Carnaval no Abismo - Capítulo 18
[Uma história de alguns meses atrás]
A bondade é uma índole inútil, sinônimo de fraqueza. Essa foi uma lição preciosa que a minha própria mãe me ensinou pouco antes de me abandonar no frio.
Quando se é gentil demais, você acaba se expondo como uma pessoa frágil, explorável. Alguém fácil de ser usado e manipulado por aqueles que não tem medo de ferir e machucar para alcançar os seus objetivos. Sempre perderá a corrida por estar preocupado em não pisar nas flores enquanto os outros simplesmente cortam caminho.
Infelizmente, somos todos dependentes de experiências tóxicas para crescermos. Se você não abraça com força todos os machucados, sonhos despedaçados, traumas e afins, acaba se tornando alguém fadado a servir de trampolim para os calejados que realmente desejam alcançar o status de protagonistas.
Apenas os que já sentiram o sabor do desespero, lutam e se esforçam para nunca mais provarem dele novamente, levando absoluta vantagem sobre aqueles sem experiências de vida que se alimentam da inocência e ingenuidade.
Os vencedores são sempre frios por dentro e por fora, não deixando espaço para que idiotices frívolas como a bondade e a culpa interfiram nas suas buscas por um futuro pleno e verdadeiramente feliz neste mundo esquecido por Deus.
Resumindo, precisamos sofrer e absorver tragédias para crescer.
Então, por quê?
Se o fator sofrimento é realmente um pré-requisito para abrir mão dessa fraqueza, por que ainda não me sinto forte?
Será que não chorei o suficiente?! Não gritei o suficiente?! Não fui abusado o suficiente?! Não fui usado o suficiente?! Não fui traído o suficiente?!
O que tem me impedido de abraçar a escuridão para apagar essa luz irritante que fica me cegando? Tornando-me um covarde?
Por que não consigo jogar no lixo este coração desgraçado que serve apenas para me fazer agonizar?
Isso é nojento. Eu sou nojento.
— Você também me acha nojento?
Pergunto para o pequeno pássaro que estou segurando. Um filhote que acabou de ser empurrado do ninho pelos próprios pais.
Ele pia e bica a minha pele desesperadamente em busca de uma brecha para escapar, mas a pressão imposta pela minha mão mal o deixa respirar.
— Ei, você não está com raiva deles? Por terem te jogado fora mesmo com todas as chances de perder a vida antes de aprender a voar? Não acha repugnante o fato deles terem exposto uma criança feito você a tanto medo e desespero sem sequer terem ensinado sobre o afeto e o amor antes?
Os besouros devoram seus próprios filhotes na ausência de alimento. Uma mãe foca larga seus filhos nas mãos da morte logo nos primeiros dias de vida. Louva-deuses fêmeas devoram os machos no momento do acasalamento. Se levarmos em consideração todos os atos de brutalidade que nossos olhos ignoram, facilmente compreendemos que os seres humanos não são as piores criaturas que existem por aí como muitos afirmam.
Na verdade, devemos generalizar. O mundo inteiro é podre de várias maneiras e sentidos diferentes. Porém, é uma podridão evolutiva.
No exemplo deste pássaro, caso ele consiga sobreviver à primeira queda, retornará triunfante para o ninho de seus pais com a cabeça erguida. Será um vencedor, um animal que se alimentou do medo e sofrimento para ficar mais forte, mais rápido, mais esperto. Carregará sempre consigo essa cicatriz e, no futuro, impiedosamente, fará o mesmo com seus próprios filhos.
Acaricio a cabeça do animal e olho no fundo dos seus olhos. Deixo que a minha habilidade se manifeste. Imediatamente, ele para de se mover, não faz mais barulho.
Decidi que é a minha vez de pular do ninho. Se a bondade impregnada na minha asa é aquilo que me impede de voar, abandonarei essa parte de mim e permitirei que apenas a maldade assuma o seu lugar.
— Deixarei de ser um peão, uma máquina, um fantoche. Quero me tornar alguém diferente, abandonando toda essa mediocridade que me corrompe até a alma.
Então, permito que as feridas do meu passado revirem a minha mente feito uma tempestade.
É como se eu estivesse engolindo óleo queimado.
Relembro tudo o que sofri. Todas as vezes que fui ferido. Todas as vezes que chorei. As incontáveis ferramentas que usaram pra me machucar. Todas as vezes que fui devastado, agredido, maltratado, mutilado, abusado físico e psicologicamente.
Reúno em um único ponto do meu interior tudo o que tenho de ruim. Raiva, repúdio, angústia, medo, inveja, indiferença, soberba, ganância, vingança, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio, ódio.
E, finalmente, vomito tudo isso.
— Mate-se.
Silêncio.
Esperei, esperei e esperei, mas nada aconteceu. O pássaro não fez o que pedi. Não parou de respirar.
Muito pelo contrário. Assim que uma lágrima vazia desceu pelo meu rosto, ele escapou dos meus dedos frouxos, bateu as asas e voou para bem longe do meu desejo.
— Aah… Eu falhei… De novo, de novo, de novo…
Minha bondade venceu mais uma vez. Não consegui cruzar essa maldita linha. Continuo sendo bondoso, gentil, fraco.
É nojento. Eu sou nojento.