é, pessoal?! Eu posso até ser meio burrinha, mas os meus dois companheiros aqui são bem inteligentes.
Seguindo a minha deixa, Leógenes ficou de pé e exibiu um pequeno estilete.
— Este aqui é o plano reserva, caso não tenham entendido direito. — Brincou.
— E agora é o clímax!
Com apenas três movimentos, Keyla, aproveitando-se do momento de distração dos anjos, correu até Hillary e acertou um poderoso soco de direita bem no meio do rosto dela, jogando-a de bunda no chão. O estalo ecoou tão alto que me fez cerrar os dentes e fechar os olhos.
Okay, esqueçam o que eu disse antes. Agora, existem duas pessoas capazes de acabar com a paciência do inverno encarnado.
— Atrás deles! — Obviamente, a aluna de cabelos brancos explodiu após tanta demonstração de afeto. — Peguem todos eles!
As marionetes começaram a se mover, despertando de seus transes e desistindo de tudo o que estavam fazendo para poderem nos perseguir. Neste momento, enchi os meus pulmões de ar e gritei o mais alto que podia.
— Operação Novinha Senta o Rabetão no Chão, iniciar Ordem 66! — Um segundo depois, uma bomba de fumaça voou e caiu entre o meu grupo e os irmãos Vasconcelos, pintando tudo de cinza e oferecendo uma brecha valiosa para que pudéssemos nos afastar. — Tá, o nome da operação é grande demais! Precisamos mudá-lo!
— Eu avisei! — Leógenes gritou na minha esquerda.
— O que é essa “Ordem 66”? Não lembro de termos discutido sobre isso no planejamento. — Keyla questionou à minha direita.
— Sei lá! Apenas soltei no calor do momento! Só queria falar algo maneiro!
Ao dar uma olhadinha para trás, avistei Lorena e outros dois alunos escapando da cortina de fumaça e vindo ao nosso encontro. Logo em seguida, mais quatro também apareceram e se jogaram contra a representante de classe e seus parceiros, derrubando-os e prendendo os seus pés com algemas de metal.
Confusos? Bem, o que está acontecendo é o seguinte. Neste exato momento, duas facções rivais estão lutando entre si. Aqueles sob o controle mental dos irmãos Vasconcelos e os que apenas fingiam estar hipnotizados.
— Bom trabalho, meus coringas!
Como as marionetes, ou melhor, os cavalos usando antolhos se preocupavam apenas em capturar o trio de chefes inimigos, acabaram emboscados, derrotados e capturados com facilidade em pouco menos de um minuto. Conclusão que só foi possível porque apenas nove pessoas ainda estavam nas palmas das mãos dos anjos.
— Sentiram saudades?
Quando chegamos a lateral do campo, fomos cumprimentados por uma Juliana sorridente.
— Ah, sim! Com certeza!
Sem hesitar, dei um poderoso peteleco na testa dela.
— Ai! Por que me bateu, senhora?!
— Para aprender a nunca mais me enganar novamente, criancinha! Naquela hora, realmente pensei que você tinha perdido a sua humanidade novamente!
Relembro a aparição dela no esconderijo e a maneira convincente que fingiu ser nossa inimiga.
— Desculpinha, tá? É que os anjos me ordenaram a pegar vocês antes que pudessem tramar alguma coisa. Por isso, não tive outra escolha além de deixar aflorar o vilão dentro de mim para não levantar suspeitas e, consequentemente, estragar toda a Operação Novinha Senta o Rabetão no Chão. Sem contar que aproveitei essa oportunidade para facilitar a entrada de vocês no estádio. — Deu uma risadinha fofa, manipulando-me descaradamente. — Além do mais, não dizem que o herói sempre aparece no último segundo para salvar o dia?
Na verdade, Juliana vem nos ajudando desde antes. A pequena mão que me guiou enquanto eu estava vendada era dela. A mesma mão que me emprestou o estilete para poder cortar as minhas amarras e as dos meus companheiros.
— Beleza! Agora que os bonecos estão no chão, só precisamos tirar os reis do trono!
Anunciei com extrema confiança, esquecendo-me de um fato bem importante.
— Já chega!
Com dois bateres de asa, Hillary dispersou a nuvem de fumaça. Os olhos violentos dela estão focados apenas em mim com fogo queimando sem controle dentro deles.
Ela realmente está parecendo com uma divindade agora.
— Como?! Responda-me! O que você fez?!
A voz do anjo soou com um tom demoníaco. Imponente o suficiente para me fazer arrepiar. Porém, mantive o medo escondido dentro de mim.
Chegou a hora de entrar na mente dela e assumir o controle. Mas como exatamente farei isso? Pelo jeito, terei que improvisar.
— Você deveria direcionar todas essas perguntas para o seu irmão, sabia? Foi graças a ele que alcançamos um feito tão grande.
— Era só o que me faltava! Como ousa culpá-lo?! Está insinuando que ele me traiu?!
— Ei, ei. Calma aí, mocinha. Disse apenas que chegamos ao ponto em que estamos por causa da fraqueza dele. Diferente de você, Antony é alguém fácil de derrubar do cavalo.
Bastou Hillary trocar olhares com seu irmão para notar que existe alguma peça fora de lugar. Pude ouvir a confiança que os dois compartilham rachando de longe, e não fui a única.
— Os reconhece? — Leógenes tomou a liderança e apresentou os alunos livres do controle mental para Antony. — As pessoas cujas identidades foram tomadas pela sua irmã continuam da mesma maneira, mas aqueles que você hipnotizou escaparam por entre os seus dedos. A sua gentileza permitiu que eles fugissem.
— Gentileza? O meu coração fraquejou? — O presidente do mundo deu um sorriso torto, dando-se conta do que aconteceu. — Ainda assim! Por mais que o meu poder seja raso, eles não deveriam ter acordado tão facilmente! Como conseguiram trazê-los de volta?!
— Bem, se quer mesmo saber, foi por pura coincidência. Alguns dias atrás, eu fui capturado por estas duas. Depois de uns estímulos aqui e outros traumas acolá, acordei como se estivesse saindo de um sono muito profundo. — Leógenes fala com extremo sarcasmo sem desviar os olhos de mim e Keyla, julgando-nos mais do que os nossos próprios inimigos. Que rude! — Enquanto você e a sua irmã pensavam que eu tinha sido aprisionado em algum porão, na verdade estava ajudando a capturar os meus colegas de classe um por um, a fim de libertá-los também.
Nos últimos dias, conseguimos retirar o controle mental de quase todos e, sabiamente, os devolvemos ao quartel-general inimigo no papel de espiões.
Claro, existiram várias exceções que, mesmo com muito suor derramado, não conseguimos salvar. Por sorte, sem uma ordem específica, os alunos controlados utilizam apenas os instintos básicos de sobrevivência. Logo, não sentem a obrigação de nos dedurar para os seus mestres, um ponto fraco que nos beneficiou bastante.
— No meio dessa jornada, depois de uma sequência de fracassos, nos perguntamos: por que alguns alunos retomam suas personalidades e outros não? Começamos a investigar essa pergunta mais à fundo, até que Juliana, brilhantemente, encontrou a resposta.
— No meio de uma longa noite criando teorias por videochamada, chegamos a um padrão. — A morena alargou o seu sorriso felino. — Por acaso, vocês sabiam que após “voltarmos”, ainda retemos todas as memórias do tempo que ficamos no modo zumbi? Graças a isso, notei que os alunos libertados tinham sido hipnotizados pela mesma pessoa, Antony.
— Imediatamente, fomos atrás de descobrir a razão disso. — Leógenes continuou. — Por que a sua irmã é naturalmente mais poderosa quando deveriam ter o mesmo nível de poder? Bem, a nossa professora sabe a resposta dessa pergunta.
— Porque você não tem fé no que está fazendo. — Falei sem rodeios. — Um dos motivos de eu ter te chamado para conversarmos naquela noite foi para conhecê-lo melhor, descobrir o que verdadeiramente pensa sobre toda essa história de corrigir a humanidade. O manipulei, forcei a abrir o seu coração. Entrei na sua mente. Devido a isso, cheguei à conclusão de que você é uma boa pessoa, o completo oposto de Hillary. Apenas um adolescente qualquer, gentil e frágil, incapaz de pisar em uma barata sem sentir remorso depois.
Antony olhou para o chão e balançou a cabeça em negativa, recusando-se a aceitar minhas palavras.
— Está errada! Pare de falar como se me conhecesse há muito tempo! Não tenho dúvidas de que compartilho os mesmos sonhos da minha irmã. Que cobiçamos os mesmos desejos! Eu nunca trairia a justiça que ela almeja!
— Você já a traiu, Antony. Tem traído ela desde o início. — Keyla falou. — Por mais que a sua boca não admita, o seu coração deve ter doído todas as vezes que precisou roubar a vida de alguém.
— Parem com essa tentativa tola de nos jogar um contra o outro. — Hillary tomou a fala, protegendo o seu irmão. — Nós somos um. Todas as nossas decisões são tomadas em conjunto. Nunca escondemos nada um do outro. Construímos a nossa família usando essas três frases como base. É parte de uma grande promessa que fizemos quando ainda éramos pequenos! Não é algo que pode ser facilmente quebrado!
— Será mesmo? Da perspectiva de alguém que observa de fora, Antony tem te manipulado por todo esse tempo. — Chegou o momento de jogar um bocado de lenha na fogueira. — Não consegue enxergar as migalhas, pois o seu irmão está sempre as escondendo de você. Então, permita-me revelar toda a verdade. Não acha estranho que todo o trabalho sujo sempre pare nas suas mãos? Alguma vez na vida, ele deu o primeiro passo sozinho para punir os monstros em prol do mundo perfeito de vocês? Duvido que tenha. Um bom exemplo disso é a punição dada ao dono do orfanato e seu pai adotivo. O peso desses pecados foram parar apenas nas suas costas ao invés de terem sido divididos igualmente.
— Espere um pouco… Como você sabe dessas coisas…?
— Não é óbvio? Antony me contou. — Fingi uma expressão de surpresa. — O quê? Não me diga que ele não te falou sobre o nosso último encontro? Há! Viu só? Apenas mais um segredo no meio de tantos outros que ele esconde de você.
— Cale-se! Cale-se!
— Ah, e por falar nesse negócio de “punição”, acho curioso o fato de nunca terem ido atrás daquela que começou tudo isso. Falo da mãe de vocês, claro. Aquela que, impiedosamente, os abandonou na sarjeta. Sinceramente, se eu estivesse no lugar de vocês, teria sido a primeira pessoa que procuraria para punir.
Quando terminei a frase, notei Antony recuar dois passos. Parece ter levado um forte tapa na cara.
Ora, ora… Isso foi uma pista e tanto, não? Jogarei uma isca para ver se fisgo alguma coisa.
— Ei, qual é a dessa careta, menino? Não me diga que você realmente foi atrás dela?
No mesmo momento, Hillary encarou o seu irmão, perplexa.
— Você foi atrás da mamãe sem mim…?
O garoto de cabelos brancos não respondeu. Entretanto, esse silêncio também foi a melhor resposta possível para a ocasião.
Com isso, consegui destruir a confiança que os dois tinham um no outro.
— Viu só? Outra mentira. — Comentei, dando de ombros.
Que sensação estranha… Meu estômago está formigando…
Acabo de fazer algo horrível, não é? Destruí um relacionamento, uma família. Apesar disso, não sinto remorso, apenas o doce sabor da vitória que se aproxima.
— Eu, eu… — Antony abriu a boca mais três vezes antes de conseguir completar o seu falho pedido de desculpas. — Realmente a encontrei um ano atrás. Só não contei nada porque pensei que estaria reabrindo feridas do passado. Fiz isso para te proteger! Finalmente estávamos tendo uma vida normal e não queria estragar tudo para vê-la sofrendo novamente!
Hillary desviou o olhar, sentindo nojo de tudo que acabou de escutar.
— Você se vingou por nós dois, certo?
Silêncio.
Mostrei um sorriso.
— Tirou a sanidade dela, não tirou? A fez chorar da mesma maneira que nos fez chorar? A deixou no frio, sem nada, sem ninguém, do mesmo jeito que ela fez conosco?
Silêncio.
Meu sorriso aumentou.
— Você a… deixou ir…?
Recebeu apenas um olhar triste como resposta.
— É óbvio que deixou. — Intervi após uma breve risada escapar por entre os meus lábios. — E ainda digo mais. Ele, provavelmente, não te contou a verdade porque conhece muito bem o seu lado podre. Da mesma maneira que não suportaria te ver chorando pelos traumas do passado, também não aguentaria perder aquela que o trouxe para o mundo. Imagine só abandonar a própria mãe vegetando em um beco sujo? Insuportável, não? De forma alguma, Antony conseguiria manter o seu dia a dia após esmigalhar indiretamente a sua própria família. Por isso, mentiu para você. O fez porque é um garoto gentil.
— Pare de dizer que sou gentil! Eu não sou isso!
— Sim, você é.
— Cala a sua boca, desgraçada! — A garota de cabelos brancos gritou com todas as forças. — Por que mentiu para mim, irmão…? Mesmo sabendo o tanto que eu queria reencontrá-la…? Mesmo ciente do quanto as memórias que tenho dela ainda machucam…?
Longo silêncio e… frenesi.
Literalmente, do nada, alguém segurou o meu pulso direito com força e o torceu para trás. Depois, fui derrubada com uma rasteira e jogada de cara no chão, praticamente obrigada a comer grama.
O responsável foi Augusto. Um daqueles que não conseguimos trazer de volta por ter sido hipnotizado por Hillary.
— Você não deveria estar preso junto com todos os outros?! — Provavelmente, enquanto eu estava distraída com a conversa, ele deu a volta pela arquibancada até chegar nas minhas costas. — Largue-me!
Esforcei-me bastante para fugir, mas no quesito imobilização, este garoto está de parabéns.
— Ei, seu idiota! O que está fazendo?! — Quando Keyla tentou puxar Augusto pelo braço, recebeu um soco na boca e caiu com violência no chão. — O quê…?!
A pequena ruiva ficou paralisada no lugar, atordoada e severamente surpresa por ter sido agredida pela pessoa que sempre foi gentil com ela. Alguém que jurou nunca a machucar.
Leógenes e Juliana também ameaçaram vir ao meu socorro, mas uma voz imponente os fez parar:
— Não se movam! Caso contrário, ordenarei que Augusto quebre o braço dela!
Em resposta às palavras da garota de cabelos brancos, meu pulso foi apertado com ainda mais firmeza.
Dói demais.
Tenho certeza que se ele impuser um pouquinho mais de força, meus ossos virarão migalhas.
— Ei, irmã…
Antony ameaçou dizer alguma coisa, mas engoliu suas palavras com rispidez. Além de gentil, ele também é um grande covarde.
— Irmão, vá até lá e apague os sentimentos de Amanda. Prove para mim que ela está errada. Mostre que não é um mentiroso.
O olhar de Hillary é uma mistura insana de fúria e ódio. Está completamente fora de si, imparável. Alguém que não hesitará antes de machucar os outros para realizar as suas ambições e provar que o seu ponto de vista é o correto.
Encurralado, Antony apenas respirou fundo e reuniu coragem. É a última chance que ele tem de salvar a sua família da completa ruína e não vacilará.
Mostrou sua asa, pulou alto e flutuou até mim. Se agachou e ergueu o meu queixo com firmeza, buscando unicamente os meus olhos.
— A sua pequena rebelião termina hoje, o último conflito da história da humanidade. A partir desta noite, um paraíso perfeito surgirá, sem mais ódio, sem mais guerras. — Aproximou a sua boca do meu ouvido e sussurrou de maneira que apenas eu pudesse escutar. — Desculpe-me.
Fechei os olhos com força, mas eles foram abertos pelos dedos de Augusto. Não tenho como mover a minha cabeça. Não existe a opção de fugir, muito menos tempo para rezar.
Perderei o meu eu para sempre.
O azul ofuscante de Antony atravessou a minha retina e percorreu os corredores das minhas córneas até alcançar as memórias, os sentidos e os sentimentos.
Eu consigo sentir as unhas dele perfurando a minha massa cerebral, desligando todos os interruptores que encontra. Pouco a pouco, os meus sentidos começam a parar de funcionar. A escuridão consome tudo feito um porco faminto, não deixando nada para trás.
Paro de sentir os dedos das mãos, depois os dos pés. Cinco segundos depois, é como se eu estivesse tetraplégica.
Então, essa é a sensação de morrer?
O toque da morte bem que poderia ser mais gentil. Para alguém como eu que sempre ansiou pelo final mais indolor possível, esta situação é desesperadora. Estou agonizando, convulsionando com os olhos revirados, enlouquecendo ao afundar em tanto medo.
É frio.
Tão, tão frio.
Acho que eu perdi. Todos perdemos.
Estou morta.