Carnaval no Abismo - Capítulo 2
Machado de Assis escreveu alguma baboseira sobre amar à nossa maneira, que o importante é saber amar.
Do meu ponto de vista, o amor não deveria ser um item obrigatório na bagagem de ninguém. Bem diferente da água ou do oxigênio, não precisamos amar para continuarmos vivos. Tampouco, vivemos com o único intuito de encontrar o amor.
Pois saiba que você é uma pessoa alienada se pensa que já nascemos destinados a buscar cegamente por isso feito uma máquina programada. Que o tal “destino” é tão cruel conosco ao ponto de impedir que sigamos por uma estrada que não inclua o envolvimento emocional com outras pessoas em determinados momentos das nossas vidas.
E se acha que é benéfico abrirmos mão do nosso livre arbítrio, bens materiais e da nossa própria felicidade para amar/idolatrar deuses, humanos e objetos, você também é um grande idiota.
Sei muito bem que estou sendo presunçosa com as minhas palavras. Como desconheço tal sentimento, obviamente não detenho o direito de julgar quem já o experimentou. Estou apenas agindo como manda os instintos de uma invejosa, pois nunca tive o prazer ou desprazer de sentir qualquer forma de amor. Nunca me liguei a algo ao ponto de afirmar com todas as forças: puta merda, eu amo isso!
Sempre que um dos meus brinquedos quebrava, bastava pegar outro. Toda vez que um bichinho de estimação morria, só precisava largá-lo para as bactérias decompositoras e encontrar outro animal para substituí-lo.
Desde sempre, tenho cravado no meu córtex o fato de que tudo, simplesmente tudo, possui um prazo de validade. O principal motivo para não nos apegarmos é que nada dura para sempre, principalmente um simples e instável sentimento.
Também estou ciente de que essa forma de pensar pode significar a existência de algum defeito grave no meu cérebro. Talvez esteja faltando a parte dele onde deveria estar guardado o amor. Ou, quem sabe, esse sentimento apenas está muito bem escondido, esperando o momento certo para ser utilizado.
Enfim, citei apenas um dos vários motivos que me torna incapaz de ser uma boa professora. Não tem como eu, alguém com zero apego sentimental, sociopata, estressada, um tiquinho pervertida e que nutre certo ódio pelos paradigmas sociais, conseguir guiar um bando de crianças cheias de espinhas na direção de um futuro minimamente decente.
Porém, agora mesmo, encontro-me em uma sinuca de bico. Mais precisamente, fui sequestrada e estou sendo mantida em cativeiro por uma mulher falsamente sexy.
— Alunos, estou aqui para informá-los que, a partir de hoje, Amanda Muniz será a professora substituta de vocês. — Melissa anunciou para os vinte e um jovens reunidos na sala de aula. — Façam-me um favor e tentem não a expulsar daqui como fizeram com os outros…
Por algum motivo, a diretora tem mantido distância de mim. Que curioso, não lembro de ter feito nada de estranho com ela para merecer esse tratamento gelado.
— Sejam bonzinhos comigo, tá? — Curvei a cabeça e os cumprimentei.
— Contamos com você! — Surpreendentemente, recebi uma resposta bastante positiva em coro.
— Tá bom, confesso que eu estava esperando uma recepção completamente diferente…
Bastante comportados, os alunos me fitam com toda a atenção do mundo, transbordando expectativas. Nenhum deles usa o uniforme de maneira desleixada, seus penteados estão arrumadinhos e os diferentes aromas dos perfumes chiques que usam empesteiam o ar. Como o esperado de um colégio de riquinhos, zero traço de cecê.
— Muito bem, agora os deixo nas suas mãos, Amanda! Seja uma boa professora para eles neste momento difícil que estamos passando. — Sem sequer olhar para mim, Melissa começou a se dirigir no rumo da saída. — Boa sorte.
— Claro! Pode deixar tudo comigo! — Dei um grande sorriso maléfico. — Ah! Se não for muito incômodo, mais tarde gostaria de discutir os termos do meu contrato com você… Dona Coxinha!
Incapaz de continuar me ignorando, ela estremeceu e engasgou com a própria saliva.
— O-o q-que você d-disse?!
— Que eu quero conversar sobre bufunfa… Dona Coxinha!
— Aha, ah, ahahahah! Q-que b-bri-brincadeira mais s-sem graça é essa de ficar dando a-ap-apelidos para os o-outros?! — Finalmente, encarou-me com uma expressão toda franzida e lágrimas nos cantos dos olhos. — N-nunca ma-mais m-me chame dessa f-forma, eu i-implo, ai!
— Ué? Mordeu a língua? — Soltei uma risadinha.
A loira grunhiu feito um pequeno animal assustado e correu para fora da sala de aula antes que eu pudesse degradar ainda mais a sua imagem de “adulta perfeita”.
Aha! Dessa vez, acho que encontrei um brinquedinho bem divertido.
— Certo, e agora? O que devo fazer?
Dei um longo suspiro, sentei em cima da mesa dos professores com as pernas cruzadas e fitei meus expectadores. Depois, encaixei no rosto o sorriso mais falso do meu arsenal e joguei toda a merda no ventilador de uma vez.
— Beleza, é o seguinte, galerinha do mal. Meio que fui obrigada a me tornar babá de vocês. Algo que não quero fazer. Então, por que não selamos um acordo que beneficiará ambos os lados? Tratem-me igual uma divindade e não encham o meu saco que, em troca, abdico de ficar no pé de vocês. Todos serão livres para fazer o que quiserem. Podem comer manga com leite, deixar as sandálias viradas, instaurar seus próprios regimes políticos ou tacar fogo no planeta inteiro que eu não ligo.
Imediatamente, uma aluna na primeira carteira do canto esquerdo levantou a mão. É a representante de classe, Lorena.
— Com isso, podemos concluir que a senhora não tem a intenção de nos ensinar?
Todos os outros trocaram olhares entre si e concordaram.
— Quatro-olhos, primeiramente, pare de me chamar de senhora. Segundamente, observem a situação em que nos encontramos. É o fim do mundo! Em vez de se preocuparem com matemática, vocês deveriam estar aproveitando esse tempo sem adultos com coisas mais úteis. Apenas peguem todos os livros, queime-os em uma fogueira e realizem os seus sonhos! Se estão preocupados com a diretora, podem contar comigo pra passar a perna nela.
Outra mão erguida apareceu. É a de um garoto com cabelos pretos em formato de cogumelo e expressão carrancuda.
— Você não está sendo leviana demais quanto a isso? Não sei se notou, mas acabamos de perder nossas famílias e tudo que mais amávamos. Estamos completamente sozinhos. Gostaria que parasse de ser tão insensível e começasse a se esforçar para aprender os nossos nomes, pelo menos. Isso é o básico de lecionar.
— Ugh! Caramba, você é certinho demais!
Bem, na verdade, todos eles aparentam ser. Onde será que estão os demoniozinhos que mandaram vários tutores direto para o sanatório?
— Tá, tá! Nomes! Sim, nomes! Nomes são coisas importantes! Ei, representante, tome a iniciativa e puxe o bonde. Apresente-se e fale qual é o seu passatempo favorito, por favor.
A nerd de óculos apoiou o dedo indicador no queixo e ponderou por alguns segundos.
— Hum… Meu nome é Lorena Barbosa, e o que mais gosto de fazer nos momentos livres é desenhar e ler na biblioteca da escola.
— Chaaaato! Isso é pior que desperdiçar a vida numa sala de aula! Ao invés dessa baboseira de riscar papeis, você deveria é estar procurando um namorado bonito e sarado. Beije na boca até seus lábios incharem e, depois, roube alguns cones do departamento de trânsito na volta do rolê. — Fiquei em pé sobre a mesa e assumi minha pose de discurso. — Garotas na sua idade costumam falsificar a carteira de identidade pra invadir casas de swing a fim de ver algumas salsichas balançando! Por isso, viva la vida, guria!
Aparentemente, as minhas palavras deram um critical hit na representante. O rosto dela ficou extremamente corado e a sua respiração pode ser assemelhada a de um enfermo queimando de febre.
Não me diga que ela está recriando toda a história que contei na própria mente?
— Pr-professora… Posso ir ao banheiro…?
— Eh…? — Qual é o significado desses olhinhos brilhantes de cachorro pidão? — Tá bom, vai lá…
Lorena levantou e cambaleou até a porta da sala. Está roçando uma coxa na outra como se estivesse realmente muito apertada. Torço para que o problema dela seja apenas xixi…
— Beleza, continuando! Agora você, menino rabugento!
Apontei na direção daquele que me passou uma lição de moral.
— Leógenes Andrey. Gosto de golfe.
Espera um momento aí. Só pode ser brincadeira isso que ele falou agora.
— Huahuahuahua! — Não consegui conter uma gargalhada insana. — Ei, tem certeza de que não está contente com o desaparecimento dos seus pais?! Presta bastante atenção no nome de retardado que eles colocaram em você! E golfe?! Onde infernos se joga golfe em Brasília?! Só se for no videogame! — Estou, literalmente, chorando de tanto rir. — Quer um conselho de gênio? Nos convide para um frevo na piscina da sua mansão! Tenho certeza de que você vai adorar ver as suas coleguinhas de biquíni ficando doidonas de suco de manga. Absorva o espírito de um estudante de escola pública e pule o muro depois do terceiro horário pra banhar no córrego e soltar pipa! Abrace com força a liberdade!
Porém, parei de rir subitamente assim que fui atingida por um olhar tão gélido quanto o coração de um gaúcho.
— Senhora, suponho que ainda não saiba, mas sou filho de um casal de advogados bastante renomados aqui na capital. Por isso, aconselho que segure um pouco a sua matraca, pois se escolher continuar, ganhará de presente um processo judicial no mesmo instante que o mundo voltar ao normal. Irei tirar cada centavo dos seus bolsos e garantirei que não arrume outro emprego pelo restante dos seus dias. Tomarei a sua casa, sua dignidade e até mesmo as suas calcinhas sujas. Terá que dormir nos bancos frios da rodoviária e será obrigada a satisfazer caminhoneiros para ter o que jantar.
Ele não parece ter mentido em nenhuma palavra, e esse foi o motivo para eu esquecer até de como se respira.
Temos aqui um fedelho… perigoso!
— Então, meus queridos alunos, espero que não tenham dado ouvidos a nada que falei antes, tá? É que sofro de dupla personalidade, sabem? — Fingindo que não fui afetada por todas as ameaças, desci calmamente da mesa e sentei na cadeira atrás dela. — Mas agora, já voltei ao normal! A Amandinha aqui vai ensinar direitinho todas essas tretas que os professores ensinam! Ninguém precisa ser processado hoje, não é, Leógenes, amorzinho da titia?
O moleque desaforado sorriu de maneira sádica e moveu os lábios em silêncio, deixando flutuando no ar um: você está na palma das minhas mãos.
— Tá, vamos continuar. O próximo, por favor.
— Senhora, senhora! Eu, eu, eu!
Um garoto extremamente hiperativo com rosto de galã juvenil, cabelos tingidos de loiro e brinco na orelha direita, começou a pular com a mão levantada.
— Estou falando sério. O próximo que me chamar de senhora vai ficar de joelhos em grãos de milho apoiando um balde d’água na cabeça enquanto recebe palmatórias! — Suspirei profundamente. — Beleza, manda ver. Pode se apresentar.
— Meu nome é Augusto Vidal e o meu hobbie é amar profundamente a Keyla! — Apontou para uma menina de aparência sombria no fundo da sala. — Eu a amo tanto que o meu coração parece estar a ponto de explodir apenas por confessar essas poucas palavras na frente de vocês, companheiros de classe!
— Ah, não. Vai começar de novo. — Alguém no fundão lamentou.
— Isso não vai terminar bem. — Outro comentou.
— Ele só pode ser masoquista, não tem outra explicação. — Um terceiro sussurrou.
— Lembro como se tivesse acontecido hoje. Nossos caminhos se cruzaram em um lindo dia de agosto, dez anos atrás, num parquinho comunitário enquanto eu mijava no ferro de sustentação do balanço. Nos apaixonamos à primeira vista e, desde então, venho juntando dinheiro para a nossa lua de mel. — Voltou-se na direção do alvo de toda essa declaração. — Keyla, podemos casar hoje mesmo se você quiser! Prometo te fazer feliz para todo o sempre! Irei te abraçar sempre que estiver triste, te beijar sempre que estiver carente, massagear os seus pei—
Simplesmente, parou o discurso na metade, deixando-me confusa.
— O que aconteceu, criatura?
De repente, Augusto tombou e caiu de costas, revelando um compasso pregado bem no meio da sua testa. Um fio de sangue escorre do ferimento.
Meu aluno simplesmente… morreu?!
— Mas que merda?! — Levei as mãos ao rosto, em pânico absoluto. — Ei, ei, ei! Isso não é hora de pregar peça na professora novata! Levante agora mesmo!
Sem saber o que fazer, voltei meus olhos trêmulos na direção dos demais alunos. Eles sequer demonstram surpresa. Parece até que esse tipo de acontecimento é algo corriqueiro nas suas vidas.
Só que isso é estranho, não?! É impossível que assassinato seja algo normal na vida de simples adolescentes, né?!
— Caramba, por que nenhum de vocês se move para ajudá-lo?!
Bem, na verdade, tem uma pessoa que ficou de pé. Keyla, a responsável pelo arremesso da “arma didática”. Pequena feito uma boneca, cabelos ruivos um pouco abaixo dos ombros, blusa de mangas cumpridas e uma saia bem longa, quase no tornozelo.
— O que será que eu fiz para merecer isso…? — Ela resmungou baixinho como se o simples ato de falar fosse tão cansativo quanto correr à toda velocidade. — Devo ter jogado pedra na cruz, só pode…
Abriu sua mochila e retirou de lá um grande martelo. Depois, atravessou toda a sala de aula até chegar no cadáver, ergueu o objeto acima da cabeça e…
— Nunca mais faça isso, seu desgraçado!! — Repetidas pancadas, sangue jorrando para todos os lados. — Eu nunca vou casar com você, maldito!! — Mais e mais porradas, transformando o chão em um oceano de sangue. — Você deveria apenas morrer de uma vez e me deixar em paz, nojento!! — Pedaços do cérebro dele se espalharam pelo chão, formando uma espécie de sopa. Já eu, sem suportar mais tanta brutalidade, agachei e vomitei sem parar, criando a minha própria sopa. — Morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra, morra!! Eu não preciso do seu amor, imbecil!!
Keyla parou, largou o martelo e respirou fundo, recuperando a sua compostura fria.
A linda jovem, completamente ensanguentada da cabeça aos pés, retornou para a sua carteira, pegou um lenço e começou a se limpar como se nada tivesse acontecido.
Enquanto isso, todos os outros apenas cochicham entre si, falando sobre como a ruiva exagerou novamente e decidindo quem será o azarado que limpará toda essa bagunça.
— Eh…? — Precisei me esforçar bastante para formular uma simples frase. — Ninguém vai ligar para o Samu…?
Foi só o tempo de fechar a boca para a pressão do meu corpo cair feito um meteoro. A completa escuridão apagou a minha consciência.
Sério, o que diabos tem de errado com estes alunos?