Carnaval no Abismo - Capítulo 19
[21 de agosto]
— Acordem pra cuspir, cambada de preguiçosos! Chegou o grande dia! — Anunciei com entusiasmo.
Sem fazer rodeios, fui logo até o primeiro colchonete e puxei o cobertor com força, revelando uma pequena garota de cabelos ruivos bagunçados. O pijama dela é unicamente uma blusa preta larga de mangas cumpridas, que parece ter sido comprada na Feira do Rolo, com os rostos extremamente photoshopados dos integrantes de algum grupo sertanejo. Algo surpreendente, pois eu jurava que ela curtia uns góticos melancólicos da vida, sabe?
— Hunyaa…
A primeira coisa que recebo de Keyla é aquele já conhecido olhar mortal. Parece estar decidindo seriamente se deve cravar as suas presas com força na minha jugular, fato que me fez recuar uns dez passos só por segurança. É sério, detesto pessoas que já acordam de mau-humor.
Sem me deixar abalar, vou até o outro colchonete no salão e repito a minha ação anterior. No entanto, dessa vez, o meu objetivo não foi atingido.
— Ei, Leógenes, levanta! Chegou a hora da revolução! — Dou dois bicudos nas costelas dele, mas de nada adianta. Se não fosse os roncos e o peito se movendo, eu poderia jurar que ele tinha partido dessa pra melhor. — Quer dizer que você é daqueles que não acorda nem com tudo desmoronando ao seu redor? Muito bem, pelo jeito, terei que usar métodos mais antiquados.
— Posso saber qual é o significado desse sorriso bisonho na sua cara, senhora? — Keyla perguntou após um longo bocejo.
— É a expressão de alguém com vários pensamentos malignos surgindo. — Alarguei o meu sorriso. — Não está sentindo uma empolgação parecida, guria? Devemos aproveitar essa oportunidade única para fazer todas as travessuras possíveis no nosso amiguinho indefeso aqui. Criar memórias!
— Sinceramente, só consigo sentir nojo da ideia de me envolver nas suas palhaçadas.
— Ai, ai, ai… Que tal parar de ser tão antipática e começar a aproveitar sua juventude? A vida é curta demais para não desenhar órgãos genitais com batom no rosto do seu coleguinha dorminhoco.
A verdade é que não preciso de um esquema bem elaborado para acordá-lo. Basta pegar aquela taser e atirar no mamilo dele como da última vez. Mas já que estou decidida a colocar este meu corpo preguiçoso para se exercitar, não custa nada aprontar algo um pouco mais elaborado.
Afastando-se da minha aluna com déficit de alegria, saltitei até o meu carro e dirigi rumo ao mercadinho mais próximo. Comprei tomates, alfaces, cebolas, temperos e uma única maçã suculenta. Também arrumei uma câmera fotográfica de última geração que registra até as bactérias das coisas.
Tanto esforço tem como objetivo principal guardar para sempre as lindas memórias que virão.
Logo que retornei ao Museu Nacional de Brasília, preparei com carinho todos os ingredientes e os organizei em volta do meu belo adormecido favorito, transformando o colchonete dele em uma linda obra de arte multicolorida que batizei de: Asiático Candango.
Mais precisamente, um sushi humano.
Obviamente, peixe não usa roupa. Por isso, retirei praticamente todo o pano no corpo do garoto cogumelo, deixando-o apenas com uma roupa íntima escolhida a dedo por mim.
— Agora, é só colocar a maçã na boca dele e voilà! Está pronto! Uma refeição gourmet sem precedentes!
Não tem aqueles pratos de restaurantes cinco estrelas cheios de frufrus e adornos que dão até dó de comer? Então, fiz algo igualzinho ou até melhor! Acho que mereço uma vaga especial em algum programa de culinária, na moral. Vou até tirar algumas fotos para poder produzir um grande mural na sala de aula.
— Você não vai para o Céu, sabia? — Keyla comentou enquanto luta contra as mechas emboladas do seu cabelo.
— Em vez de ficar criticando, bem que podia me dar uma mãozinha aqui. — Fiz beicinho. — Ainda dá tempo de entrar na brincadeira.
— Fala de cutucar a onça com vara curta? Não, obrigada. Se eu fosse você, pararia enquanto ainda há tempo. Apodrecer em uma cela do Complexo Penitenciário da Papuda será o menor dos seus problemas quando o mundo voltar ao normal, acredite.
— Para de ser estraga prazeres. É apenas uma brincadeirinha de nada. — Ignorando todos os avisos inúteis dela, enchi um balde de vinte litros com molho shoyu. — Afinal, um bom sushi tem que ter o treco especial dos asiáticos. Uh! Isso tá pesado pra caramba!
Mesmo assim, esforcei-me para carregá-lo e despejá-lo sobre Leógenes.
— Guaaa!! — O garoto cogumelo despertou já em estado de pânico, cuspindo a maçã para longe. — O q-que diabos?!
Ele precisou de uns bons segundos para entender o que tinha acontecido e, quando a ficha caiu, expressões de nojo, pavor e ódio se misturaram na sua face.
Ué? Por que o meu aluno está tão perturbado? Não é em momentos assim que todos se abraçam e começam a rir juntos da pegadinha como acontece nos programas de televisão?
— Mas que merda você fez comigo enquanto eu dormia, sua doida?! — Fitou seu próprio corpo. — Meu senhor! O que é isto que estou vestindo?! Um… micro biquini?!
— Porque achei que ficaria fofo em você, oras. Mas olhando direitinho, não combinou nadinha. Devolve.
É o sutiã e a calcinha fio dental que tentei fazer a Keyla vestir quando estávamos seduzindo Leógenes um tempo atrás.
— Ela… me corrompeu… novamente… De novo… De novo. — O coitado deitou de bruços e abraçou os próprios joelhos, soluçando e tremendo compulsivamente. — Ela planejava me comer? Eu quase fui o café da manhã dela? — De repente, arregalou os olhos. — Espera um pouco aí! Quem foi que trocou as minhas roupas?!
— Qual é? Não faça perguntas idiotas.
Imediatamente, Leógenes começou a se arrastar para bem longe de mim, escorregando de vez em quando por culpa de todo o molho espalhado.
Ah, sim! Agora eu entendi! Ele está com vergonha! E não é que este safadinho tem um lado meigo também?!
— Não precisa se preocupar, cabeça de órgão genital! A Keyla não viu nada e prometo guardar segredo sobre a mancha escura na sua nádega esquerda. Ah, também não se sinta especial, beleza? Teve um aluno que foi obrigado a urinar do meu lado uma vez.
Por algum motivo, em vez de respirar fundo e se acalmar, o garoto cogumelo ficou ainda mais perturbado.
— Não confesse um crime tão asqueroso com tanto orgulho, sua pervertida, doente e maníaca sexual! Eu vou contar tudo pra minha mamãe, grave as minhas palavras! Com toda certeza, você será presa em uma camisa de força e jogada num manicômio! Nunca mais terá a chance de ver a luz do Sol novamente!
Mais uma promessa furada dele para colocar na minha lista de promessas furadas.
— Ei, não seja rude! Falando desse jeito, faz parecer que eu tinha segundas intenções quando te despi! — Estufei o peito e completei com entusiasmo. — Sou uma adulta, sabe? Jamais ficaria excitada vendo o bingulinho de uma criança!
— Bin… gulinho…?
Ah, droga… Essa maça suculenta voando na minha direção em alta velocidade significa que falei alguma besteira?
— Ferrou…
Primeiro, veio a dor lancinante provocada pelo objeto que quase amassou o meu crânio. Depois, a paralisia pós-colisão contra o piso gelado.
— Eu avisei, lembra? — Keyla apareceu no meu campo de visão. — Dessa vez, espero que tenha aprendido a lição. Se bem que a sua punição ficou até barato, sinceramente.
Catou a maçã, deu uma mordidinha nela e, em seguida, a repousou sobre o galo que começa a se formar na minha testa. No rosto geralmente frio e indiferente dela, encontra-se um sorriso pra lá de sádico, obviamente, divertindo-se com este meu momento de desgraça.
— Sua traidora! Onde é que foi parar a união das mulheres contra os homens sebosos?! Bem, que seja. — Levantei num pulo e anunciei com energia. — Agora que todos estão devidamente acordados, chegou a hora de iniciarmos a Operação Novinha Senta o Rabetão no Chão!
— Era só o que me faltava. Um nome escroto para o momento que pode selar o futuro de toda a humanidade. Sem contar que é longo demais. Não dá pra decorar isso. — Leógenes resmungou enquanto tenta se limpar com uma toalha no outro lado do salão.
— Na verdade, é bem a cara desta louca inventar algo tão retardado assim. — Keyla concluiu.
Caramba, eles simplesmente não cansam de pisar em mim?!
— Qual é, time?! Pensei que vocês tinham curtido a ideia de usar termos de pancadão para nomear as nossas operações ultrassecretas!
— Não lembro de ter concordado com isso.
— Nem eu.
— Ugh… Ninguém merece! Enfim, vamos logo falar sobre o que realmente interessa: a batalha final contra os anjos gêmeos.
Entretanto, antes que eu tivesse a chance de revisar a Operação Novinha Senta o Rabetão no Chão, a adolescente ruiva levantou a mão esquerda.
— Não vou participar.
Okay, esse foi um desenvolvimento abrupto e inesperado. Se com três pessoas as nossas chances de vitória já são ínfimas, torna-se praticamente impossível sem a ajuda dela.
— Poderia me explicar o motivo?
— Na verdade, é bem simples. Se eu for com vocês, a probabilidade de o plano dar errado é de cem por cento. Ou, por acaso, já se esqueceu da minha sina?
Ela está se referindo ao seu Azarismo Crônico, uma doença cuja existência não gosto de admitir, mas preciso aceitar, pois já obtive provas suficientes de todo o caos que pode causar.
Basicamente, é como se Keyla estivesse sofrendo bullying de uma força sobrenatural. Sua simples existência já atrai desgraças.
Posso usar como exemplo o dia em que caminhávamos pelo corredor de um supermercado e uma gigantesca torre de produtos misteriosamente desabou sobre a gente. Tem também toda a sequência complexa de eventos que aconteceram enquanto banhávamos na noite de ontem. Quando o sabonete escapuliu da minha mão, sobrevoou a divisão dos nossos boxes, bateu num frasco de shampoo que resvalou no cabo do rodo ao lado, derrubando-o no rumo do dedo mindinho dela.
Bem, no primeiro caso, para a nossa sorte, fomos soterradas por vários pacotes de papel higiênico. Já no segundo, infelizmente, a tadinha não conseguiu reagir a tempo e só pode se encolher e grunhir de dor fofamente após o desastre acontecer.
Agora, imagine situações como essas acontecendo o dia inteiro!
Na moral, Augusto já deve ter ganhado um passe direto para o Paraíso só pelas diversas vezes que precisou usar o seu próprio corpo para protegê-la.
— Entendo o seu ponto, mas a sua ajuda é indispensável. — Surpreendentemente, foi Leógenes que se manifestou primeiro. — A parte mais importante do nosso plano depende da sua participação para funcionar. Fora que foi você quem descobriu a brecha nas habilidades deles e sabe melhor do que ninguém o que fazer para impedi-los.
— Estou de acordo. Nós trabalhamos duro para o dia de hoje. E mesmo com os vários contratempos provocados pela sua sina, tudo tem dado certo até agora, não é? Acho que não precisa se preocupar. — Passaram-se vários dias desde o meu encontro com Antony na piscina do colégio. Durante esse tempo, tenho agido incansavelmente com estes dois para poder tornar realidade as palavras que falei naquela noite. — Venha com a gente e ponto final.
— Bem, precisamos de você para sermos uma equipe. — Leógenes completou com firmeza. Se fosse um daqueles personagens que usam óculos, os teria arrumado com a ponta do dedo neste momento. — Hoje, tiraremos aqueles dois do trono.
Só agora notei a profundidade do vínculo que criamos nos poucos dias que vivemos juntos. O suficiente para fazer o meu coração saltitar de empolgação.
Por fim, Keyla não teve outra escolha além de concordar afirmativamente com a cabeça. Ela está bem ciente do tamanho da sua importância.
— Certo! Chegou o tão aguardado momento de nos equiparmos para a batalha que se aproxima!
Corri em disparada até as minhas malas e saquei de lá três fardas. Peguei também tintas guache nas cores vermelha e preta para podermos marcar os nossos rostos igual aqueles guerreiros de antigamente. As cores da rebelião fervente, o símbolo do urubu rubro-negro.
— Por que está nos oferecendo camisas de time em vez de coletes à prova de bala?! — Por algum motivo, Leógenes explodiu novamente. — E por que todas têm a mesma numeração?! Quem diabos é Rodinei?!
— Ei, ei! Segure um pouco todas essas críticas, garotinho! Precisamos de algo que possa nos identificar como uma equipe, e, no momento, isso é tudo o que tenho. Roupas combinando são chiques, não acha? Saiba também que Rodinei é um mito entre os mitos, uma espécie de deus venerado por todos os torcedores do mengão. Mas se não estiver satisfeito, também tenho uniformes do porco autografados pelo ídolo, Deyverson! Não sou clubista.
— Era só o que me faltava. Você sabe muito bem que não gosto de futebol. Então, nem adianta me oferecer porcarias que não vou usar.
— Moleque, não é necessário gostar, apenas sentir o calor! Por isso, cala a boca e escolha um dos mantos! Rodinei vai preencher a nossa equipe com sorte e cruzamentos precisos na grande área!
Voei na direção dele com a intenção de forçá-lo a vestir o nosso uniforme de batalha, mas antes que pudesse despi-lo, a voz indiferente de Keyla ecoou mais alto que o normal.
— Senhora, temos visitas.
Assim que voltei os meus olhos para a entrada, meu corpo travou.
— Droga… Isso não é bom, nada bom.
Sete alunos bloqueiam a única rota de fuga. Seus olhos estão focados em nós sem piscarem uma vez sequer. Todos seguram barras de ferro e madeira, prontos para agirem com violência caso seja necessário.
Tomando a frente, está Juliana. A morena tem um sorriso aterrorizante em seu rosto. Qualquer traço da sua antiga inocência parece ter se perdido para sempre. Ela é apenas mais um boneco vazio com o único objetivo de nos levar até os seus líderes impiedosos.
Nós planejávamos atacá-los de surpresa, mas foi o oposto que aconteceu. Todo o plano minucioso que criamos nos últimos dias foi esmagado em poucos segundos.
— O que faremos agora, senhora? — Leógenes sussurrou.
Não consegui dar uma resposta. Minha mente está nebulosa.
Existe algo que possamos fazer? Não somos guerreiros e aqui não é uma série de batalha onde podemos escapar apenas usando o poder da amizade.
Pelo jeito, perdemos a batalha antes mesmo de termos sacado as nossas espadas.
— Nós nos rendemos. — Falei e levantei as mãos.
Keyla e Leógenes demonstraram surpresa à princípio, mas seguiram o meu gesto quando também se deram conta de que não há mais nada a ser feito. Ao mesmo tempo, nos ajoelhamos imponentes diante dos inimigos.
Juliana riu, triunfante, e ordenou que os seus companheiros avançassem. Amarraram as nossas mãos com abraçadeiras e, depois, vendaram os nossos olhos, deixando-nos na escuridão e retirando de nós qualquer possibilidade de escapatória.